A Garganta da Serpente

David H. Lawrence

David Hebert Lawrence
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O cego

(David H. Lawrence)

Isabel Pervin estava à escuta de dois sons: do som das rodas na estrada, lá fora, e do rumor dos passos do marido, no vestíbulo. O seu amigo mais velho e estimado, um homem que parecia quase indispensável à sua vida, devia chegar naquele anoitecer chuvoso de fins de Novembro. A carripana tinha ido buscá-lo à estação. E o marido, que tinha perdido a vista na Flandres e apresentava na fronte uma cicatriz que o desfigurava, devia entrar em casa, vindo dos barracões.

Fazia agora um ano que regressara a casa, completamente cego. E, contudo, tinham sido muito felizes. A Granja era propriedade de Maurício. Na parte traseira ficava a quinta com edifícios, onde os Wernhams, que viviam desse lado, trabalhavam como quinteiros. Na bonita residência da frente vivia Isabel com o marido. Ambos tinham passado quase inteiramente sós, desde que ele fora ferido. Conversavam, cantavam e liam juntos, numa esplêndida e inefável intimidade. Depois, satisfazendo um velho interesse, ela fazia a crítica de livros para um jornal escocês, e ele ocupava-se bastante da fazenda. Embora privado da vista, discutia tudo com Wernham e fazia também muito trabalho por ali - trabalho miúdo, é certo, mas que lhe dava satisfação. Mungia as vacas, transportava para dentro os baldes, movia a desnatadeira e tratava dos porcos e cavalos. A vida era ainda bem cheia e estranhamente serena para o cego, pacificado pela paz quase incompreensível do contato imediato com as coisas, nas trevas. Na mulher possuía então um mundo completo, rico, real e invisível.

Eram felizes, de uma maneira nova e vaga. E ele nem sequer lamentava a perda da vista, nesses tempos de sombria, palpável alegria. Inflamava-lhe a alma uma suave exultação.

Mas à medida que o tempo se escoava, acontecia por vezes que este precioso encantamento lhes fugia. Algumas vezes, depois de meses desta intensidade, uma sensação de peso se apoderava de Isabel, um cansaço, um terrível ennui, naquela casa silenciosa a que conduzia uma dupla colunada de pinheiros alterosos. Então julgava que ia enlouquecer, pois não podia suportar tal coisa. Outras vezes, acometiam-no devastadores acessos de depressão, que pareciam ir destruir todo o seu ser. Era pior do que a depressão - era um sofrimento sombrio em que toda a sua vida se transformava numa tortura para ele e a sua presença se tornava insuportável para a mulher. A esta, um pavor lhe penetrava até às raízes da alma, quando chegavam estes dias sombrios. Numa espécie de pânico, procurava então consubstanciar-se ainda mais com o marido. E forçava a velha satisfação e alegria espontânea a continuar. Mas o esforço que isso lhe custava era quase insustentável. Sabia que o não podia aguentar. Sentia que essa tensão lhe iria arrancar gritos, e daria tudo para o evitar. Ansiava por possuir totalmente o marido; dava-lhe uma alegria desordenada tê-lo inteiramente para si. E contudo, quando de novo ele se deixava apoderar por um sofrimento sombrio e maciço, não podia suportá-lo, não podia suportar-se a si própria. Desejava então desaparecer de vez da face da terra, tudo menos viver a tal custo.

Atordoada, procurava então uma saída. Convidava pessoas amigas, procurava dar-lhe qualquer nova ligação com o mundo exterior. Mas de nada valia. Depois de toda a sua alegria e sofrimento, depois do seu sombrio, do seu longo ano de cegueira, solidão e indizível proximidade, as outras pessoas pareciam-lhes, a ambos, superficiais, tagarelas, bastante impertinentes. A tagarelice superficial parecia-lhes balofa. Ele ficava impaciente e irritado, ela cansada. E então recaíam na solidão, pois a preferiam.

Mas agora, dentro de algumas semanas, devia nascer-lhe um segundo filho. O primeiro morrera ainda pequenino, quando o marido partiu para França, e ela antecipava com alegria e alívio a vinda do segundo. Seria a sua salvação. Mas sentia ao mesmo tempo, uma certa ansiedade. Tinha trinta anos e o marido era um ano mais novo do que ela. Ambos desejavam muito a criança e, contudo, Isabel não podia deixar de sentir receio. Tinha o marido nas mãos, o que representava para ela uma alegria terrível e um fardo aterrador. A criança viria ocupar o seu amor e atenção. E depois, o que aconteceria a Maurício? O que faria ele? Se ao menos pudesse prever que também ele teria paz e se sentiria feliz quando a criança viesse! Desejava muito expandir-se numa rica satisfação física de maternidade. Mas o homem, o que faria ele? Como poderia providenciar a seu respeito, afastar aqueles seus sombrios e devastadores estados de espírito, que os aniquilavam a ambos?

Suspirava de medo. Mas desta vez Bertie Reid escreveu a Isabel. Era um velho amigo, seu primo segundo ou terceiro, escocês, como ela. Tinham sido educados juntos, ele fora através da sua vida um amigo, quase um irmão, mas melhor do que os seus próprios irmãos. Amava-o - embora não com o fito no casamento. Havia parentesco entre os dois, afinidade. Entendiam-se um ao outro instintivamente, mas Isabel nunca teria pensado em casar com Bert. Isso parecer-lhe-ia casar na sua própria família.

Bertie era um advogado e homem de letras, um escocês de tipo intelectual, vivo, irônico, sentimental, idolatrando a mulher que amasse, mas não querendo casar. Maurício Pervin era diferente. Descendia de uma velha família rural de boa cepa: a Granja não ficava muito longe de Oxford. Era apaixonado, sensual, talvez sensual em excesso, retraído - um homem forte, de membros pesados, cuja fronte se inflama com facilidade, porque o seu espírito era lento, como que narcotizado pelo forte sangue provinciano que lhe corria nas veias. Era-lhe bastante penosa a sua lentidão mental, pois tinha sentimentos rápidos e agudos. De forma que constituía precisamente o oposto de Bertie, cujo espírito era muito mais rápido que as suas emoções, pouco apuradas.

Desde que se conheceram, os dois homens não gostaram um do outro. Isabel desejava que se dessem, mas tal não aconteceu. Pensava ela que, desde que viessem a compreender-se um ao outro, poderiam dar-se muitíssimo bem. Contudo, não sucedeu assim. Bertie adotou uma atitude levemente irônica, muito ofensiva para Maurício, que retribuiu a ironia escocesa com ressentimento inglês, um ressentimento que algumas vezes se exacerbava em ódio estúpido.

O caso era um tanto embaraçoso para Isabel. Todavia, aceitou-o com o andar do tempo. Os homens eram de natureza caprichosa e desrazoável. Por conseguinte, antes de Maurício partir para a França pela segunda vez, entendeu que, por causa do marido, devia interromper a amizade com Bertie. E escreveu ao advogado neste sentido. Bertram Reid respondeu simplesmente que neste caso, como em todos os outros, obedeceria ao seu desejo, se este era na verdade o seu desejo.

Durante perto de dois anos nada se passara entre os dois amigos. Isabel regozijava-se um tanto com isso; não se arrependia. Um dos seus grandes artigos de fé era que o marido e a mulher importam tanto um ao outro, que o resto do mundo não conta absolutamente nada. Ela e Maurício eram marido e mulher. Amavam-se um ao outro. Haviam de ter filhos. Por conseguinte, todas as pessoas e todas as coisas mais deviam desvanecer-se, como insignificantes, fora desta felicidade matrimonial. Confessava-se feliz e pronta a receber os amigos de Maurício. Era feliz e pronta: a esposa feliz, a mulher pronta de possuir. Sem saber porquê, os amigos retiraram-se desconcertados, e não voltaram. Claro que Maurício tirava tanto prazer como Isabel desta absorção matrimonial.

Compartilhava das atividades literárias de Isabel, e ela cultivava um interesse real pela agricultura e pela criação de gado. Porquanto, sendo no fundo talvez uma emotiva, cultivava sempre o lado prático da vida e ufanava-se de dominar as questões práticas. Assim o marido e a mulher tinham passado os cinco anos da sua vida de casados, o último dos quais fora um ano de cegueira e de inefável intimidade. E agora Isabel sentia-se invadida por uma grande indiferença, uma espécie de letargia. Queria que a deixassem ter o seu filho em paz e sentir o tempo escoar-se dia a dia, vagamente, fisicamente, cabeceando à lareira. Maurício era como uma nuvem ameaçadora de trovoada. Tinha de se conservar desperta, não o esquecer nunca. Ao receber a missiva de Bertie, pedindo-lhe para levantar a pedra do túmulo da sua morta amizade e falando-lhe na pena verdadeira que sentia por seu marido ter perdido a vista, ela sentiu uma angústia, uma agitação alvoroçada de despertar. E leu a carta a Maurício.

- Pede-lhe para vir.

- Pedir a Bertie para vir aqui!?

- Sim, se lhe agradar.

Isabel calou-se por alguns momentos.

- Sei que é isso o que ele quer; que lhe daria grande prazer - replicou. - Mas tu, Maurício? Gostarias disso?

- Gostaria.

- Bem... Nesse caso... Mas parecia-me que não gostavas dele...


- Oh, não sei. Talvez que pense de maneira diferente a seu respeito agora - replicou o cego. Era um tanto abstruso para Isabel.

- Bem, meu querido, se tens bem a certeza...

- Tenho a certeza. Diz-lhe que venha.

De forma que Bertie vinha, naquela noite, através da chuva e da escuridão de Novembro. Isabel estava agitada, oprimida pela sua velha inquietude e indecisão. Sofrera sempre desta dor da dúvida, de um sentimento aflitivo de incerteza, que começara a desvanecer-se na letargia da maternidade. Agora voltava, e ela sofria com isso. Lutava, como de costume, para manter a sua atitude calma, composta e amigável, uma espécie de máscara que usasse sobre todo o corpo.

Uma criada acendeu um candeeiro alto ao lado da mesa, e pôs a toalha. A ampla sala de jantar estava escassamente iluminada, com o seu mobiliário elegante mas um tanto severo. Só a mesa redonda recebia da luz um brilho suave, que produzia um belo efeito. A toalha branca cintilava, com os seus pesados cantos bordados caídos quase até ao tapete, a louça era antiga e bela, cor de creme, com um desenho a vermelho vivo e azul escuro, as xícaras grandes e em forma de sino, o bule elegante. Isabel lançou a tudo isto um olhar de passageiro apreço.

Estava nervosa. Olhou de novo, automaticamente, as altas janelas sem cortinas. Apenas pôde perceber ao lusco-fusco, que rapidamente desaparecia lá fora, um enorme abeto balançando os ramos: era como se ela o pensasse, mais do que o visse. A chuva veio bater nas vidraças. Ah! por que razão não tinha paz? Estes dois homens, por que motivo a atormentavam? Porque não vinham? Porque havia esta incerteza?

Permanecia numa lassidão que era, na realidade, irritação e incerteza. Maurício, pelo menos, podia vir... não havia razão para estar lá fora. Pôs-se de pé. Vendo-se refletida num espelho, olhou-se de relance com um breve sorriso de recognição, como se fosse uma velha amiga de si própria. O seu rosto era oval e calmo, o nariz levemente arqueado. O pescoço descia para os ombros numa curva graciosa. O cabelo enrolado descuidadamente atrás, dava-lhe um certo ar quente, maternal. Pensando nisto, arqueou as sobrancelhas e levantou as pálpebras um tanto pesadas, com um ligeiro esboço de sorriso, e durante um momento os seus olhos cinzentos pareceram divertidos e travessos, um tanto sardônicos, na face transfigurada de Madona.

Depois, recuperando o seu ar de paciência feminil - estava, na realidade, fatalmente decidida - dirigiu-se para a porta, com um ligeiro empuxão. Tinha os olhos um pouco avermelhados.

Passou o amplo vestíbulo, em baixo, e atravessou a porta ao fundo. Então encontrou-se no recinto da herdade. O cheiro do curral, da cozinha, do pátio e do couro quase a estonteou: mas particularmente o cheiro do curral. Tinham estado a esfregar as panelas. O corredor lajeado, na sua frente, estava escuro, enlameado e úmido. Saía luz pela porta aberta da cozinha. Isabel avançou e ficou de pé no limiar. O pessoal da fazenda ceava, sentado a pouca distância dela, em redor duma mesa comprida e estreita, ao centro da qual havia um candeeiro branco. Rostos corados, mãos queimadas segurando a comida, bocas vermelhas mastigando, cabeças inclinadas sobre as xícaras: homens, moças do campo, rapazes. Era a hora da ceia, a hora de comer. Algumas caras repararam nela. A senhora Wernham, dando voltas por detrás das cadeiras com um grande bule preto, fez uma ligeira parada, não dando pela sua presença durante alguns instantes. Depois, voltou-se subitamente.

- Oh, é a senhora! - exclamou. - Faz favor de entrar, faz favor de entrar! Estamos a cear. - E adiantou-lhe uma cadeira.

- Não, não entro - disse Isabel. - Não queria interromper a vossa refeição.

- Não, não; não interrompe nada, minha senhora.

- Sabe se o senhor Pervin já entrou?

- Palavra que não lhe sei dizer! Precisava dele, minha senhora?

- Não, só queria que viesse para casa - disse Isabel, rindo com ar de acanhamento.

- Quer que o mande chamar, quer? Vai lá, rapaz... vai lá...

A senhora Wernham bateu no ombro de um dos rapazes, que começou a levantar-se, mastigando com a boca cheia.

- Creio que está no estábulo da ponta - disse outra boca, de ao pé da mesa.

- Oh! Não, não te levantes. Eu vou lá - disse Isabel.

- Não se meta a uma noite tão má como esta, minha senhora. Deixe ir o rapaz. Mexe-te, rapaz - disse a senhora Wernham.

- Não, não - insistiu Isabel, com uma decisão que se fazia sempre obedecer. - Continua lá com a tua ceia, Tomás. Gosto de ir até ao estábulo senhora Wernham.

- Já viram uma coisa destas!? exclamou a mulher.

- Não acha que o carro está demorando? - perguntou Isabel.

- Não, minha senhora - disse a senhora Wernham, consultando na meia obscuridade o relógio distante e alto. - Não, minha senhora, deve ainda demorar um bom quarto de hora ou vinte minutos.

- Sim! Parece mais tarde, quando a noite vem tão cedo.

- Lá isso vem, isso vem. Que aborrecidos dias, que passam tão depressa - respondeu a senhora Wernham. - Que seca

- Tem razão - disse Isabel, saindo.

Calçou os sapatos impermeáveis, embrulhou-se num grande xale de lã axadrezado, pôs na cabeça um chapéu de feltro de homem, e lançou-se através do primeiro pátio. A noite estava muito escura. O vento fazia ramalhar os grandes olmeiro que ficavam por detrás dos cobertos. Quando chegou ao segundo pátio, a escuridão parecia ainda maior. Isabel não sabia onde punha os pés, e lamentou não ter trazido uma lanterna. A chuva vinha tocada com ela. Em parte, sentia prazer com isso; em parte, faltavam-lhe as forças para lutar.

Alcançou por fim a porta do estábulo, que se via com dificuldade. Em parte alguma se divisavam sinais de luz. Abrindo o postigo, olhou para dentro. Era um puro abismo de trevas. O cheiro dos cavalos, do amoníaco e da transpiração sobressaltava-a, naquela noite cerrada. Escutou, toda ouvidos, mas só pôde ouvir a noite e os movimentos dum cavalo.

- Maurício - chamou musicalmente e com brandura, muito embora estivesse cheia de medo.

- Maurício! - Estás aí?

Nada saiu da escuridão. Sabendo que a chuva e o vento caíam sobre os cavalos, a quente vida animal, e pensando que isso os podia prejudicar, entrou no estábulo e fechou a parte inferior da porta, segurando o postigo. Não se moveu, porque sentia a presença das ancas dos cavalos, embora os não visse, e tinha receio. Qualquer coisa de estranho lhe agitava o coração.

Escutou atentamente. Então ouviu um ligeiro ruído a distância - parecia que muito longe - o tinir duma panela e uma voz de homem dizendo uma breve palavra. Devia ser Maurício, na outra parte do estábulo. Ficou imóvel, esperando que ele viesse através da porta da divisória. No escuro, os cavalos encontravam-se tão perto dela que lhe causavam terror.

O fecho da porta interior, rangendo alto, sobressaltou-a. A porta abriu-se. Ouvia agora e sentia o marido entrar, passando invisível, no escuro, entre os cavalos que se encontravam perto dela. O som um tanto baixo da sua voz, falando aos cavalos, atuou como um veludo sobre os nervos de Isabel. Quão perto se encontrava, e quão invisível! A escuridão parecia agitada num estranho turbilhão de vida violenta, desabando sobre ela. Andou-lhe a cabeça à roda.

Mas a sua presença de espírito fê-la chamar, em tom calmo e musical:

- Maurício! Maurício, meu querido

- O que é Isabel?

Não vendo absolutamente nada, o som da voz do marido pareceu tocá-la.

- Olá - respondeu alegremente, apurando a vista para o ver. Continuava ocupado, tratando dos cavalos perto dela, mas Isabel apenas via escuridão. Isto quase a fez desesperar.

- Não vens para casa, querido?

- Sim, vou já. é só meio minuto. Espera um pouco agora. O carro ainda não veio, pois não?

- Ainda não.

A voz do marido era agradável e vulgar, mas sugeria-lhe vagamente a ideia duma voz impessoal, vinda do estábulo. Desejava que ele se viesse embora. Enquanto se encontrasse tão completamente invisível, teria receio dele.

- Que horas serão?

- Ainda não são seis - replicou Isabel. Desagradava-lhe responder para o escuro. Depois ele aproximou-se muito dela, que se retirou para fora da porta.

- O mau tempo entra cá dentro - disse, avançando com firmeza e procurando a porta às apalpadelas. Isabel retrocedeu, e pôde vê-lo por fim, obscuramente.

- Bertie não vai ter um bom passeio - disse ele, fechando a porta.

- Com certeza que não! - respondeu Isabel calmamente, firmando os olhos no vulto escuro que se encontrava à porta, e acrescentou:

- Dá-me o teu braço, querido.

Enquanto caminhava, apertava o braço de encontro a si. Mas ansiava por vê-lo, por olhá-lo. Estava nervosa. Ele caminhava ereto, com a face levantada, mas com um curioso movimento tateante das pernas musculosas e possantes. Isabel sentia o contato forte, cuidadoso e hábil dos pés sobre a terra, enquanto se equilibrava a seu lado. Durante um momento, o marido foi para ela uma torre de escuridão, como se brotasse da terra.

No corredor da casa, ele vacilou e caminhou cautelosamente, envolvido num curioso alo de silêncio, enquanto procurava o banco. Então sentou-se pesadamente. Era um homem de ombros um tanto arqueados, mas com pesados membros, com possantes pernas que pareciam conhecer a terra. A cabeça era pequena, normalmente erguida e leve. Inclinando-se para desabotoar as polainas e as botas, não parecia cego. O cabelo era castanho e crespo, as mãos grandes, tisnadas e inteligentes, com veias salientes nos pulsos; e as coxas e joelhos pareciam maciços. Quando se encontrava de pé, o rosto e o pescoço intumesciam-se de sangue e as veias sobressaíam-lhe nas fontes.

Isabel não prestava atenção à sua cegueira. Conservava-se sempre alegre, uma vez atravessada a porta divisória que colocava os dois nos seus domínios de repouso e beleza. Tinha um pouco de receio dele, lá fora, na grosseria animal da roça. Mas o comportamento do marido também mudava, ao aspirar o odor familiar, indefinível que pairava no ambiente onde vivia a esposa, um cheiro delicado, esquisito, muito levemente perfumado. Vinha talvez das taças de pot-pourri.

Deteve-se no patamar da escada, imóvel, escutando, e o coração de Isabel confrangeu-se, ao vê-lo. Parecia escutar o destino.

- Ainda não está - disse - Vou lá em cima mudar de roupa.

- Maurício, não estás arrependido de ele ter vindo, pois não?

- Não sei bem dizer. Sinto-me um pouco na situação de qui vive.

- Não vejo razão para isso - respondeu, e, indo junto dele, beijou-o na face. Viu abrir-se-lhe a boca num sorriso lento.

- De quê você ri? - disse em tom travesso.

- De estares a confortar-me.

- Não. Porque te havia eu de confortar? Sabes que nos amamos um ao outro - sabes quão casados estamos! Que importa o resto?

- Absolutamente nada, minha querida.

Procurou a face da esposa e tocou-a, sorrindo.

- Estás bem; não estás? - perguntou ele, ansiosamente.

- Estou maravilhosamente bem, amor. é por ti que às vezes me sinto um pouco perturbada.

- Como por mim? - disse, tocando-lhe levemente as faces com as pontas dos dedos. O toque teve para ela um efeito quase hipnotizador.

O cego foi-se embora pela escada acima. Ela viu-o subir para a escuridão, sem vista, imperturbável. Ignorava que as luzes do corredor se encontravam apagadas. Penetrou na escuridão a passo firme. Isabel ouviu-o no banheiro.

Com tudo às escuras, Pervin movia-se quase inconscientemente no seu ambiente familiar. Parecia conhecer a presença dos objetos, antes de lhes tocar. Era para ele um prazer mover-se assim através de um mundo de coisas, transportado pela torrente numa espécie de presciência do sangue. Não pensava muito, não se perturbava muito. Enquanto conservasse este puro sentido do contato do sangue com um mundo substancial, sentia-se feliz, dispensava a intervenção da consciência visual. Neste estado, havia um certo positivismo rico, roçando algumas vezes pelo êxtase. A vida parecia mover-se dentro dele como uma maré, rolando, e subindo, envolvendo todas as coisas sombriamente. Era um prazer estender a mão e encontrar o objeto invisível, agarrá-lo, e possuí-lo em puro contato. Não procurava recordar, visualizar. Não o queria. A nova forma de consciência instalara-se nele.

O rico influxo deste estado mantinha-o geralmente feliz, atingindo a sua culminação na paixão devoradora pela esposa. Mas, por vezes, dir-se-ia que a onda era sustada e repelida. Então quebrar-se-ia no seu íntimo como um mar de correntes desencontradas, e ele sofria a tortura do caos devastado do seu próprio sangue. Começou a temer esta detenção, esta repulsa, este caos dentro de si próprio, em que parecia encontrar-se puramente à mercê dos seus poderosos elementos em luta. Encontrar certa medida de domínio ou segurança, era o problema a resolver. E quando o problema surgia, desvairando-o, ele cerrava os punhos, como se para compelir todo o universo a submeter-se-lhe. Mas era em vão. Nem mesmo era capaz de se compelir a si próprio.

Naquela noite, porém, encontrava-se ainda sereno, muito embora o invadissem pequenos tremores de desespero inconsciente. Quando se barbeou, teve de manejar muito cuidadosamente a navalha, pois não a dominava, tinha medo dela. Tinha também o ouvido muito apurado. Ouvia a mulher a acender as lâmpadas do corredor, e cuidando do lume no quarto do hóspede. Depois, quando se dirigia ao seu quarto, ouviu chegar o carro. Seguidamente, veio a voz de Isabel, subindo de tom e chamando, como um sino em repique:

- és tu, Bertie?. Então vieste?

E uma voz de homem respondeu através do vento:

- Olá, Isabel! Então como estás?

- Tiveste um péssimo fim de viagem, pois não? Foi pena não te podermos mandar uma carruagem fechada. Sabes? Não sou capaz de te ver.

- Aqui vou. Não gostei do passeio; fez-me lembrar Perthshire. Então, como estás tu? Pareces bem, como sempre - na medida em que posso ver.

- Estou bem, sim - disse Isabel. - Estou mesmo muito bem. E tu, como estás? Parece que um tanto magro...

- Bastante cansado - toda a gente o diz. Mas estou bem, Ciss. E Pervin, como vai ?... ele não está cá?

- Está, sim, lá em cima a mudar de roupa. Vai muito bem. Despe essa roupa molhada; eu mando-a pôr para secar.

- E como vão os dois, quanto a disposição? Ele não se sente aborrecido?

- Não... não; de forma alguma. Pelo contrário. Temos sido muitíssimo felizes, incrivelmente felizes. Nem sei compreender como... é uma coisa admirável: a intimidade, a paz...

- Oh, muito bem! Folgo muito com isso...

Seguiram, e Pervin não ouviu mais nada. Mas uma sensação infantil de desolação se apoderara dele, ao ouvir as suas vozes sacudidas. Parecia excluído, como uma criança que se deixa de parte. Sentia-se ir à deriva, sem saber o que havia de fazer de si. Apoderou-se dele a invencível desolação. Enquanto se vestia, tateava nervosamente, num estado de quase infantilidade. Desagradava-lhe o sotaque escocês da fala de Bertie, e a sua imitação imperceptível por parte de Isabel. Desagradava-lhe o som ligeiramente arrastado, de complacência, na fala escocesa. Desagradava-lhe profundamente a maneira fácil com que Isabel falava da felicidade e intimidade deles. Isto fê-lo retrair-se. Sentia-se irritado e posto à margem como uma criança; tinha a nostalgia quase infantil de ser incluído no círculo da vida. E ao mesmo tempo era um homem, sombrio, possante e enfurecido pela sua deficiência. Devido a esta falha fatal, não podia ter existência autônoma, tinha que depender do apoio de outrem. E era esta dependência que o encolerizava. Odiava Bertie Reid, e sabia ao mesmo tempo que esse ódio era insensato, que era o produto da sua própria fraqueza.

Desceu a escada. Isabel estava só, na sala de jantar. Viu-o entrar, de cabeça ereta, os pés tateando. Tinha um aspecto tão sanguíneo e sadio e, ao mesmo tempo, frustrado! Frustrado: era a palavra que pairava no espírito da esposa. Talvez que fossem as cicatrizes que o sugeriam.

- ó Maurício, ouviste chegar Bertie?

- Ouvi, sim; não está aqui?

- Está no seu quarto. Está muito magro e cansado.

- Creio que trabalha demais.

Entrou uma mulher com uma bandeja, e alguns minutos depois Bertie desceu. Era um homenzinho moreno, com uma fronte muito ampla, cabelo fraco, as madeixas, e olhos grandes e tristes. A sua expressão era desmedidamente triste, quase cômica. Tinha umas pernas curtas e mal feitas.

Isabel reparou que hesitava ao entrar a porta, olhando o marido num relance nervoso. Pervin ouviu-o e voltou-se.

- Ora aqui estamos! - disse Isabel. - Bem, vamos comer.
Bertie dirigiu-se para Maurício.

- Como está, Pervin? - disse, avançando.

O cego estendeu a mão para o espaço, e Bertie apanhou-a.

- Muito bem. Temos muito prazer com a sua vinda - disse Maurício.

Isabel olhou-os de relance, e depois afastou os olhos, como se não pudesse suportar a vista deles.

- Venham. Venham para a mesa. Não têm fome? Eu cá tenho um apetite tremendo.

- Com certeza os fiz esperar - disse Bertie, quando se sentava.
Maurício tinha uma maneira curiosa, monolítica, de se sentar numa cadeira, ereto e distante. O coração de Isabel batia sempre mais forte quando o via assim.

- Não - respondeu ela a Bertie. - Pouco mais tarde é do que o costume. Costumamos ter uma pequena refeição com chá, em vez do jantar. Importas-te? Ficamos assim com um serão mais comprido, sem interrupções.

- Gosto disso - afirmou Bertie.

Maurício procurava, com movimentos curiosos e breves, quase como um gato ajeitando a cama, o seu lugar, o seu garfo e faca, o seu guardanapo, tomando assim consciência de toda a geografia do seu talher. Sentava-se ereto e imperscrutável, com um ar ausente. Bertie observava a figura estática do cego, o delicado discernimento tátil das suas mãos grandes e tisnadas, e o curioso e calmo silêncio da fronte, acima da cicatriz. Era-lhe difícil afastar os olhos, e, sem saber o que fazia, apanhou da mesa uma pequena taça de cristal, coberta de violetas, levou-as ao nariz.

- Têm um belo aroma - disse. - Donde são?

- Do jardim, por baixo das janelas - disse Isabel.

- Com o ano tão adiantado, e cheiram tão bem! Lembras-te das violetas que ficavam junto à parede sul da casa da tia Bell?

Os dois amigos olharam-se e trocaram um sorriso, iluminando-se os olhos de Isabel.

- Então não me hei-de lembrar? Era tão extravagante, a tia Bell

- Era uma curiosa velha com espírito de rapariga - disse Bertie, rindo. - Há uma veia de excentricidade na família, Isabel.

- Há - mas não em ti nem em mim, Bertie - disse Isabel. - Passa-as a Maurício, se fazes favor - acrescentou, na altura em que Bertie ia posar as flores. - Já cheiraste as violetas, filho? Cheira! Têm um aroma tão agradável.

Maurício estendeu a mão, e Bertie colocou a frágil taça junto dos seus dedos grandes, de aspecto quente. A mão de Maurício fechou-se sobre os frágeis dedos brancos do advogado. Bertie desembaraçou-se deles cuidadosamente. Então os dois observaram como o cego cheirava as violetas. Curvou a cabeça, e parecia pensar. Isabel esperava.

- Não cheiram tão bem, Maurício? - disse por fim ansiosamente.

- Muito. - E apresentou a taça, que Bertie apanhou. Tanto este como Isabel se mostravam um pouco receosos, e profundamente perturbados.

A refeição continuou. Isabel e Bertie conversavam intermitentemente. O cego mantinha-se calado. Tocava a comida repetidas vezes, de maneira rápida e delicada, com a ponta da faca, e depois comia pedaços irregulares. Não podia suportar que o auxiliassem. Tanto Isabel como Bertie sofriam: Isabel cismava porquê. Não sofria quando se encontrava a sós com Maurício. Bertie foi dar-lhe consciência de qualquer coisa de estranho.

Depois da refeição, os três sentaram-se a conversar junto do fogão. As taças foram postas numa mesa ali à mão. Isabel ajeitou os troncos que ardiam, fazendo desprender-se nuvens de centelhas brilhantes em direção à chaminé. Bertie notou um ligeiro cansaço no seu rosto.

- Será uma grande alegria para ti quando a criança nascer, Isabel - disse.
Ela olhou-o, levantando o rosto onde se esboçava um rápido sorriso descorado.

- Sim, será uma grande alegria. Parece que começa a demorar. Sim, será uma grande alegria. E também para ti, Maurício, não é? - acrescentou.

- Sim, também - replicou o marido.

- Estamos os dois ansiosos por que venha - disse ela.

- Com certeza - disse por sua vez, Bertie.

Este era um celibatário, três ou quatro anos mais velho do que Isabel. Vivia numa bela residência sobranceira ao rio, guardada por um fiel criado escocês. E tinha as suas amizades entre o belo sexo - não amantes, mas amigas. Contanto que pudesse evitar qualquer perigo de galanteio ou casamento, dedicava a um certo número de mulheres sérias uma amizade constante e firme, e tinha um afeto cavalheiresco por muitas delas. Se pareciam prender-se-lhe demasiado, então recuava, pronto a detestá-las.

Isabel conhecia-o muito bem, conhecia a sua bela constância e bondade, bem como a sua incurável fraqueza, que o tornava incapaz de entrar num contato íntimo de qualquer sorte. Bertie envergonhava-se de si mesmo, porque era incapaz de casar, de se aproximar das mulheres fisicamente. Queria fazê-lo. Mas não podia. No âmago do seu ser era tímido, incuravelmente, mesmo brutalmente tímido. Pusera de parte a esperança, deixara de acreditar na possibilidade de vencer a sua própria fraqueza. Daí resultava que era um advogado brilhante e conceituado, e também um homem de letras de elevada categoria, um homem rico, um grande sucesso social, mas no âmago do seu ser, sentia-se neutro, uma nulidade.

Isabel conhecia-o bem. Desprezava-o, ao mesmo tempo que o admirava. Olhava para o seu rosto triste, para as suas perninhas curtas, e sentia desprezo por ele. Olhava para os seus olhos dum cinzento escuro, onde se refletia uma intuição misteriosa, quase infantil, e estimava-o. Ele tinha um poder de compreensão espantoso - mas ela não receava essa compreensão. Patrocinava-o, como um homem.
E então voltava-se para a figura impassível, silenciosa do marido. Este permanecia reclinado na sua cadeira, de braços cruzados e o rosto um pouco erguido. Os seus joelhos eram direitos e maciços. Isabel suspirava, pegava no atiçador e começava de novo a atear o lume, a erguer nuvens de centelhas frágeis e brilhantes.

- Diz-me Isabel - começou Bertie a dizer - que a falta de vista não tem representado para si um sofrimento insuportável.

Maurício endireitou-se para o ouvir, mas conservava os braços cruzados.

- Não, insuportável, não. De vez em quando revoltamo-nos contra isso. Mas há compensações.

- Dizem que é muito pior a falta completa de ouvido - disse Isabel.

- Creio que sim - disse Bertie. - Há compensações? - acrescentou para Maurício.

- Sim. Deixamos de nos preocupar com um grande número de coisas. - E de novo Maurício endireitou o corpo estendeu os músculos fortes das costas, inclinando-se para trás, com o rosto erguido.

- E isso é um alívio - disse Bertie. - Mas o que vem compensar o aborrecimento? O que substitui a actividade?

Houve uma pausa. Por fim o cego replicou, como dando curso a uma ideia negligente, desatenta:

- Oh, não sei. Há muita coisa quando se não está ativo.



- Há? - disse Bertie. - O quê, exatamente? Sempre me tem parecido que quando não há pensamento nem ação, não há nada.

Maurício respondeu de novo vagarosamente:

- Há qualquer coisa. Não sei explicar o que.

E a conversa descaiu uma vez mais, falando Isabel e Bertie de coisas triviais e de reminiscências, com o cego silencioso.

Por fim Maurício ergueu com impaciência a sua corpulenta figura. Sentia-se rígido e entorpecido. Queria sair.

- Importam-se que eu vá falar a Wernham?

- Não; vai, filho - disse Isabel.

E ele saiu. Os dois amigos ficaram silenciosos. E por fim Bertie disse:

- Não obstante, é uma grande falta, Cissie.

- é, Bertie. Sei que é.

- Qualquer coisa cuja falta se sente a todo o momento - disse Bertie.

- Sim, bem sei. E contudo... e contudo... Maurício tem razão. Há qualquer coisa mais, há qualquer coisa que não sabíamos existir, e que se não pode exprimir.

- O que é? - perguntou Bertie.

- Não sei; é extraordinariamente difícil de exprimir; mas qualquer coisa de forte e imediato. Há qualquer coisa de estranho na presença de Maurício, qualquer coisa de indefinível; mas eu não poderia passar sem ela. Concordo que parece fazer-nos adormecer a mente. Mas quando estamos sós, sinto que nada me falta; parece extraordinariamente rico, quase esplêndido, sabes?

- Desculpa, mas não percebo.

Conversaram sobre umas coisas e outras. O vento soprava e uivava lá fora, a chuva rufava nas vidraças, produzindo um som de tambor, através das portas de dentro fechadas, de um dourado suave. Os troncos ardiam vagarosamente, com pequenas chamas quentes, quase invisíveis. Bertie parecia sentir-se pouco à vontade; nos seus olhos havia olheiras fundas. Opulenta, na aproximação da sua maternidade, Isabel inclinava-se, olhando o lume. O seu cabelo encaracolava-se em madeixas esquisitas, que o homem olhava com agrado. Mas tinha no coração um sentimento curioso de terror antigo, de velho, infinito terror noturno.

- Suponho que todos nós temos as nossas deficiências - disse Bertie.

- Suponho que sim - disse Isabel em tom cansado.

- Infelizmente, mais cedo ou mais tarde.

- Não sei - disse ela erguendo-se. - Sinto-me perfeitamente bem, sabes? O meu futuro filho parece fazer-me indiferente, a tudo, dar-me placidez. Não posso convencer-me de que haja nada que deva perturbar-nos, sabes?

- é uma coisa boa, digo-te - replicou ele vagarosamente.

- é assim mesmo. Suponho que é coisa da Natureza. Se me convencesse de que não havia razão para me preocupar com Maurício, seria perfeitamente feliz.

- Mas sentes necessário preocupar-te com ele?

- Bem, não sei... - disse, sofrendo com o esforço.

A noite decorria vagarosa. Isabel olhou para o relógio.

- São já quase dez horas - disse. - Onde estará Maurício? Com certeza que lá atrás já estão todos na cama. Dá-me licença, por um momento.

Saiu, voltando quase imediatamente.

- Está tudo fechado e às escuras. Onde estará ele? Com certeza que foi para o curral...

Bertie olhou-a, e disse:

- Creio que deve estar aí a chegar.

- Creio que sim. Mas não costuma sair a estas horas.

- Queres que eu vá ver se o vejo?

- Pois sim, se te não importas. Eu iria, se... Não queria fazer esse esforço físico.

Bertie vestiu um velho sobretudo e pegou na lanterna, saindo pela porta lateral. A noite úmida e rumorosa fê-lo recuar. Um tempo assim exercia sobre ele um efeito nervoso. A excessiva umidade que havia por toda a parte fazia-o sentir-se como que imbecilizado. Embora contra-vontade, continuou a andar. Um cão ladrou com violência. Espreitou em todos os edifícios. Por fim, abrindo o postigo duma espécie de celeiro intermediário, ouviu o som duma máquina, e, olhando para dentro com o auxílio da lanterna, viu Maurício, em mangas de camisa, escutando de pé e segurando a manivela duma máquina de moer nabos. Tinha estado a moer beterrabas, dum monte que mal se divisava a um canto, por detrás dele.

- és tu, Wernham? - disse Maurício, escutando.

- Não, sou eu - disse Bertie.

Um grande gato cinzento, meio selvagem, roçava-se pelas pernas de Maurício. O cego inclinou-se para o afagar. Bertie observou a cena, e depois, inconscientemente, entrou e fechou a porta atrás de si. Encontrava-se dentro de um barracão alto, do qual partiam, para a direita e para a esquerda, corredores que passavam em frente do gado estabulado. Observava o movimento vagaroso do outro, inclinando-se para acariciar o gato.

Maurício endireitou-se.

- Veio procurar-me?

- Isabel estava um pouco preocupada.

- Vou já. Gosto de me entreter por aqui com estes trabalhos.

O gato estendera-lhe o seu sinistro corpo felino pela perna acima, cravando-lhe as garras na coxa, afetuosamente. Maurício afastou-as de si.

- Não queria, de forma alguma, ser um estorvo para si, aqui na Granja - disse Bertie, com certo acanhamento e secura.

- Um estorvo? Não, de forma alguma. Gosto que Isabel tenha alguém com quem falar. Receio que o estorvo seja eu. Sei que não sou uma convivência muito agradável. Isabel está bem, não acha? Não é infeliz, pois não?

- Não o creio.

- O que diz ela?

- Diz que está muito satisfeita... Somente, acha-se um pouco preocupada consigo.

- Porquê comigo?

- Talvez com receio de apreensões suas - disse Bertie, cautelosamente.

- Não deve recear isso. - E continuou a acariciar com os dedos a cabeça cinzenta do gato, que baixava as orelhas sobre o pescoço. - O que receio um pouco - prosseguiu - é que ela me ache um peso morto, sempre sozinha comigo aqui.

- Não acho que deva preocupar-se com isso - disse Bertie, embora ele próprio o receasse também.

- Não sei - disse Maurício. - às vezes sinto que não é justo tê-la atrelada a mim. - Depois baixou a voz, com curiosidade. - Diga - perguntou, numa luta íntima - a minha cara está muito desfigurada? é capaz de me dizer a verdade?

- Tem a cicatriz - disse Bertie, cismando. - Sim, desfigura um pouco. Mas é mais lastimável do que chocante.

- No entanto, é uma grande cicatriz.

- Oh, sim.

Houve uma pausa.

- Por vezes, tenho a sensação de que sou horrível - disse Maurício, numa voz apagada, como se falasse para consigo. E Bertie, com efeito, teve um estremecimento de horror.

- Não tem razão para isso.

Maurício endireitou-se de novo, deixando o gato.

- é escusado dizer - disse. Depois, acrescentou, num tom estranho: - Na realidade, não o conheço, pois não?

- Creio que não - disse Bertie.

- Importa-se que eu lhe toque?

O advogado retraiu-se, instintivamente. E contudo, por mera filantropia, disse numa voz apagada:

- De forma alguma.

Mas foi para ele um sofrimento, quando o cego estendeu na sua direção uma mão forte e nua. Sem o querer, Maurício deitou ao chão o chapéu de Bertie.

- Julguei que fosse mais alto - disse, atrapalhado. Em seguida, pôs a mão sobre a cabeça de Bertie Reid, encerrando-lhe a curva do crânio num aperto brando, mas firme, dir-se-ia que apanhando-o. Depois, alargando as mãos, apertou de novo brandamente, com uma pressão considerada e firme, até que cobriu o crânio e a face do homenzinho, desenhando-lhe as sobrancelhas, tocando-lhe em cheio os olhos fechados, tocando o nariz pequeno e as narinas, o bigode áspero e curto, a boca, o queixo bastante forte. A mão do cego apalpou o ombro, o braço, a mão do outro. Parecia apoderar-se dele, passeando-lhe com brandura as mãos sobre o corpo.

- Parece novo - disse por fim com serenidade.

O advogado estava como que aniquilado, incapaz de responder.

- A sua cabeça parece tenra, como se fosse jovem - repetiu Maurício. - E as suas mãos também. Toque nos meus olhos, sim? - toque na minha cicatriz.

Bertie tremia agora com repulsa. Contudo encontrava-se sob o poder do cego, como que hipnotizado. Ergueu a mão e pôs os dedos sobre a cicatriz e sobre os olhos desfigurados. Maurício cobriu-os subitamente com a mão, apertou os dedos do outro sobre as suas órbitas desfiguradas, tremendo fibra a fibra e oscilando levemente, vagarosamente, dum lado para o outro. Assim fez durante um minuto ou mais, enquanto Bertie permanecia como num desmaio, inconsciente, aprisionado.

Então, subitamente, Maurício afastou da fronte a mão do outro, e deteve-a na sua por algum tempo.

- Oh, meu Deus! - disse - agora ficamos a conhecer-nos um ao outro, não é assim? Agora ficamos a conhecer-nos um ao outro.

Bertie não pôde articular resposta. Abriu os olhos, mudo e aterrorizado, vencido pela sua própria fraqueza. Sabia ser incapaz de responder. Estava possuído dum medo insensato de que o outro o matasse subitamente. Por outro lado, Maurício encontrava-se cheio de um afeto quente e penetrante, a paixão da amizade. Era talvez desta mesma paixão da amizade que Bertie mais recuava.

- Agora podemos entender-nos bem; não é assim? - disse Maurício. - Agora podemos entender-nos bem, enquanto vivermos, pelo que nos diz respeito.

- Sim - disse Bertie, procurando evadir-se por qualquer forma.

Maurício permanecia de cabeça erguida, como quem escuta. Esta nova e delicada satisfação da amizade mortal tocara-o como uma revelação e uma surpresa, como qualquer coisa de esquisito e inesperado. Parecia escutar, para ver se era real.
Depois, voltou-se para procurar o casaco.

- Venha; vamos ter com Isabel.

Bertie apanhou a lanterna e abriu a porta. O gato desapareceu. Os dois homens seguiram em silêncio ao longo dos atalhos. Quando se aproximavam, Isabel considerou que as suas passadas tinham um som estranho. Observou depois, com expressão patética e ansiosa, quando entravam. Maurício parecia possuído de uma altivez curiosa. Bertie mostrava-se abatido e tinha os olhos pisados.

- O que há? - perguntou ela.

- Tornámo-nos amigos - disse Maurício, erguendo-se com as pernas afastadas, como um estranho colosso.

- Amigos! - repetiu Isabel, como um eco. E olhou de novo para Bertie. Este recebeu os seus olhos com um olhar furtivo e cansado. Os olhos dele pareciam vidrados de infortúnio.

- Estou tão satisfeita - disse ela, em pura perplexidade.

- Sim - disse Maurício.

Estava verdadeiramente satisfeito. Isabel tomou-lhe a mão nas suas, e apertou-a.

- Agora serás mais feliz, meu querido - disse.

Mas observava Bertie. Sabia que ele só tinha um desejo: fugir desta intimidade, desta amizade que lhe tinha sido imposta. Não podia suportar ter sido tocado pelo cego, terem penetrado na sua doentia reserva. Era como um molusco a quem tivessem partido a casca.

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