(baseado na Lenda Popular)
A índia velha tinha voltado para a fazenda. Não inteiramente
por gosto. Acontece que o amigo era casado, e a esposa botara um gritedo de
fazer cair o céu. Assim, por este pequeno contratempo do destino, a coleção
de cinzeiros ficara inacabada. Inacabada, não. Resolveram dar um tempo
para que as coisas amainassem e pudessem voltar ao regozijo da procura.
Para o gaudério, até que fora bom. Estava com saudades da prenda,
muito embora, ao que parece, a recíproca não se cumprira verdadeira.
Tanto, que na primeira oportunidade, já a moça soltara-lhe os
cachorros. Não contente, tomara-lhe de volta, como sempre o fizera nessas
ocasiões, as coisas que eram dela, mas que lhe permitia utilizar. Mas
até a isso ele estava acostumado. Sabia que, um dia ou dois depois, passada
a raiva e o calor do momento, ela as deixaria, discretamente, outra vez ao seu
alcance, como se nada tivesse acontecido. Era uma afronta? Era. Era tripudiar
sobre ele? Era. Mas o gaúcho gostava da chinoca e não seriam esses
arroubos de demonstração de poder e de força que iriam
demovê-lo de continuar tentando manter a estabilidade da relação
que muitos percalços já sofrera. Além disso, havia coisas
mais sérias para serem pensadas e tratadas. Dentre elas, a recente aversão
que ela passara a sentir pelo contato físico com ele. Aversão
era palavra suave. Pavor, seria mais bem dito. Como nunca fora dessas coisas,
nem com ele, nem com ninguém, pusera-se a trocar orelhas e a excogitar.
Mas excogitar não levava a nada. Nunca levara. Então, como andara
ouvindo umas conversas estranhas, lá na pulperia do Xamuset, quando andara
a matear, sobre uma entidade muy esquisita, que em noites de lua cheia andava
a bater nos galinheiros e a assustar os andantes notívagos, pôs
os aperos no pingo e saiu ao tranquito, pelas carreteiras, fingindo ser um viajante
comum que aproveitava a noite alumiada por vasta e propícia lua, para
ver se encontrava o bruto. E como quem procura, encontra, encontrou. Foi assim,
mais ou menos:
Vinha pela estrada tortuosa, a meio caminho entre a Airosa e o Desvio, quando
o Malacara entesou-se, arrepiando os pelos e apertando a cola. E bufou... Bufou
e empacou e não havia invite que o fizesse avançar. Nem relho...
Nem chilenas rosetudas... Nada! De freio agarrado nos dentes, deu de tentear
arrodear e tomar o caminho de volta... Não fosse pela tenacidade do ginete,
teria galopado até a fazenda e se embretado galpão à dentro.
Mas o gaudério manteve a direção e alguns metros à
frente, saltou-lhe, de dentro de uma capororoca, imenso perro, preto e peludo
como a desgraça do mundo, de dentes arreganhados, postando-se no meio
da estrada.
O gaúcho fez o pelo-sinal, beijou o crucifixo de prata que a prenda,
noutra época, lhe havia brindado e levantando-o à altura do peito,
gritou o "Vade retro, Satana!" e como o cusco não abriu espaço,
aprumou o relho para dar-lhe um para-te-quieto.
Fincou com força os calcanhares no pingo, que afinal, mais por medo das
esporas do que por coragem, saltou para frente, por cima do cachorro, que não
contando com aquela, e muito menos com o relho ameaçador, enfiou o rabo
no meio das pernas e se arrolhou por inteiro, fazendo mermar no gaudério
a vontade de dar-lhe uma esfrega.
O gaúcho abaixou o braço, desarmando-se e dirigiu a palavra ao
sarnoso:
- O cusco velho está querendo apanhar?
Este, que subira a barranca que ladeava a estrada, sentou-se, depois de arrodear sobre si mesmo, como fazem sempre, duas ou três vezes e, para
espanto do gaudério, respondeu:
- Na verdade, só queria dar-lhe um cagaço!...
- E quem é o vivente? - perguntou o capataz.
- Sou o Lobisomem, ora essa! - respondeu o cusco, meio que indignado por não haver sido reconhecido.
O capataz desmontou, amarrou o cavalo junto a cerca de arame da faixa de domínio
e acercou-se da entidade.
- Por casualidade eu andava a procura-lo... - disse, tentando estabelecer o diálogo, depois do quase mal-entendido.
- Sou sabedor... - respondeu o lobo.
- Mas como? - espantou-se o gaudério.
- Porque é minha obrigação saber de tudo e de todos...
- Se for assim, deve saber que tenho me entrevistado com seres muy estranhos
nestes últimos dias, não?...
- O senhor está se referindo ao Saci e ao Curupira?
- Sim... Eles mesmos...
- E comigo, o quê o senhor quer? - perguntou, desconfiado.
O gaúcho pensou um pouquinho e respondeu:
- Saber da sua vida... Por quê anda a criatura a assustar as criações
e os viajantes noturnos?...
- Quer saber tudo, então?
- Quero... Tudinho! - assentiu o capataz.
- Então vamos lá... - iniciou o maldito - Quando um casal tem
seis filhos e acaba concebendo o sétimo, este, se nasce em noite de lua
cheia, vem marcado pela desgraça...
- Desgraça?... Como assim? - interessou-se o gaúcho.
- De nascer com esta sina... De durante o dia ser homem e à noite, notadamente
nas de lua cheia, ser meio gente e meio animal...
- Mas pelo que estou vendo, o vivente agora e todo bicho... Dos mais judiados,
por sinal...
- É que não tenho me alimentado bem... - justificou a criatura.
- E de quê se alimenta?
- De sangue, exclusivamente...
- De sangue humano, como se fosse um vampiro?
- O senhor já viu algum? - espantou-se o cusco.
- Só lá no cinema do doutor Merenda... Por sinal, acabavam todos
com uma estaca enfiada no peito! Corrijo: Começavam, porque as fitas
sempre eram tocados de trás para diante...
- Mas no meu caso - fez questão de explicar o lobo - estacas não
funcionam...
- E a tal bala de prata? - perguntou o gaudério, que trazia uma preparada à feição, no tambor do trinta.
- Isso é bobagem de filme americano!... - ironizou ele.
- Mas do crucifixo o capeta tem medo, não tem?
- Não é medo...
- Se não é medo, o que é? - explorou o Tuquinha.
- É respeito, talvez... Não sei bem...
- E de água benta?
- Água benta eu também respeito... Por acaso o senhor trouxe alguma?
- Para falar a verdade, trouxe... Trouxe uma guampa cheia, que escamoteei lá
da bacia da capela do padre Libório, no Basílio... - confessou o índio velho, que não era de mentir.
- E o andante pretende utilizar? - perguntou, temeroso.
- Acho que não vai ter precisão... Mas nunca se sabe...
A conversa morreu, estando os dois a pensar sobre as possibilidades futuras, então o gaúcho, quebrando o silêncio que se fizera,
perguntou:
- E sobre a transformação?...
- O senhor quer saber quando eu deixo de ser homem e viro este bicho asqueroso?
- Sim! Isso mesmo...
- Só acontece nas sextas-feiras... E têm de ser de lua cheia...
Aí, à meia-noite, esteja eu onde estiver, os pelos e as unhas
me vão crescendo, as roupas se tornando trapos e acabo neste estado em
que o senhor me encontrou...
- E para retornar ao estado original? - quis saber o capataz.
- Primeiro, tenho de cometer alguma judiaria... Beber o sangue de alguém...
Gente ou animal...
- Então não conte com o meu... - preveniu-o o gaúcho -
Porque se depender dele, vai ser cusco para o resto dos tempos...
- Não foi o que pensei... - desculpou-se o Lobisomem - Só estava
explicando como funciona... Depois de ingerir o sangue, quando os galos começam
a anunciar o alvorecer, vou perdendo as forças, devagar, e tenho de procurar
algum cantinho qualquer para voltar a ser o que era...
- Aí eu tenho uma curiosidade... - interrompeu-o o gaúcho - Quando
volta a ser humano, volta como Deus lhe pôs no mundo?
- O senhor está querendo saber se volto nu?
- Isso... Porque já vi um filme em que o transformado voltava a envergar
as mesmas roupas que trajava antes do fenômeno...
- Volto pelado como ferro em briga...
- Isso deve dar-lhe um bom prejuízo, não?
- Se dá, seu moço!... Se dá!... Não hay roupa que
chegue...
- Eu imagino... Deve ser pior que ter cria em crescimento... O que serve hoje,
amanhã já não serve mais... - concordou o chirú.
- Mas este não é o problema maior... - confidenciou a criatura.
- Não?... E qual é, então?
- A culpa... A culpa é a maior das questões...
- O sarnento está dizendo então que sente remorso das judiarias
que pratica?
- É isso mesmo... É muy difícil, no outro dia, conviver
com a lembrança das atrocidades...
- Mas então não sugue o sangue das gentes... Limite-se aos animais
pequenos... Às penosas carijós e outros bichos de criação...
- Eu sei... Mas não é tão simples assim... - desculpou-se
o ser.
- Como não? O amigo tem que ter força de vontade... - depois de
dizer isso, o gaúcho achou que era exatamente o contrário que
era necessário e remendou - Quero dizer... Tem que ter força para
contrariar as vontades... Para ir de encontro aos seus instintos mais arraigados...
De negar a sua patogenia...
- Negar a minha o quê? - perguntou o lobo, ao qual o mencionado prefixo "pato", fizera lembrar que não havia ainda jantado.
- A sua patogenia... A moléstia que o consome...
- Prometo que vou tentar... - garantiu, sem muita convicção.
- Então acho que é hora de voltarmos para as casas... - sugeriu
o capataz, dando a entender que a entrevista se acabara e dirigindo-se ao Malacara
e montando-o.
O Lobisomem ficou onde estava, vendo o gaúcho aprumar-se para ir embora
e quando ele já estava conduzindo o pingo de volta à estrada,
num ímpeto, perguntou, esperançoso:
- O amigo gaúcho não estaria disposto a fazer uma pequena doação?...
O Tuquinha bancou o desentendido:
- Doação, eu faço na igreja do padre Libório...
- Não... Não digo em espécie... - tentou explicar o lobo.
- Que espécie de doação, então?
- Uma gotinha ou outra de sangue... Questão de sobrevivência...
- O pulguento devia era associar-se ao banco de sangue de algum hospital...
- Já pensei nisso...
- Se pensou, por que não associou-se?
- É que hoje em dia é muy perigoso... Hay essa tal de hepatite...
De "aides" e outras mais... - justificou.
O gaúcho, que era bueno, pegou da guampa que trazia presa ao lombilho e jogou-a para o Lobisomem.
- Mas isso não é água benta? - perguntou ele, apavorado.
- Não... - respondeu o gaudério, dando de rédeas no flete
- É sangue de galinha que a patroa apartou para fazer um "molho-pardo"
amanhã...
(Porto Alegre, 17/jun/2003)
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