O gaudério estava dando tratos à bola para achar o que fazer.
Primeiro, fora a vez das Lendas Gauchescas, atrás das quais tinha ido
para por em pratos limpos. Depois, a dos Mitos Rio-Grandenses, que encontrara
aqui e ali e ouvira, dos próprios protagonistas, as verdadeiras histórias
das suas vidas, sem aumentar e sem diminuir. Por um tempo, pensara em buscar
os Mitos Nacionais, para fazer o mesmo, ou seja, aclarar algumas coisas que
a história oficial teimava por afeitar e que talvez não tivesse
sido bem assim. Mas ir atrás deles era coisa que demandava tempo... E
prata. Se dispunha do primeiro, a segunda era escassa como dente inteiro em
boca de ovelha velha. Não dava nem para sonhar, inda mais que a Varig
andava pelas caronas e o Malacara não aguentaria o estirão.
Muito menos a Chimbica, que estava soprando pelas velas...
Então, enquanto as ideias não se alumiavam com alguma alternativa
que lhe parecesse factível e apetitosa às vontades, deixava-se
ficar na varanda das casas, arreado sobre os pelegos, lendo um livrinho ou outro
e cogitando... E de tanto cogitar, nasceu uma ideia. Considerou daqui.
Ponderou dali. Pareceu razoável. Voou para a cozinha e sobre a mesa de
pranchas de lei, esparramou as folhas de almaço. Falquejou com esmero
a ponta da pena que tomara um dia, para as cartas, do rabo da perua velha, sacudiu
o vidro de tinta Pelikan, que já estava no fim e lascou:
Ilmos. Srs. La Fontaine e Esopo:
Quem vos envia esta missiva, escrita à pena de rabo de perua velha
é o Tuquinha, um índio grosso barbaridade, que habita uma vila
muy pequerrucha, situada nos confins do Rio Grande, chamada Basílio.
Para auxiliar-vos na localização, o Continente é uma massa
de terra buena como em nenhum outro lugar hay e sobre o qual empilharam, muy
desavergonhadamente, outros vinte e tantos estados federativos e chamaram ao todo, de Brasil. Por sinal, contrariando aos brilhantes físicos e matemáticos que nasceram e passaram a vida a fazer contas na vossa augusta e pedregosa terra,
- no caso do ilustríssimo senhor Esopo, - é aqui o único
lugar do mundo onde o triângulo se apoia sobre um dos vértices
e consegue se manter equilibrado. Não em equilíbrio lábil,
como seria de esperar-se, mas em equilíbrio estável, o que prova
a grandeza da nossa gente e a sua força de vontade.
Mas não é para decantar as nossas virtudes que vos escrevo. Ou
melhor: É e não é. Mas não quero falar. Pelo contrário,
quero é convidar-vos para que venham aprecia-las de perto. "In loco",
como diríeis na vossa vizinha e finada língua.
Em aceitando este convite, decerto que, além de honrar-me por receber
na minha humilde casa tão ilustres figuras, muito terão a ver
e a apreciar das nossas coxilhas majestosas, dos nossos ventos enregelantes
e, sobretudo da nossa cozinha, principalmente da campeira onde, modéstia
à parte, deixo até o mais anônimo dos gourmets de água
na boca, mormente quando asso um churrasco de borrego de sobreano em fogo de
chão e sobre o qual vou aspergindo a salmoura, com jeito, auxiliado por
um raminho de guanxuma, ou ainda, quando preparo, em panela de ferro, um carreteiro
de charque ou de puta-pobre. (Por falar nisto, se vos for do gosto, apresentar-vos-ei
outras que, se não ricas, bonitas).
Certo de que não resistireis ao convite, despeço-me muy atenciosamente,
já antegozando o prazer do nosso encontro e desculpando-me por, ao invés
de duas cartas, uma para cada vivente, escrever-vos apenas uma. Explico: Como
sei que se tornaram inseparáveis depois da... Do... De desencarnarem,
sei também que, apesar da língua diversa, dos países longínquos
e das épocas diferentes em que viveram, tal e qual ao que aqui nestas
terras chamamos de corda e de caçamba, vossas senhorias devem andar acolherados
um ao outro como bois de canga, a discutir permanentemente as vossas luminosas
ideias, sendo ao meu ver, um despropósito enviar uma missiva para
Paris e outra para Atenas, ainda mais com os preços abusivos cobrados
pelos selos nos dias de hoje.
Vosso leitor e admirador:
Tuquinha de Barros
Basílio, 31 de julho de 2003.
P.S.: Rogo que envieis notícias da data da chegada, para que possa
buscar-vos de charrete na estação ferroviária.
Escrita a carta, o gaudério leu e releu. Riscou uma coisinha aqui. Outra
ali. Dobrou com cuidado, colocou num envelope, endereçou adequadamente
para os viventes, lambeu para ativar a goma e foi até a vila, no Malacara,
para posta-la.
Verdade é que se criou, na agência dos correios, alguma altercação,
uma vez que o endereço não estava completo, mas como o gaúcho
era de lua e o funcionário o conhecia bem, acabou aceitando o serviço
e a carta desapareceu, devidamente selada e carimbada, pela fenda aberta na
parede, sob o título "outras localidades", escrito em letras
graúdas, em um pedaço de cartolina.
* * * * *
Passou-se uma semana ou duas... Talvez um pouco mais. Certa manhã, quando
o gaúcho já nem lembrava da missiva que enviara, junto dos jornais
que agora chegavam ainda cheirando a tinta fresca, chegou também um envelope,
devidamente lacrado e sobrescrito em uma grafia estranha, que mais parecia um
amontoado de gravetos.
Ansioso, abriu-o. Virou o conteúdo para um lado, virou para o outro e
nada de entender aqueles dizeres pouco comuns naquelas bandas.
Gritou pela chinoca, que era letrada. Nada, porque a despeito da soberba, não
deu nem para a arrancada, com exceção da identificação
do envelope, que provinha, com quase toda a certeza, da Grécia, conforme
atestavam os selos nos quais vinha estampado o Panteon.
Correu para a casa-grande, onde apelou para o amigo, o deputado, que fez a tradução
no ato. Dizia, entre outras coisas:
"Agradecemos e aceitamos ao convite, informando que estaremos aí
no dia..."
La Fontaine et Esopo.
O gaúcho ficou que não cabia em si de contentamento. Os homens
estavam vindo diretamente para o Basílio e chegariam no dia seguinte,
conforme dito e escrito no aviso de confirmação. Mal dava tempo
para arrumar as coisas... Passar uma vassoura na casa... Prover as camas...
Encher de penas novas os colchões para que ficassem bem fofos... Pintar
o cabelo da patroa para que fizesse boa figura... E só!
* * * * *
O trem parou na estação do Basílio onde o gaúcho,
devidamente paramentado, vestindo as melhores bombachas, estava à espera
dos ilustres viajantes que devidamente orientados pelo chefe da composição,
saltaram sobre a plataforma e ficaram a esperar que as bagagens fossem descarregadas.
E foram.
Do grego, uma malinha muy choldra, quase vazia, como era de esperar-se de um
habitante daquelas plagas, que por sinal, feio e corcunda, vinha trajando um
manto de linho, branco como alma de menina moça e muito pouco adequado
para o nosso clima.
Do francês, uma almanjarra que não tinha mais fim de malas, caixas
de chapéus, cestos de vime, baús de couro, de madeira e perucas.
Uma profusão de perucas de todas as cores e nuanças, feitios,
penteados e comprimentos.
Descarregada a bagagem, o chefe-de-trem soprou no seu apitinho e os maquinistas
abriram as válvulas, pondo a locomotiva em marcha.
O gaúcho aproximou-se dos viajantes e apresentou-se, dando-lhes as boas-vindas,
perguntando se haviam feito boa viagem e oferecendo-se para ajuda-los a carregar
as coisas até a charrete.
Esopo, agradeceu e declinando da cortesia, pôs a canastra nas costas,
ou melhor, sobre as costas e tomou o rumo indicado.
La Fontaine, suspirou profundamente entediado, aspirou rapé de uma
caixinha dourada que tirara de um dos bolsos do jaquetão, espirrou bem
espirrado e puxando um lencinho muito pouco másculo, do punho rendado,
secou suavemente o nariz, empinou-o e seguiu para a carroça, pisando
macio sobre os sapatos de fivelas grandes e saltos altos, deixando as malas
a cargo do capataz, que se viu em bêtas para carregar tudo aquilo. Mas
afinal, visita era visita.
Carregada a carroça e amarrada a bagagem, para que não sofresse
nenhum estropício no caminho, tomaram o rumo da fazenda aonde chegaram
passado do meio-dia e eram esperados por todos, à beira do fogo que o
capataz mandara fazer no chão e onde os espetos de pau falquejado, sustentavam
as carnes que já estavam quase no ponto, assadas pelo Derneval que, como
é sabido, era o segundo em comando, na ausência do gaudério.
As apresentações foram feitas. Primeiro o deputado. Depois a senhora.
Em terceiro lugar a viúva, que já havia corrido o fecho da blusa
de couro até a metade. Em quarto, o Derneval. Em quinto... Em quinto
os peões, que haviam tomado banho e se barbeado para esperar também
os ilustres visitantes e que agora, gravitavam em volta deles, servindo aqui,
oferecendo ali, cheios de rapa-pés.
Como vinham os lentes cansados da viagem e desarranjados com relação
ao fuso horário, seguiram, logo após haverem enchido o bucho,
para a casa do capataz, onde a viúva, que tinha experiência, já
lhes havia preparado os leitos, onde deitaram e dormiram, tendo prometido antes,
ao gaúcho, que no dia seguinte começariam as charlas sobre as
fábulas.
(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)
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