Na quarta noite, aparentemente, La Fontaine havia voltado ao normal. Isto é,
ao seu estado insuportável de crítico contundente da obra de Esopo,
à qual não deixava de, à menor chance, tecer cáusticas,
desdenhosas e severas críticas.
Tal atitude surtia três efeitos distintos: o primeiro, no próprio
colega de letras, que já devia estar acostumado àquelas crises de
ciúmes, uma vez que vinha há uma eternidade convivendo com ele e
tinha a grandeza de não lhe dar a mínima pelota. O segundo, na viúva,
que encontrara alguém a altura da sua soberba e lhe lançava sorrisinhos
e beijinhos, cada vez que ele se pronunciava menosprezando os escritos do grego
e enaltecendo os próprios. O terceiro, no gaudério, que se identificara
com Esopo, que era um homem simples, porém de muita inteligência
- o que não era o seu caso - e perspicácia, na defesa do qual partia
sempre, muitas vezes com educação e tato e outras, que nem tanto.
O capataz, que se havia autoproclamado mestre de cerimônias, deu início
à noitada de charlas, perguntando:
- Senhor La Fontaine, esta noite lhe cabe, não?
O francês simulou uma rouquidão que não o acometia e a viúva,
muy solícita, intercedeu em seu favor:
- Monsieur está um pouco afônico...
- Dor na goela? - quis saber o gaúcho.
La Fontaine sacudiu a cabeça, em gesto de concordância e o grego,
gentilmente, sugeriu:
- S... S... Se o colega está indisposto eu posso narrar outra das minhas
histórias, no seu lugar...
- Que pena! - exclamou a moça - Eu estava tanto querendo ouvir monsieur
dizer outro versinho!...
O gaudério velho, preocupado com a saúde do estrangeiro, sentiu-se
na obrigação de perguntar:
- Pegou frio?...
Ao que a moça respondeu, ligeira:
- Não!... - e aí, perdeu-se: - Monsieur faz tudo de ceroulas...
O chirú velho coçou a cabeça, sem saber se havia entendido
bem a profundidade do comentário e então, voltando-se para o grego,
achou melhor autorizá-lo, antes que a situação transpusesse
a linha do admissível:
- Acho então que a palavra está com o senhor...
A chinoca, por debaixo da mesa, encostou a perninha na de monsieur La Fontaine,
enquanto Esopo preparava-se e, por fim, a história começou:
- Ho... Ho... Hoje vou narrar a fábula que intitulei de Hércules
e o carroceiro...
- Hércules é o nome daquele ginásio de fisiculturismo que
existe lá perto de casa, onde rapazes viris e fortes vão exercitar-se!...
- informou a donzela, lembrando que gostava de ficar na janela, quando estava
na capital, para ver o entra e sai dos moços.
- Mas este, da história, é o semideus da mitologia grega, querida!
Ao que a moça exclamou:
- Nem me fales em semideuses, Lindinho, porque conheci cada um!...
- Ué, tu já estiveste na Grécia?
- Não... Conheci lá em Copacabana!...
- Semideuses em Copacabana?! - espantou-se o gaúcho.
- Isso mesmo, Lindinho, só que com a vírgula bem maior do que aquelas
que têm os das estátuas gregas...
O capataz, resolveu dar oportunidade ao narrador, que prosseguiu:
- U... U... Um carroceiro levava uma carroça muito carregada, transitando
por uma estrada lamacenta quando as rodas caíram num olho d'água
e o veículo atolou...
Neste momento, a moça fez uma pergunta:
- Se atolou ou atolou-se?
O autor da história, que não pensara, na época em que a escrevera,
na sutil diferença que poderia haver entre uma e outra forma de expressão
e nem agora, decorridos os séculos, conseguia ainda imaginar, respondeu:
- Nã... Nã... Não sei, minha senhora... Fa... Fa... Faz alguma
diferença, na vossa língua?
- Muita! - disse ela, explicando: - Aqui no Rio Grande, quando se diz atolou-se,
quer-se dizer que foram as rodas traseiras... Quando, por outro lado, diz-se se
atolou, foram as rodas dianteiras...
O grego pensou um pouquinho e, não entendendo bem as nuances do idioma,
que era para lá de complicado, saiu pela tangente:
- A... A... A carroça em questão tinha apenas duas rodas...
- Ah, então se atolou-se! - explicou a moça, cheia de si.
O francês, que também não entendera nada daquela semântica
questão, mas entendendo, no conjunto, que a moça dera uma demonstração
inequívoca de sapiência, aplaudiu-a, eufórico.
O gaudério sacudiu a cabeça, contrariado e o grego apressou-se em
continuar a charla:
- Po.... Po... Por mais que o carroceiro se lamentasse, os cavalos não
conseguiam liberar o veículo... E... E... Então, no auge das suas
lamurias, o condutor pediu aos céus pela ajuda de Hércules, que
de pronto apresentou-se para ajudá-lo...
- Que moço bonzinho! - voltou exclamar a viúva - Eu, por mais que
pedisse um homem aos céus, jamais fui atendida com tanta presteza...
- Ora, querida... E eu? - perguntou o gaúcho, carinhoso.
- Lindinho, vai te olhar num espelho para tomar tenência de quão
diferente és de um Hércules!
Esopo tossiu - e até para tossir, gaguejava - e continuou:
- Hé... Hé... Hércules fez a volta na carroça, estando
ainda o carroceiro sobre ela, a bendizer o providencial envio de socorro e dirigiu-se
ao mortal, dizendo-lhe: "Se fizeres força, junto com os cavalos, para
ajudares a remover o veículo deste lodaçal, eu também te
ajudarei e juntos, lograremos êxito... Se no entanto não levantares
um dedo para sair deste buraco, nem Hércules poderá ajudar-te!"
- E terminou a história? - perguntou a chinoca, que sempre estava a
esperar por mais.
- Te... Te... Terminou. - concordou o autor.
La Fontaine, esquecendo-se que fingira estar impossibilitado de falar, observou,
no melhor do seu azedume:
- Para variar, outra história sem pé e sem cabeça!...
A moça concordou plenamente, soprando para ele um beijinho, que decolou
da palma da sua mão e foi agarrado no ar pelo destinatário, que
o conduziu ao coração.
- Para mim a história está claríssima! - discordou o gaudério.
- Claríssima? Não digas bobagens, Lindinho!
La Fontaine aprovou, em gênero, número e grau a observação
da moça e o gaúcho voltou a manifestar-se, explicando:
- A moral da fábula é que devemos ajudar-nos para que os céus
também nos ajudem!
- Isso é verdade!... - assentiu a viúva.
O gaudério alegrou-se por ver que, finalmente, concordavam em alguma coisa,
mas a alegria durou pouco, pois ela complementou:
- Sempre que pedia aos céus um homem, eu saía para a rua muito bem
produzida, que era para facilitar o trabalho divino...
- Além de burra, é puta! - deixou escapar o chirú, baixinho,
que era para que os convivas não ouvissem.
- Retira! - exigiu a moça, que ouvira tudo, ofendida.
O gaúcho resignou-se, parcialmente:
- Eu retiro o "burra"!...
A moça satisfez-se e a charla continuou, de onde fora interrompida:
- O... O... O seu Tuquinha tem razão... - iniciou o grego.
- Quanto a eu ser burra? - perguntou a moça, inconformada.
O grego empalideceu:
- Nã... Nã... Não, senhora! Fa... Fa... Falava da interpretação
que deu à minha ideia... Era exatamente esta, quando imaginei e
escrevi a história...
- No que foi muito bem sucedido, pois a partir dela, todos ficaram cônscios
de que não basta esperar ajuda... Hay que se ajudar a si mesmos... - complementou
o gaudério.
O grego corou, visivelmente encabulado e a moça achou que, não fosse
aquela corcunda medonha, o homem não seria totalmente desprezível,
tirando, é claro, a mania que tinha de dormir no chão, sobre um
xergãozinho muy diminuto e ralo ao qual, certamente, sua coluna não
aguentaria.
- O senhor Esopo é casado? - quis saber ela, melosa.
- Nã... Nã... Não senhora... Não sou, não...
- Pergunto só por perguntar... - explicou a donzela - Porque como diz o
Lindinho, cavalo amarrado também pasta...
O grego ficou, desta feita, roxo como um pimentão e foi salvo pelo francês,
que perguntou, ofendido:
- A madame acha o colega mais atraente que eu?
- Não, monsieur... Além do mais, o senhor Esopo é
um escravo e eu tenho por princípio não promover a ascensão
das classes inferiores... Não para o meu leito, é claro!...
Ao que o capataz ironizou:
- Com raras e honrosas exceções, não é, querida?
A moça pensou um pouquinho, avivando a memória e ponderou:
- Na verdade, houve uma exceção ou outra, Lindinho... Mas não
foram muitas...
- E eu sou uma delas?
- É claro, não!... Afinal, não passas de um pé-rapado...
O francês vibrava com o diálogo, enquanto o grego, não via
uma fenda onde se enfiar, para fugir daquele bate-boca constrangedor e por fim,
a moça amenizou o que dissera:
- Por sorte, tens outras virtudes!
- E quais são? - perguntou o gaúcho.
- Uma delas, Lindinho, é que tu, diferentemente do que o senhor Hércules
fez com o carroceiro, ao invés de tirar-me do buraco, me estás sempre
querendo colocar nele!
(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo)
Que tal comprar um livro de Luiz Morvan Grafulha Corrêa?![]() Barbaridade, tchê! ![]() Tuquinha e os Mitos Rio-Grandenses |