Na sétima noite, monsieur apresentou-se animadíssimo,
trajando um jaquetão cor-de-rosa, camisa de rendas bastas, peruca cacheada
de uma cor azul turquesa e sapatos de saltos três quartos, de fivelas
prateadas.
Esopo, por sua vez, veio envolto pelo mesmo manto de linho branco que o acompanhava
desde que chegara. Provavelmente, o mesmo que vestia desde que se conhecia por
gente grande.
O gaúcho achava um espetáculo a roupa do grego, que muito bem
traduzia a simplicidade tão característica do povo culto e bravo
da sua pequena ilha.
A viúva, tinha faniquitos ao deparar-se, a cada dia, com as roupas exuberantes
de monsieur, a quem julgava como suprassumo do bom gosto e da masculinidade.
Como diz o ditado, com muita propriedade, gosto não se discute.
O gaudério, trajava as bombachas velhas, as alpargatas de sempre, que
utilizava para andar em casa e uma camisa de flanela axadrezada, para lá
de gasta e puída.
A matraca, que sempre gostara de vestir roupinhas escabrosas, desde os tempos
da repartição, quando já apreciava mostrar a alcatra, veio
com sua saia justa e curta, de couro bege e uma blusinha mais justa ainda, também
de couro, azul, com fecho na parte dianteira, corrido só até a
metade, deixando à mostra a leiteria.
Monsieur, antes que o capataz passasse a palavra para Esopo, que já
estava abusando do seu uso, adiantou-se:
- Hoje quem vai falar sou eu!
- Que bom mon amour!... - exclamou a donzela, com um gritinho, aproveitando
a oportunidade, para abraçá-lo e beijá-lo.
- E que fábula o senhor nos vai narrar? - quis saber o gaudério,
depois que a zinha usara e lambuzara, para fazer o devido registro, que vinha
organizando, para as gerações futuras.
- Vou contar-lhes a fábula do Cordeiro e do Lobo. - respondeu, cheio
de si, complementando: - De autoria do meu colega, Esopo e com a sua autorização.
O gaudério apontou, na resma de almaço que servia de ata às
charlas, usando a pena que um dia, para as cartas, arrancara ao rabo da perua
velha e que ia, de quando em quando, mergulhando no vidro de tinta Pelikan,
para abastecer.
Esopo ajeitou a corcunda de encontro ao espaldar da cadeira e esperou, pacientemente,
que o francês fizesse a narrativa.
A perua, não a da pena, a do capataz, tomou assento, ao lado daquele
que faria a narrativa, como de hábito, e encostou a cabecinha no seu
ombro almofadado por largo enchimento de feltro na casaca e aguardou, piscando
os olhinhos ansiosos.
O mestre de cerimônias sinalizou, favoravelmente a que tivesse início
a charla e o francês lascou, sem mais delongas:
- Um cordeiro bebia às margens de um córrego...
Aí, a viúva, contorcendo-se junto ao peito do narrador, para poder
falar-lhe de olhos nos olhos, perguntou:
- Ué, essa não é em versinhos?
Monsieur apertou-lhe, delicadamente, o narizinho, com os dedos esguios
e brancos e, sacudindo a cabeça, continuou:
- Quando chegou o Lobo e perguntou-lhe: "Por quê bebes da mesma água
que eu...? Não vês que assim a água que me toca chega turva?..."
- Que lobo mais malvado!... - exclamou a moça e o narrador prosseguiu,
depois de endereçar-lhe um sorrisinho sem graça:
- O pobre cordeiro, trêmulo de medo, tentou argumentar: "Senhor lobo,
como posso estar a contaminar a sua água se eu bebo a jusante?..."
- Jusante? - voltou a interromper a moça - O quê é isso?
O marido, que conhecia a matéria, explicou:
- Jusante, querida, significa para onde as águas fluviais correm... É
a parte mais baixa... Ao contrário de montante, que é de onde
elas provem... Da parte mais alta...
- Ah, entendi!... - exclamou ela, alegre - É como nas nossas contas correntes,
não é?
O gaúcho, que não entendera bem a analogia, arriscou em perguntar:
- Como assim, querida?
- É que no nosso caso, o dinheiro flui de montante, que é minha
conta, onde sempre tem alguma coisa, para jusante, que é a tua e onde
nunca tem nada...
O gaudério achou que ela havia entendido bem a explicação
e pediu para o francês que retomasse a narrativa.
Monsieur prosseguiu:
- O Lobo digeriu o argumento do Cordeiro, mas não se deu por satisfeito...
- Talvez porque não soubesse a diferença entre jusante e montante...
- observou a viúva, muito senhora de si.
- Não... - explicou La Fontaine - Saber, ele sabia, mas não queria
conversa...
- Mas queria o quê, então? - ela voltou a perguntar.
O capataz, impaciente com todas aquelas interrupções, explicou,
ligeiramente alterado:
- Ele queria era comer o cordeirinho!
A moça horrorizou-se:
- Nem fala uma coisa dessas, Lindinho! - depois, ansiosa, voltou a encarar monsieur,
perguntando: - É verdade, petit biscuit?
Monsieur aquiesceu e ela, rápida, quando se tratavam de barbaridades
e de coisas maliciosas, sugeriu, ao pé do ouvido do francês:
- Monsieur, depois da historinha, não gostaria de brincar de lobo
e de cordeirinho, comigo?
La Fontaine, que como já visto e comprovado, tinha medo, mas não
tinha vergonha, olhou para o gaudério, para ver se ele tinha ouvido a
tirada e, achando que não, suspirou aliviado e continuou:
- Como eu dizia, o Lobo não se satisfez com as desculpas do Cordeiro
e contra argumentou: "Mas alguém já turvou a minha água..."
O Cordeirinho, trêmulo, voltou a explicar-se: "Mas não eu,
meu senhor..." Ao que o Lobo, que não estava para conversa fiada,
retrucou: "Pois então foi teu irmão!..."
- Que maldade!... - tornou a exclamar a moça.
La Fontaine ignorou a observação, continuando:
- "Eu não tenho irmãos!..." - defendeu-se o pobre animalzinho,
acuado. O Lobo pensou um pouco e voltou à carga: "Pois então
foi o teu pai, ou teu avô!..."
- E fora? - quis saber a viúva, que não tinha entendido ainda
muito bem o sentido da fábula.
- Deixe o senhor La Fontaine contar a história, querida!... -
intercedeu o gaúcho, em auxílio do narrador que, volta e meia,
quase perdia o fio da meada, tanto que era interrompido e aparteado.
- O Cordeirinho, não tendo mais argumentação, foi devorado
pelo Lobo... - conclui monsieur.
A matraca ficou quieta, esperando o final da história, que já
havia sido dada por encerrada e quando se deu conta de que não vinha
mais nada, desabafou:
- Dessa historinha eu não gostei, mon bel ami!
Monsieur desculpou-se, com um gesto e o gaúcho, ainda inebriado
com a narrativa, observou, sem se haver apercebido, por ignorância, do
verdadeiro sentido do termo bel ami que a patroa utilizara:
- Mas é uma bela história!...
- Mas Lindinho, é horrível!... Cheia de crueldade!...
- É uma demonstração da força contra a lógica...
Ou, mais precisamente, de que contra a força, não há argumento...
- achou por bem explicar o gaúcho, que ouvira a narrativa com toda a
atenção.
- Isso é verdade... concordou a viúva - Eu também já
sucumbi muitas vezes, ante a força...
- A... A... À força de argumentos mais fortes? - perguntou Esopo,
manifestando-se pela primeira vez naquela noite.
O gaúcho fez o pelo sinal, imaginando o que viria. E veio.
- Não, senhor Esopo... Ante a força bruta e viril de belos rapazes
mesmo!...
Agora foi a vez de La Fontaine abismar-se:
- É mesmo, madame?... - e completou: - Ces't la joie de vivre!
- Ué, já estava achando que monsieur não gostava!
- retrucou a moça que, para falar a verdade, já andava com a pulga
atrás da orelha, uma vez que o francês alisava.. Alisava... Mas
não passava o ferro.
Ao francês, ocorreu mencionar que, de rapazes fortes e viris, também
gostava, mas resolveu calar-se.
O chirú, boiando no palavrório estrangeiro, do qual conhecia só
uma palavrinha que outra, meio que, por sexto sentido, achou que não
devia estar saindo boa coisa e resolveu por bem, mudar o rumo da conversa:
- O senhor La Fontaine amanhã há de nos brindar com outra pérola,
não?...
O francês assentiu:
- Já sei, até, qual será!...
A chinoca, vendo que outro dia passara em vão, agastou-se e, amuada,
perguntou, olhando para o francês, bem de frente, quase que à queima-roupa:
- Mon bijou, como é muito comum fazer-se aqui nessa terra, eu
pergunto: Monsieur veio até o Basílio para comer ou para
conversar?
(do livro Tuquinha, La Fontaine e Esopo )
Que tal comprar um livro de Luiz Morvan Grafulha Corrêa?![]() Barbaridade, tchê! ![]() Tuquinha e os Mitos Rio-Grandenses |