Eu era pessimista. Ou melhor, assim me considerava. Diante dos fatos atuais,
nem realista mais sou. Irreconhecível, brotou-me algo não semeado,
muito menos cultivado. Mágica, surgiu que nem coelho da cartola. Como
aquela outra da caixa, a de Pandora, quando tudo o mais voou. Tá
vendo? Sorrio enquanto escrevo. Um sorriso que não precisa de espelho
para ver sua veracidade, tanto quanto no escuro do sono tenho gargalhado, dizem.
Dialogo com lembranças e registros de memória e - talvez porque
mau arquivista - nada encontro que se assemelhe a isso. Retalhos de uma utopia
ainda me vêm à mente. Do que mais me recordo é do cheiro
e da cor do sangue; não é uma metáfora, na tortura, como
preso político. Também de mornas e solitárias lágrimas
diárias, quando meu microcosmo sumiu. E eu, junto. Exilado, principalmente
de mim. A distância (física e geográfica) mais do que a
dor, levou-me a outras fronteiras, as da razão. Só depois de muito
enlouquecer me curei, como num processo analítico. No estrangeiro, o
conforto de assim me sentir. Depois de amargar o nada ter, a descoberta que
só (?) queria ser: que pretensão, o luxo do consumismo! E a literatura,
parte de minha salvação. Onde me ancoro e navego. Amarro-me e
me solto, body jump na vida. Aqui tudo posso e experimento, mais corajoso
e permissivo ainda.
Acredito no amor. Aliás, amar é que é acreditar. No outro.
É a própria esperança. Minha única fé, desde
então; meu único partido, a mulher que eu amo. Independente por
natureza, sempre à margem, na terceira via, sem obedecer a ninguém,
até que ela apareceu. Por ela ajoelho e rezo. Com ela me acalmo e durmo.
Narradora de mim, mesmo em silêncio. Dos vários mins que
existem, e que ela - ó glória - nunca tentou classificar, rotular,
muito menos unificar. Sem pretender, assim que chegou calcificou a fratura
de que eu padecia. Foi o sol e - paradoxo - a não imobilização
que precisava para melhor consolidá-la. Sem gesso algum. Poder me movimentar
livremente, partir e voltar, se e quando quiser. Enquanto ela me fizer sentido.
A leitora privilegiada que termina o livro que sou, sempre em edição.