A Garganta da Serpente
Veneno Crônico crônicas
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Ontem

(Ana Guimarães)

As borbulhas transbordavam e escorriam ao longo da flute, molhando a toalha da mesa. Passou o dedo devagar, de baixo para cima, e levou-o à língua. Antecipava aquele homem como o gosto do champagne agora. Tim-Tim. Brindou sozinha, como sabia, terminaria. Sorveu, gole a gole, a gelada bebida. Poderia acabar com tudo, antes mesmo de começar, bastava querer. Diria ciao, a gente se vê. Todo mundo entende. Maneira polida de dizer não quero mais. Mas queria. Despediria-se dele enquanto amiga, mesmo em dúvida. Não o confundiria mais do que já estava, era um bom homem. Um tanto dramático, teatral, como ela própria, aliás, sagitariana cinco vezes, a amiga astróloga vivia repetindo. É tarde, se entregara com surpreendente energia àquela sensação. Pensar para agir, agir para pensar.

Tinha, desde menina, uma extraordinária capacidade de lidar com o paradoxo sem enlouquecer. Maluco ficava mais maluco com ela, mas não surtava jamais. E de quebra aprendia a sonhar. A dar passagem aos contrários nos trilhos. A se render ao sem nexo do trem sem destino. Pular de um vagão para outro, em movimento, sem sequer estremecer. Mergulhar no absurdo com a tranqüilidade de um monge: chegamos, mas a estação não mais existe. A transmutar, como um xamã, os pólos, as dimensões, voluntariamente. Coerência, controle e razão é que desesperam. Delirar, embora com os pés no chão: de repente clic, apertar um botão, as luzes acender e o filme acabou. O sonho. Despertou. O dia nasceu. Pra gente poder dormir. Sentimentos verdadeiros são assim, impronunciáveis, não cabem em definições. Moscas volantes na vista, não se consegue fixá-las, por mais que se tente.

No parapeito da janela, o vento fustigava o toldo e seus cabelos. Suicidar-se, quanta estupidez! Tem gente que é capaz de. Com a morte é bom só flertar, o que faz agora, trôpega, passando as pernas para o lado de fora, balançando-as, qual sua voz nesse solilóquio, princípio de embriaguez. Um burburinho de gente se faz ouvir, e gritos de pu-la, pu-la. Corda? Amarelinha? Essa turba não sabe brincar. Quem não sofre não goza, e o pensamento naquele rei grego (viu como as palavras já tropeçam?) excita e tortura. Migalhas de tempo são tudo o que resta para o resto das coisas.

Desceu na varanda. Aproveitou e borrifou um pouco de água nas plantas. Pelo vidro podia ver a multidão se dissipando lá embaixo. Hoje não tem circo. Cinco minutos depois nos braços de Morfeu, vestida de givenchy (chanel nº5 é muito doce, enjoativo), debaixo do edredom, ar condicionado ligado a toda. Que inverno mais quente o Rio está tendo esse ano!

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