As borbulhas transbordavam e escorriam ao longo da flute, molhando a toalha
da mesa. Passou o dedo devagar, de baixo para cima, e levou-o à língua.
Antecipava aquele homem como o gosto do champagne agora. Tim-Tim. Brindou sozinha,
como sabia, terminaria. Sorveu, gole a gole, a gelada bebida. Poderia acabar
com tudo, antes mesmo de começar, bastava querer. Diria ciao,
a gente se vê. Todo mundo entende. Maneira polida de dizer não
quero mais. Mas queria. Despediria-se dele enquanto amiga, mesmo em dúvida.
Não o confundiria mais do que já estava, era um bom homem. Um
tanto dramático, teatral, como ela própria, aliás, sagitariana
cinco vezes, a amiga astróloga vivia repetindo. É tarde, se entregara
com surpreendente energia àquela sensação. Pensar para
agir, agir para pensar.
Tinha, desde menina, uma extraordinária capacidade de lidar com o paradoxo
sem enlouquecer. Maluco ficava mais maluco com ela, mas não surtava jamais.
E de quebra aprendia a sonhar. A dar passagem aos contrários nos trilhos.
A se render ao sem nexo do trem sem destino. Pular de um vagão para outro,
em movimento, sem sequer estremecer. Mergulhar no absurdo com a tranqüilidade
de um monge: chegamos, mas a estação não mais existe. A
transmutar, como um xamã, os pólos, as dimensões, voluntariamente.
Coerência, controle e razão é que desesperam. Delirar, embora
com os pés no chão: de repente clic, apertar um botão,
as luzes acender e o filme acabou. O sonho. Despertou. O dia nasceu. Pra gente
poder dormir. Sentimentos verdadeiros são assim, impronunciáveis,
não cabem em definições. Moscas volantes na vista, não
se consegue fixá-las, por mais que se tente.
No parapeito da janela, o vento fustigava o toldo e seus cabelos. Suicidar-se,
quanta estupidez! Tem gente que é capaz de. Com a morte é bom
só flertar, o que faz agora, trôpega, passando as pernas para o
lado de fora, balançando-as, qual sua voz nesse solilóquio, princípio
de embriaguez. Um burburinho de gente se faz ouvir, e gritos de pu-la, pu-la.
Corda? Amarelinha? Essa turba não sabe brincar. Quem não sofre
não goza, e o pensamento naquele rei grego (viu como as palavras já
tropeçam?) excita e tortura. Migalhas de tempo são tudo o que
resta para o resto das coisas.
Desceu na varanda. Aproveitou e borrifou um pouco de água nas plantas.
Pelo vidro podia ver a multidão se dissipando lá embaixo. Hoje
não tem circo. Cinco minutos depois nos braços de Morfeu, vestida
de givenchy (chanel nº5 é muito doce, enjoativo),
debaixo do edredom, ar condicionado ligado a toda. Que inverno mais quente o
Rio está tendo esse ano!