1
Sou uma serpente de médio porte e meu corpo é um catalisador
e minha cabeça é a antena do mundo.
Já faz quase dois séculos que estou para escrever este poema
e hoje
mais doente que um animal doente
(febril no mês de abril)
reconheço a miséria do meu corpo.
A casa está em paz a negrura da pantera está em paz a pele da
lhama
está em paz
o rastro fresco do javali está em paz os olhos do lobo estão em
paz
o gavião está em paz.
Totens me procuram espíritos me procuram: querem dizer algo
mas não os ouço e não os vejo.
No quintal sou o menino e o lobisomem
e você não têm o poder de me fazer sofrer
porque o mar está em mim a pedra está em mim
o vazio está em mim o breviário da decomposição
está em mim
o nada está em mim
Oroboro
outra serpente está em mim
você está em mim.
E estou pronto para louvar o seu nome no fundo abismo
como um leão em uma tarde quente à espera da brisa do mundo.
Amo tão somente com a esperança de vencer a morte
por isso nos reencontraremos na eternidade
alvos de nossa delicada cumplicidade.
5
Você compreende tudo o que eu digo
e digo ainda que esse mar não está morto
que esse caos não é apenas a laranjeira orvalhada pelo luar
e que essas dunas não são apenas metáforas
nem sua recompensa apenas minha Lua em Sagitário.
É triste ver crianças portando armas de médio e longo alcance
em dias santos,
mas todo dia é santo
nessa cidade que não se redime
nessa favela que não é só crime
nessas ruas cheias de vida e humana morte.
Em pleno século XXI
a inocência já não é mais possível
e podemos chorar pela falta de afeto.
Sou a reencarnação da serpente emplumada
a reencarnação da regeneração das eras.
E conheço o sacrifício humano
o sangue sobre o altar.
E conheço os úberes das cabras os úberes das amazonas
e das morenas de Teerã:
todos regidos sob a influência da lua.
E também conheço o céu e o inferno das mulheres.
Renascido hoje posso dizer:
- Eu sou todos os homens e também fui Walt Whitman.