Engana-se quem acha que a carreira de grandes artistas
é feita só de glórias e aplausos. É constituída de mil tropeços, fracassos e
rejeições. Só que esses percalços, por terem sido superados, praticamente desaparecem
ante o brilho que a obra ganha na posteridade.
Por isto, o escritor que tem seus livros na gaveta e não encontra editor, ou
aquele que manda originais para aqui e para ali e, às vezes, não merece sequer
uma resposta; ou aqueles que distribuem seus textos pelas editoras e recebem
aquela clássica desculpa de que “sua obra é boa mas não se enquadra nos projetos
editoriais desta casa”, todos esses devem ter algum consolo ao saberem que Francis
Scott Fitzgerald, hoje tido como um dos melhores contistas modernos da literatura
norte-americana, era um colecionador de recusas editoriais. Sua biografia registra
que, em 1920, tinha dependurados no seu quarto 120 bilhetes de recusas para
publicação de seus contos.
Deve ser igualmente consolador ser informado que James Joyce, o grande reformulador
do romance no século XX, reconhecia, numa carta de 1916, que seu livro de contos
Retrato do artista quando jovem havia sido recusado por vários editores.
Esses lhe diziam sempre : “Bom trabalho, mas não se paga”.
Igualmente, Ludwig Wittgenstein, que abalou o pensamento filosófico do século
passado, recebia, à altura de 1921, repetidos comunicados dos editores dizendo
que “não entendiam uma só palavra” do que ele havia escrito. Bem que Bertrand
Russell, tentando lhe abrir as portas, fez uma introdução de 16 páginas para
ver se as casas editoriais se interessavam pelo Tractatus logico-philosphoficus.
Nem assim. Russell, finalmente, depois de muito empenho, conseguiu publicá-lo
na Inglaterra.
E a coisa não pára aí. Hemingway expediu o seu Torrentes da primavera,
mas um editor lhe respondeu afirmando que seria sinal de mau gosto publicá-lo.
Caso meio parecido ocorreu com D. H. Lawrence – seu próprio editor suplicava
que não publicasse O amante de Lady Chatterley, por achar que era por
demais arrojado e ia lhe criar problemas, por isto o livro acabou saindo em
Florença em 1928, numa edição particular. D. H. Lawrence, aliás, vivia tendo
problemas com o que queria publicar e, entre os seus livros, Mulheres apaixonadas
foi o mais recusado.
As histórias dessas recusas e de muitas outras foram coligidas por Mario Baudino
no livro Il gran rifiuto (“A grande recusa”), editado pela Longanesi,
de Milão, em 1991. O leitor vai se espantar e pode até se sentir estimulado
a continuar recebendo negativas sem tanto sofrimento.
J.R.R. Tolkien, do avassalador O senhor dos anéis, teve, na década de
30 do século passado, dificuldades com a publicação de seu Silmarillion,
que dormitou na gaveta algum tempo. Quem não se lembra, nos anos 60, do nome
emblemático de Marshall McLuhan, o canadense que com The medium is the message
reinaugurou a fase moderna dos estudos de comunicação? Pois apesar disto, na
Itália, sua obra foi recusada na coleção Adelphi, sob a alegação de que “é um
livro de um pequeno louco”. E há casos ainda de negativas unânimes como o Lolita,
de Nabokov, originalmente rejeitado por todos os editores americanos.
A lista é espantosa. Moby Dick, de Herman Melville, foi refugado com
a alegação de que não era “adaptado ao mercado para jovens na Inglaterra”. O
poema “Après midi d’un faune”, de Mallarmé, que seria musicado por Debussy
e virou balé com Nijinsky, foi esnobado pela revista Parnasse contemporain
por ordem de Anatole France. Já o primeiro livro de Arthur Conan Doyle, o criador
do detetive Sherlock Holmes, Um estudo em vermelho, não chegou a ser
sequer lido pelo editor a quem foi enviado. E o que dizer do bilhete com que
despediram Rudyard Kipling do jornal onde trabalhava?: “Aqui não é um asilo
para escritores diletantes. Lamento, senhor Kipling, mas o senhor não sabe escrever
em inglês”. Também Ezra Pound, que abalou a poesia de língua inglesa no princípio
do século XX, não foi aceito pela Quartely Review porque havia publicado
na revista futurista Blast (1918). E T.S. Eliot teve que ler este bilhete
do editor John Lane: “A obra do sr. Eliot é brilhante, mas não pertence ao gênero
que adicionamos ao nosso catálogo”.
E por aí segue a lista. Bernard Shaw, Céline, Irving Stone, Cummings, Italo
Calvino, Gertrud Stein, Moravia, García Márquez e até o caso de George Orwell
(Animal’s farm) . Mas nesse caso houve uma agravante, pois o parecer
era de ninguém menos que T.S. Eliot, aliás, politicamente um conservador, que
assim se manifestou: “Não tenho nenhuma convicção de que esta seja a crítica
justa à atual situação política”. Além disto, os editores americanos tinham
reservas sobre aquela obra de Orwell, alegando que o livro seria menos ofensivo
se os personagens não fossem porcos.
Muito se pode discutir sobre esses fatos. A tendência natural dos escritores
é culpar os editores por falta de visão. Isto é simplificar por demais a questão.
Todo escritor, em princípio, acredita em sua obra, e alguns estão seguros de
que ela é genial. Mas as coisas são mais complexas do que parecem. Casas editoriais
não são necessariamente instituições de caridade e mesmo entre os pareceristas
e entre os diversos grupos escritores há interesses subjetivos e ideológicos.
E entre tantos casos da literatura moderna, dois se tornaram célebres: as recusas
de Em busca do tempo perdido de Proust, e O Gattopardo de Giuseppe
Tomasi di Lampedusa.
O caso de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, tornou-se o mais
clamoroso. Primeiro, porque o autor foi recusado não apenas por um, mas por
vários editores. Segundo, porque essa recusa era meio estranha, posto que o
autor estava disposto a pagar a edição e até mesmo a financiar a publicidade.
Há várias justificativas que tentam atenuar esse erro editorial. Como assinala
Mario Baudino, a indústria editorial francesa estava economicamente em crise,
em 1912, quando as recusas à obra de Proust ocorreram sucessivamente. Mas isto
não basta para explicar, posto que o autor estava disposto a pagar não só a
edição, dividir os possíveis lucros com o editor além de financiar a divulgação,
num gesto premonitório da atual sociedade do marketing. Deste modo, pode-se
concluir que os leitores especializados que examinaram os manuscritos não sabiam
o que fazer diante daquela narrativa longa e pormenorizada, que contrariava
o que estava entrando na ordem do dia, que era a arte de vanguarda pregando
a fragmentação, a velocidade, o louvor à máquina e à violência. Enfim, para
eles, Proust vinha com uma obra “velha”, “ultrapassada”, “burguesa” e “alienada”.
E quando o livro apareceu em 1913, financiado pelo autor através da pequena
editora Grasset, iniciou-se então a trajetória de seu sucesso que desmoralizaria
essa perversa mania do “novo” trazida pela modernidade e os modernosos.
A editora Fasquelle justificava sua recusa a publicar o romance de Proust alegando
que era muito grande e que o público não estava acostumado a esse tipo minucioso
de descrições. Já a editora Gallimard submeteu o texto de Proust a pelo menos
dois leitores: Jacques Normand e André Gide. O primeiro ironizava o romance
dizendo que depois de 712 paginas “não se tem nenhuma noção de que coisa se
trata”. De tudo salvam-se “umas seis páginas”. Fazia ainda considerações sobre
o personagem sexualmente “invertido” e assinalava que era mesmo um “caso patológico”.
Já o outro – André Gide – mesmo sendo homossexual não se deixou seduzir por
esse aspecto da obra. Apenas a folheou e a recusou alegando, preconceituosamente,
que o autor era um ricaço freqüentador de salões mundanos, e que havia, ainda,
uma outra agravante: Proust era colaborador do conservador Figaro. Assim
acumulavam-se razões nada literárias para a rejeição. E Gide, que apenas folheara
o livro, ainda alegava que o autor tinha tido pouco escrúpulo em dizer que pagaria
a edição se fosse preciso.
Proust, no entanto, tinha tanta confiança em seu livro, que dizia que a publicação
era apenas uma questão “técnica”. Por isto não se vexava de financiar a edição
e a publicidade. Mas não deixa de ser estranho e sintomático que o livro tenha
colecionado outras recusas. Além da Ollendorf, que havia editado Maupassant
e Romain Rolland, Proust entregou o manuscrito a Alfred Humblot, que pede a
Louis Boyer para lê-lo. E este é fulminante: “Não consigo entender como se pode
empregar trinta páginas para descrever como se vira e revira na cama antes de
pegar no sono”.
Em 14 de novembro de 1913 a pequenina Grasset lança Du côté de chez Swann.
Graças a uma boa campanha publicitária orquestrada vendem-se 1.500 exemplares
e, uns quatro meses depois, o total chega a três mil. Proust e o editor tentam
concorrer ao prêmio Goncourt, mas não dá mais tempo. Contudo, os outros editores
que haviam recusado a obra começam a se arrepender e a procurar o autor. Inclusive
André Gide, depois que vários autores da Nouvelle Revue Française (NRF)
começam a elogiar Proust. Três meses após o aparecimento do livro, Gide escreve
uma carta histórica a Proust se desculpando: “Ter recusado este livro ficará
como o mais grave erro da NRF (e me toca a vergonha de ter sido em grande parte
o responsável) e um dos remorsos mais cruéis de minha vida”.
Enfim, as peripécias pelas quais passou a obra de Proust mereceram até um estudo
de Franck Lhomeau e Alain Coelho – Marcel Proust à la recherche d’un éditeur
(Olivier Orban).
Já a célebre recusa de O Gattopardo (1958), de Tomasi di Lampedusa, entre
outras coisas, exibe o danoso preconceito político e ideológico no julgamento
de obras. Como o disse Andrea Vitello na biografia dedicada a Lampedusa, o escritor
comunista Elio Vittorini foi o responsável pela recusa daquela obra-prima que
viria ser filmada por Visconti tendo Alain Dellon, Claudia Cardinalle e Burt
Lancaster nos papéis principais. Mas obedecendo aos preconceitos do partido,
Vittorini, usando de sua influência politica, interditou a obra em duas editoras:
na Mondadori e na Einaudi. Entre as alegações ideológicas, Vittorini perfilava:
“Desde que eu escrevo tenho me batido pela renovação moderna da literatura.
Entenda que não posso me impor de gostar de um escritor que se manifesta através
de esquemas tradicionais. Poderia gostar de O Gattopardo só como obra
do passado que houvesse sido descoberta num arquivo qualquer”.
Quantos de nós não temos lido e ouvido tolices semelhantes emitidas pelos praticantes
da neofilia? Na verdade, Vittorini, que se julgava um intelectual engajado,
estava censurando a visão histórica e política do nobre Lampedusa. De certo
modo repetia-se aqui o veto dado a Proust, por ser um aristocrata. Gide, pelo
menos, se arrependeu publicamente do erro em relação a Proust. O caso de Vittorini
é lamentável. Porque mesmo quando o livro finalmente saiu e começou a ser aclamado
pela crítica e pelo público, os partidários da literatura de uma nota só escreveram
textos e cartas de apoio a Vittorini reafirmando que a obra-prima de Lampedusa
era uma bobagem.
Leio essas coisas e fico pensando se alguém não poderia fazer um levantamento
sócio-literário sobre equívocos semelhantes ocorridos na literatura de língua
portuguesa. Neste caso, os mal-entendidos poderiam ser examinados inclusive
nos dois sentidos. Não apenas em relação aos que foram obstaculizados, mas também
em relação àqueles que num dado momento, por injunções várias, viram celebridade
e, de repente, noutro instante mergulham no ostracismo.
(Originalmente publicado no jornal O Globo e integrante da coletânea de crônicas A cegueira e o saber - Rocco, 2006)
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