"Escrever na treva é um mister pesado"- dizia Berceo primeiro
poeta castelhano e sacerdote que dedicou sua vida a escrever livros religiosos
entre 1195-1264.
Quando me apossei dessa frase a primeira vez, lá pelos anos 70, estava
terminando "A grande fala do índio guarani perdido na história
e outras derrotas", e pareceu-me que ela sintetizava bem o clima de estar
vivendo numa ditadura, em meio à censura, tortura e exílio. Sim,
não era nada fácil escrever naqueles escuros tempos, quando até
o humor era negro. Pois quando automóveis dos que estavam felizes com
a ditadura exibiam o slogan militar:" Brasil, ame-o ou deixe-o", os
acossados pelo regime criaram criticamente a sentença:" O último
a sair apague a luz". Ironicamente, para aquela situação
de impasse, também se dizia: " os brasileiros têm uma saída,
o aeroporto". Creio que veio daí também outra expressão
que nos persegue , -"a luz no fim do túnel".
Mas recentemente li em algum livro que aquela frase de Berceo estaria retratando
uma dificuldade real: a de escrever à luz da vela. Não teria nada
a ver com situação política ou metafísica, minha
ou dele. Portanto, Berceo continua atualíssimo e me perseguindo: "Escribir
en tiniebra es un mester pesado".
Estou me sentido um escritor muito antigo, tão medieval quanto Berceo,
mas sobretudo como um personagem das pinturas dos quadros de La Tour ou dos
flamengos como Rembrandt e Vermeer no período barroco. Sintomaticamente,
muitas pinturas daquela época retratam pessoas lendo e escrevendo à
luz de velas. Olho meu amado Vermeer. Sua "Moça lendo uma carta"
está como eu, se aproximando da janela para aproveitar a luz do dia.
Igualmente sua "Senhora escrevendo uma carta em presença da empregada"
, está numa situação idêntica à minha, aproveitando
a luz que vem de fora da janela. Também o seu "O astrônomo"
pôs o globo terrestre junto à janela para melhor estudar.Olho o
quadro de La Tour sobre Madalena arrependida, sentada à uma mesa, iluminada
por uma vela, com a mão sobre uma caveira.
-Quem em Brasília se arrependeria e confessaria seus tenebrinos pecados?
-Quem está vendendo minha alma por um prato de lentilhas?
Instalado no Barroco para sempre, sou agora personagem de Rembrandt e Caravaggio.
Só que neles, nem sempre há uma vela. Há uma luz misteriosa
nos seus quadros que ninguém consegue reproduzir ou explicar. (Minha
mulher me diz que descobriram que Vermeer depositava umas folhas de ouro sobre
as camadas de tinta, daí sua inimitável luz).
-De onde tirarei tal luz, Senhor, se não sou Rembrandt, Caravaggio
ou Vermeer e estão levando o pouco ouro que amealhei?
Os que estudaram Caravaggio referem-se ao "tenebrismo" de seus quadros.
Termo impróprio: nele luz e sombra se complementam. Além de ter
imantado suas telas com a inimitável luz, ele reinventou a dialética
do chiaroscuro. Na exposição recente que vi em Roma, contatava-se
como era diversa sua pintura da de seus contemporâneos e seguidores. Como
ficavam mortiças, inexpressivas as obras dos imitadores diante daquela
luz, que certamente vinha de dentro dele.Conseguiu até reinventar a escuridão,
retirando as paisagens do fundo do quadro e deixando o escuro mesmo.
-O que farei eu no fundo dessa escuridão?
Pintar no escuro.
Escrever no escuro
Escrever o escuro.
Ser brasileiro nesses dias, eis um mister pesado.
-Mas não haviam dito que o sociólogo que nos governa era "brilhante",
uma espécie de "iluminado", mais que "iluminista"?
Ai, meu Brasil barroco que só pode ser descrito pela linha curva, elíptica
e a quem querem engessar com a linha reta, acreditando que dois e dois são
quatro. Não, não são. Dois e dois em alguns países
são cinco, em outras terras , seis, e em certas culturas, três.
Dois e dois dando quatro, só acima do Equador, entre os calvinistas e
cartesianos, que eles é que controlam a máquina de calcular, que
eles é que impuseram a linha reta a seu favor.
Que predestinação, meu Deus! Estou escrevendo essas coisas e
ocorre-me que há uns 40 anos outro poema meu foi invadido por este verso
de Brecht: "Na verdade vivemos em tempos escuros".
Mas Brecht referia-se ao tempo do nazismo.
Meu Deus! Então a idade das trevas, que diziam estar na Idade Média,
agora está na pós-modernidade globalizada?
Versos aleatórios vão invadindo a penumbra de meus sentimentos
cívicos. Agora é Leopardi, que olhando as estrelas da janela de
sua casa, exclamou:"Vagas estrelas da Ursa, eu não contava /Voltar
ao hábito de vos olhar/Sobre o pátrio jardim esplendoroso/E conversar
convosco das janelas/Deste refúgio onde morei menino/e vi o fim das minhas
alegrias".
Meu Cruzeiro do Sul, eu em preferia dizer como o poeta índio náhuatl,
pré -colombiano: "Meu coração está brotando
na metade da noite". Gostaria. Mas ainda não é possível.
(09/06/99)
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