A Garganta da Serpente
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Saramago, o Nobel

(Affonso Romano de Sant'Anna)

Quando estive com José Saramago a primeira vez, em 1984, não vi em sua fronte nenhum sinal de que estava fadado a ganhar o Nobel em 1998. Era apenas um dos participantes de um seminário de escritores luso-brasileiros em Washington. Ele fazia ponderações argutas nos debates. Mas na sua testa não estava escrito que ele ganharia o primeiro Nobel de literatura em língua portuguesa.

Foi um seminário bom e divertido aquele que nos reuniu a Augustina Bessa-Luís, Almeida Faria, Sophia de Mello Brayner, José Rubem Fonseca, Ignácio de Loyola, Marina Colasanti, Otto Lara e Lygia Fagundes. E se nenhum de nós se adiantou, na época, cumprimentando o Nobel Saramago, não era por falta de visão. É que um José Saramago não nasce José Saramago, se faz José Saramago. E ele estava apenas iniciando sua obra, apesar de estar na casa dos 60. Começava a ser conhecido sobretudo com "Memorial do Convento " (1982) e "O ano da morte de Ricardo Reis" (1984). Li no "Jornal de Letras", de José Carlos Vasconcelos, que "Saramago entrou na literatura pela porta do cavalo", significando que irrompeu, de repente, sem pedir licença.

Mas quando em 1995, 11 anos depois, tive o privilégio e a honra de propor pelo júri brasileiro o seu nome para o Prêmio Camões, já sabia que ele estava às vésperas do Nobel. Ou melhor, que o Nobel é que merecia um escritor daquele quilate.

Não foi apenas porque nesse período ele publicou livros de ensaios, diários, peças de teatro e sobretudo os consistentes romances "A jangada de pedra" (1986), "História do cerco de Lisboa" (1989), "O evangelho segundo Jesus Cristo" (1991), "Ensaio sobre a cegueira" (1995) e "Todos os nomes" (1997). Em poucos anos, ele havia se tornado conhecido internacionalmente por ser um intelectual participante, com idéias contundentes sobre a nossa realidade. E para a língua portuguesa, um intelectual desse tipo ganhando o Nobel seria um trunfo.

E eu gosto deste tipo de escritor. O escritor que é mais que escritor, que sendo um criador no plano do imaginário, poético e ficcional seja capaz de articular uma visão de mundo e até mesmo fazer gestos que alterem a realidade. Claro, é questão de temperamento. Não se pode pedir a uma aranha que além de tecer sua teia, cante. Mas alguns espécimes de criadores são multidotados. Nisto Saramago é companheiro de Jorge Semprum, Camilo José Cela, Vargas Llosa, Octávio Paz e Carlos Fuentes. Pode estar um dia visitando os índios chiapas rebeldes, no México, pode estar a seguir no Brasil denunciando o problema dos sem-terra ou pode, na Europa, discursar contra a hegemonia do econômico sobre os demais aspectos da vida.

Incomoda-me o criador que fica fazendo gracinhas, dizendo que não sabe porque escreve, nem como escreve, que escreve contra a vontade, que tudo lhe ocorre por acaso, que escreveu um dia mas se arrepende, etc. É charme puro.

Prefiro um Saramago, que no dia mesmo em que o prêmio lhe era conferido reaparecia numa recente entrevista na RTP dizendo que nele havia a consciência passiva e a consciência ativa. Que embora não forçasse o aparecimento da metáfora original de uma nova obra, quando esta vinha, punha-se a trabalhar ferozmente. O mesmo Saramago, que nos seus diários que são os "Cadernos de Lanzarote" (que muitos consideram erradamente exercício de narcisismo), expõe nove "propostas para o próximo milênio", numa reflexão provocante, em que a utopia está latente e movendo a história.

Saramago é o mais brasileiros dos escritores portugueses.

Brasileiro, por suas ligações afetivas com nossa história, com muitos brasileiros e com nossa política, que faz com que se sinta à vontade para opinar sobre nossos problemas.

Saramago é o mais hispano-americano dos escritores portugueses.

Não bastassem todas as amplas análises que faz desse contexto, reenfocando a questão da descoberta da América, leia-se "A jangada de pedra", - romance-metáfora, que narra como a Península Ibérica, por causa de um terremoto, um dia se deslocou do mapa europeu e veio navegando pelos oceanos na direção da América. É, com efeito, nesse espaço intermediário entre vários mundos que sua obra se enraíza e daí é que se irradia.

Com essa premiação a um escritor de língua portuguesa, talvez nosso idioma deixe de ser aquele código secreto utilizado nas guerras. Estou dizendo "talvez". Nada garante. Saramago pode ser um fenômeno isolado. O Prêmio Nobel, além do seu aspecto literário, está preso a um sistema de forças indefinível. Nunca me esqueço daquela frase de Borges, que era um candidato eterno e que um dia ironizou a premiação dizendo: "Não me conceder o Prêmio Nobel é uma velha tradição nórdica".

De minha parte vou prestar mais atenção na fronte de meus colegas escritores brasileiros, para que não ocorra o que ocorreu quando vi Saramago a primeira vez e não lhe notei a aura especial. Pode ser até que esteja convivendo com algum futuro premiado e não o saiba.

Prestarei mais atenção.

Mesmo porque vêm aí as comemorações dos 500 anos de descoberta do Brasil e há a hipótese de que a Europa nos redescubra outra vez. Temos que contar com a sorte.

Até mesmo com um tipo qualquer de "calmaria" que faça os descobridores arribarem a essas plagas ainda que equivocadamente.

(13/10/98)

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