A Garganta da Serpente
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Como surgem certas obras

(Affonso Romano de Sant'Anna)

"Madame Bovary" nasceu de um acaso.

Às 15h20 do dia 12 de setembro de 1849, Flaubert chamou alguns amigos para ouvirem a leitura de seu mais recente livro-"Tentation de Sainte Antoine"

Estava seguro que era uma obra prima. Toda vez que terminava uma obra reunia amigos lendo-a para eles em voz alta. Fez isto com a primeira versão da "Educação sentimental"(1848) e quando terminou "Salambô" repetiu-se a cena, que os irmãos Goungourt dizem foi longa e tediosa, tendo até uma ceia no intervalo.

Agora estava lendo seu texto sobre Santo Antão . Era obcecado pelo drama daquele santo resistindo ao cerco das mulheres demoníacas no deserto. Já aos 13 escrevera sobre ele, e na verdade, passou a vida inteira mexendo e remexendo nesse livro, até 1874, seis anos antes de sua morte. Pois naquele 12 de setembro chamou seus dois amigos Maxime du Camp e Luis Builhlet e impôs-lhes a condição de só opinarem ao fim da leitura. Durante quatro dias, durante trinta e seis horas ele lhes leu seu "Tentacion de Sainte Antoine". Enfim, pediu que se manifestassem.

-"Achamos que deveria jogar isto no fogo e esquecermos deste assunto".

Ante o espanto de Flaubert diante dessa frase abrupta, eles continuaram dizendo que achavam que ele deveria exercitar outro tipo de escrita, botar seu estilo de jejum e tomar, por exemplo, um fato cotidiano, real, banal como o suicídio da senhora Delphine Delamare, mulher de um sanitarista que se matou por ter se metido em infidelidades conjugais e feito montão de dívidas.

Tanto a incisiva crítica dos amigos quanto a sugestão deram resultado um mês depois. Estava Flaubert viajando pelo Egito com o amigo Maxime Du Camp quando, diante da segunda catarata do Nilo, aos gritos de "Eureka!", proclamou que havia encontrado a personagem e o fio da meada de seu novo livro- "Madame Bovary".

Se uma motivação de fora deslanchou a escrita, outra motivação de dentro interferiu na elaboração desse livro que, na primeira escrita, tinha umas 1.800 páginas. E disto trata Dacia Maraini em "Cercando Emma"(Rizzoli-1993))- ensaio que continua esperando o interesse de algum editor brasileiro. A singularidade dessa análise, dentro da vastíssima bibliografia sobre Flaubert/Bovary , está no fato que Dacia escapole da armadilha criada pelo próprio autor quando disse: "Bovary sou eu" Dacia parte para a demonstração que Bovary é Louise Colet, amante de Flaubert, casada com Hippolyte.

A perspectiva de Dacia é arguta e inovadora. Sempre se disse (caindo noutra armadilha de Flaubert), que a leitura de romances banais ajudou a configurar o caráter sonhador e leviano de Bovary. Então, dentro da tradição das mulheres-leitoras, Dacia se apresenta, porém, como leitora crítica.

Para tanto, baseia-se sobretudo na correspondência durante nove anos (1846-1855) de Flaubert com Louise. Acontece que Louise era também escritora. E não gostou nada de ver vestígios de sua relação numa obra onde o autor, segundo Dacia, tem uma perversa má vontade para com sua personagem. Esses vestígios estão tanto num cigarrera que Louise havia dado a Flaubert e que aparece no romance, quando num lenço manchado de sangue que registra a relação dos dois. Mas haveria outros indícios. Flaubert teria aproveitado e retrabalhado textos de carta de Coulet na sua história.

Mas Dacia arrola dezenas de aproximações outras que acabam por construir uma figura a que se pode chamar de "Emma Coulet". Como Ema, Louise Coulet é casada, tem uma filha que leva no encontro com o amante. Como Coulet, Emma também é possessiva, ambiciosa, apaixonada e colérica- pois assim Flaubert descreve Coulet em algumas cartas. Ambas têm desenvoltura em trocar de amantes (Louise foi amante também do poeta Musset). Ambas são casadas com maridos que Flaubert considera inaptos e fracos. Emma /Louise têm relações com objetos fetiches. E entre tantas aproximações, Dacia faz uma realmente intrigante, tanto do ponto de vista psicanalítico quanto literário. O autor, dentro de sua estratégia de apagar pistas, havia feito questão de descrever Emma de maneira bem distinta de Louise, dizendo que tinha os cabelos e olhos negros enquanto Louise era loura e tinha olhos azuis. No entanto, o olhar detetivesco de Dacia capta um lapsus linguae, uma falha do inconsciente de Flaubert , pois duas vezes no romance os olhos de Emma aparecem descritos como azuis tais como eram os de Louise. Como explicar isto num autor que se gabava de reescrever suas páginas dezenas de vezes?

Apagando pistas, Flaubert dizia que seu livro não tinha nada a ver com sua vida pessoal. Mas depois de ler o livro de Dacia tem-se ganas de fazer algo que ela não fez: ver o paralelo entre o pânico de Santo Antônio diante das mulheres pecaminosas e o desdém e perversidade como Flaubert descreve Emma, Louise e outras mulheres, respeitando somente George Sand, que tinha nome de homem a quem chamou de "meu mestre".

De resto, eu não conheço, mas deve haver algum estudo comparando "Madame Bovary" com o romance-resposta que Louise escreveu-"Lui".

Nenhuma obra surge por acaso.

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