Sinto-me como o menino que tem que fazer uma composição sobre
"Minhas férias". Nada mais simples. E, no entanto, bastante
arriscado, pois há o perigo de se cair no previsível, na banalidade.
Escrever sobre "leitura" a sobre a "formação do
leitor" é algo que lembra também aqueles filmes com títulos
tipo "O crime no castelo", "A última vítima",
"Morte no entardecer". O expectador já entra sabendo o que
vai encontrar.
Quem jamais esperaria encontrar num artigo sobre "formação
do leitor" ou sobre "leitura" alguma palavra contra a leitura
ou uma tese de que não se deve formar o leitor?
Assim, um tema como este deflagra logo uma questão que chamaria de a
armadilha do óbvio. Quem vai escrever sobre esses temas vai também
naturalmente dizer que a importante formar leitores, vai enfatizar que ler é
um prazer, que a leitura desencadeia processos conscientizadores e produtivos
na comunidade, etc. Portanto, os encontros em torno deste tema correm o risco
de converterem-se em fervorosas assembléias de autoconsolação.
Preferiria, como o fiz em outras ocasiões em que tive que abrir seminários,
congressos ou discussões sobre este tema, encaminhar algumas questões
subjacentes, ocultas, reprimidas, mas que representam uma radiografia, uma análise
do terreno onde pisamos e sobre o qual queremos construir algo.
Portanto, estou discorrendo sobre as armadilhas do óbvio, que
nos afastam do verdadeiro diagnóstico da doença ou do doente.
E para tornar mais explícito o que aqui está latente quero levantar
uma questão básica: a necessidade de se proceder a uma leitura
crítica dos discursos sobre leitura.
Isto é um vasto e intrincado assunto. Tem inúmeras faces e disfarces,
ou, como eu disse antes - armadilhas. Uma coisa seria, academicamente,
selecionar um corpus de textos teóricos sobre a leitura, analisar
propostas de programas de leitura e conferir tudo isto com a prática.
Ou seja: verificar se a esses textos se seguiu alguma ação pragmática,
que tipo de ação foi essa e se ela desmente a teoria ou que tipo
de obstáculos surgiram para sua realização.
Mas um dos aspectos mais sutis e desnorteantes a respeito da armadilha do
óbvio está na banalidade da própria palavra "
leitura". Se em vez de "leitura" estivéssemos usando uma
palavra nova, de preferência importada de outra língua, talvez
fosse mais fácil fazer saber do que estamos falando.
Por isto, para espanto de muitos editores, escritores a professores eu tenho
repetido: é preciso que se esclareça que, quando falo de leitura,
não estou falando de leitura, mas sim de leitura.
Isto, advirto, não a uma xarada nem um simples jogo de palavras. Quem
tem ouvidos, ouça diz o profeta. Ou melhor: quem sabe ler, que leia.
A segunda razão pela qual o discurso a favor da leitura não gera
a ação concreta e especifica que gostaríamos deve-se ao
que chamo de duplo discurso. Depois da armadilha do óbvio
essa ée a segunda questão que tem que ser esclarecida e denunciada.
Uma coisa são os pronunciamentos, entrevistas, conversas da boca para
fora, outra coisa é realmente acreditar e levar adiante projetos conseqüentes.
Neste sentido, seria um não acabar coletar aqui a ali exemplos de práticas
que não batem com as teorias e intenções. Poderia, por
exemplo, dizer sumariamente que durante os seis anos (1991-1996) em que liderei,
com uma equipe fantástica, a questão da promoção
da leitura e do livro no pais, colhi exemplos fartos do duplo discurso.
Dos seis ministros da Cultura com quem convivi, um disse claramente numa reunião
dentro do Ministério, para que todos ouvissem, que "leitura não
é um assunto prioritário no meu ministério, esse é
um assunto para o Ministério da Educação".
Imaginem o meu constrangimento de ter que explicar a um ministro da Cultura,
que era membro da Academia Brasileira de Letras, que não estava falando
de alfabetização e sim de leitura. Ou melhor, que estava falando
de leitura a não de leitura. Imaginem o constrangimento de ter que lhe
explicar o que era um "analfabeto funcional"; ter que lhe mostrar
projetos de implementação da leitura tanto na França quanto
na Colômbia; ter que lhe explicar o que e "desescolarização
da leitura" e, além disto, como se estivesse cometendo uma falta,
mostrar que estávamos já realizando programas de leitura em hospitais,
quartéis, parques e sindicatos, que tínhamos projetos de trem-biblioteca
no sul do país, de bibliobarcos na Amazônia e no Rio São
Francisco e que as vidas de milhares de pessoas estavam se modificando por causa
disto.
Dos seis ministros da Cultura com quem convivi, só dois tomaram conhecimento
do programa de leitura que desenvolvíamos em 300 municípios, utilizando
33 mil voluntários. Um deles, o último, esforçou-se, e
conseguiu, desmobilizar o programa e desfazer a equipe.
Batendo nesta mesma tecla do discurso duplo onde a prática não
fecha com o que é dito - diria que durante todo esse tempo, embora tenha
encontrado um crítico e um ficcionista que diziam tolices sobre "contadores
de história", não encontrei um só prefeito ou governador
que me dissesse que as bibliotecas eram inúteis. No entanto, só
encontrei, entre as dezenas desses, apenas dois que haviam destinado verbas
para compra de livros. Os demais davam a sensação de que pensavam
que os livros tinham pernas e saíam caminhando das editoras para as estantes
por livre e espontânea vontade.
Dito isto, e como prova ainda do duplo discurso, assinale-se que a Colômbia
copiou e implementou um projeto brasileiro de promoção de leitura
que teria a participação da Câmara Brasileira do Livro e
outros órgãos do governo. Isto não tem nada demais. Pessoas,
entidades e países devem se beneficiar com as boas idéias. Mas
o grave é que enquanto o projeto baseado nas propostas brasileiras era
posto em marcha, lá na Colômbia, pela Fundalectura, aqui
o projeto foi sabotado e abandonado por quem devia viabilizá-lo.
Finalizando, eu diria que nessa passagem de século, o Brasil, em relação
à questão da leitura, tem que batalhar ferozmente em três
frentes ao mesmo tempo:
1) a primeira é mais óbvia e diz respeito ao analfabetismo. Ainda
que algum ministro ou presidente possa pensar assim, esta questão não
diz respeito apenas ao Ministério da Educação. Nos países
onde o analfabetismo foi praticamente erradicado isto resultou de um projeto
sistêmico nacional;
2) a segunda frente de ação diz respeito aos analfabetos funcionais:
os que têm rudimentos de educação, mas não conseguem
decompor o significado dos signos. Na Itália existem 15 milhões
de analfabetos funcionais. Na França são 20% dos franceses. Quem
quiser que estime quantos são no Brasil, qualquer cifra entre 100 e 140
milhões será possível;
3) a terceira frente em que há que batalhar diz respeito ao analfabetismo
tecnológico. As mudanças rápidas transformam o cidadão,
mesmo de nível universitário, num analfabeto diante das novas
máquinas, e a atualização é dispendiosa, competitiva
e urgente.
Enfim, numa sociedade em que se fala tanto de hipertexto - em que o leitor
lê em diversas direções a em profundidade, nosso país
está povoado de hipoleitores - aqueles que estão entre
o analfabetismo e o analfabetismo funcional.
Como sair disto é fácil. Basta desarmar as armadilhas do óbvio
e parar com o discurso duplo.
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