A Garganta da Serpente
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Leitura: das armadilhas do óbvio ao discurso duplo

(Affonso Romano de Sant'Anna)

Sinto-me como o menino que tem que fazer uma composição sobre "Minhas férias". Nada mais simples. E, no entanto, bastante arriscado, pois há o perigo de se cair no previsível, na banalidade.

Escrever sobre "leitura" a sobre a "formação do leitor" é algo que lembra também aqueles filmes com títulos tipo "O crime no castelo", "A última vítima", "Morte no entardecer". O expectador já entra sabendo o que vai encontrar.

Quem jamais esperaria encontrar num artigo sobre "formação do leitor" ou sobre "leitura" alguma palavra contra a leitura ou uma tese de que não se deve formar o leitor?

Assim, um tema como este deflagra logo uma questão que chamaria de a armadilha do óbvio. Quem vai escrever sobre esses temas vai também naturalmente dizer que a importante formar leitores, vai enfatizar que ler é um prazer, que a leitura desencadeia processos conscientizadores e produtivos na comunidade, etc. Portanto, os encontros em torno deste tema correm o risco de converterem-se em fervorosas assembléias de autoconsolação.

Preferiria, como o fiz em outras ocasiões em que tive que abrir seminários, congressos ou discussões sobre este tema, encaminhar algumas questões subjacentes, ocultas, reprimidas, mas que representam uma radiografia, uma análise do terreno onde pisamos e sobre o qual queremos construir algo.

Portanto, estou discorrendo sobre as armadilhas do óbvio, que nos afastam do verdadeiro diagnóstico da doença ou do doente. E para tornar mais explícito o que aqui está latente quero levantar uma questão básica: a necessidade de se proceder a uma leitura crítica dos discursos sobre leitura.

Isto é um vasto e intrincado assunto. Tem inúmeras faces e disfarces, ou, como eu disse antes - armadilhas. Uma coisa seria, academicamente, selecionar um corpus de textos teóricos sobre a leitura, analisar propostas de programas de leitura e conferir tudo isto com a prática. Ou seja: verificar se a esses textos se seguiu alguma ação pragmática, que tipo de ação foi essa e se ela desmente a teoria ou que tipo de obstáculos surgiram para sua realização.

Mas um dos aspectos mais sutis e desnorteantes a respeito da armadilha do óbvio está na banalidade da própria palavra " leitura". Se em vez de "leitura" estivéssemos usando uma palavra nova, de preferência importada de outra língua, talvez fosse mais fácil fazer saber do que estamos falando.

Por isto, para espanto de muitos editores, escritores a professores eu tenho repetido: é preciso que se esclareça que, quando falo de leitura, não estou falando de leitura, mas sim de leitura.

Isto, advirto, não a uma xarada nem um simples jogo de palavras. Quem tem ouvidos, ouça diz o profeta. Ou melhor: quem sabe ler, que leia.

A segunda razão pela qual o discurso a favor da leitura não gera a ação concreta e especifica que gostaríamos deve-se ao que chamo de duplo discurso. Depois da armadilha do óbvio essa ée a segunda questão que tem que ser esclarecida e denunciada.

Uma coisa são os pronunciamentos, entrevistas, conversas da boca para fora, outra coisa é realmente acreditar e levar adiante projetos conseqüentes. Neste sentido, seria um não acabar coletar aqui a ali exemplos de práticas que não batem com as teorias e intenções. Poderia, por exemplo, dizer sumariamente que durante os seis anos (1991-1996) em que liderei, com uma equipe fantástica, a questão da promoção da leitura e do livro no pais, colhi exemplos fartos do duplo discurso.

Dos seis ministros da Cultura com quem convivi, um disse claramente numa reunião dentro do Ministério, para que todos ouvissem, que "leitura não é um assunto prioritário no meu ministério, esse é um assunto para o Ministério da Educação".

Imaginem o meu constrangimento de ter que explicar a um ministro da Cultura, que era membro da Academia Brasileira de Letras, que não estava falando de alfabetização e sim de leitura. Ou melhor, que estava falando de leitura a não de leitura. Imaginem o constrangimento de ter que lhe explicar o que era um "analfabeto funcional"; ter que lhe mostrar projetos de implementação da leitura tanto na França quanto na Colômbia; ter que lhe explicar o que e "desescolarização da leitura" e, além disto, como se estivesse cometendo uma falta, mostrar que estávamos já realizando programas de leitura em hospitais, quartéis, parques e sindicatos, que tínhamos projetos de trem-biblioteca no sul do país, de bibliobarcos na Amazônia e no Rio São Francisco e que as vidas de milhares de pessoas estavam se modificando por causa disto.

Dos seis ministros da Cultura com quem convivi, só dois tomaram conhecimento do programa de leitura que desenvolvíamos em 300 municípios, utilizando 33 mil voluntários. Um deles, o último, esforçou-se, e conseguiu, desmobilizar o programa e desfazer a equipe.

Batendo nesta mesma tecla do discurso duplo onde a prática não fecha com o que é dito - diria que durante todo esse tempo, embora tenha encontrado um crítico e um ficcionista que diziam tolices sobre "contadores de história", não encontrei um só prefeito ou governador que me dissesse que as bibliotecas eram inúteis. No entanto, só encontrei, entre as dezenas desses, apenas dois que haviam destinado verbas para compra de livros. Os demais davam a sensação de que pensavam que os livros tinham pernas e saíam caminhando das editoras para as estantes por livre e espontânea vontade.

Dito isto, e como prova ainda do duplo discurso, assinale-se que a Colômbia copiou e implementou um projeto brasileiro de promoção de leitura que teria a participação da Câmara Brasileira do Livro e outros órgãos do governo. Isto não tem nada demais. Pessoas, entidades e países devem se beneficiar com as boas idéias. Mas o grave é que enquanto o projeto baseado nas propostas brasileiras era posto em marcha, lá na Colômbia, pela Fundalectura, aqui o projeto foi sabotado e abandonado por quem devia viabilizá-lo.

Finalizando, eu diria que nessa passagem de século, o Brasil, em relação à questão da leitura, tem que batalhar ferozmente em três frentes ao mesmo tempo:

1) a primeira é mais óbvia e diz respeito ao analfabetismo. Ainda que algum ministro ou presidente possa pensar assim, esta questão não diz respeito apenas ao Ministério da Educação. Nos países onde o analfabetismo foi praticamente erradicado isto resultou de um projeto sistêmico nacional;

2) a segunda frente de ação diz respeito aos analfabetos funcionais: os que têm rudimentos de educação, mas não conseguem decompor o significado dos signos. Na Itália existem 15 milhões de analfabetos funcionais. Na França são 20% dos franceses. Quem quiser que estime quantos são no Brasil, qualquer cifra entre 100 e 140 milhões será possível;

3) a terceira frente em que há que batalhar diz respeito ao analfabetismo tecnológico. As mudanças rápidas transformam o cidadão, mesmo de nível universitário, num analfabeto diante das novas máquinas, e a atualização é dispendiosa, competitiva e urgente.

Enfim, numa sociedade em que se fala tanto de hipertexto - em que o leitor lê em diversas direções a em profundidade, nosso país está povoado de hipoleitores - aqueles que estão entre o analfabetismo e o analfabetismo funcional.

Como sair disto é fácil. Basta desarmar as armadilhas do óbvio e parar com o discurso duplo.

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