A Garganta da Serpente
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Livros e sebos

(Artur da Távola)

A sina dos escritores parece-me não a de ser conhecidos por todos, mas a de encontrar aos poucos almas gêmeas capazes da sintonia. Não é necessário sucesso. Este é manifestação epidérmica da contemporaneidade. É necessário, sim, ir fundo em si mesmo, encontrando meios e modos de grafar as verdades e observações próprias.

Jamais frear o impulso criador, pouco importa o seu destino. O escritor precisa lutar com as forças que tiver para ludibriar os sistemas e as exigências da sobrevivência, da convivência, e encontrar tempo - ainda que escasso e roubado até de felicidades - para o exercício de seu trabalho, não importa se horas ou minutos, em que tipo de papel, máquina ou computador...

Imperdoável, em quem foi dotado da graça de ser escritor, é deixar passar vivências, idéias, temas, escritos, sem encontrar alguma forma de fixar a percepção luminosa, quando ocorre. As inspirações raramente retornam da mesma maneira. Muitas vezes desaparecem para sempre no fluxo incessante e maravilhoso da mente. Cada percepção luminosa pertence a um envolvimento peculiar e a momentos sensíveis que não se repetem. Podem, até, retornar sob outras formas, adiante. Podem, ademais, constituir obsessões do repertório de vivências internas de cada um. Porém nunca retornam da mesma maneira. Para um escritor, é imperdoável desperdício, o deixar passá-las.

Ao lado das inspirações há, porém, a necessidade de tempo para o trabalho braçal de desenvolver as idéias e aprimorar o texto. Aqui é necessário labuta e persistência.

Não importa, igualmente, se o escritor nato tenha ou não condições para fazê-lo dentro do tempo e do ritmo impostos pelos sistemas. Mesmo que a obra demore muitos anos e seja esculpida com a lentidão necessária a dar forma a pedra, o dever maior é o de realizá-la.

Escrever é, também, forma de meditar, não apenas no sentido de exercitar o pensamento, mas no de fazer o que os orientais chamam de meditação, vale dizer, a interrupção do fluxo das ansiedades inerentes a cada vida e à vida, para, devido a liberar a mente e dar entrada no próprio imo, interromper os motivos de sofrimento e doença.

Quem deseja escrever não deve pensar no sucesso e, sim, nas almas com quem se identificará, muitas ou poucos, não importa. A verdadeira vida dos livros começa nos sebos.

(2000)

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