A Garganta da Serpente
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Flor do Lácio

(Carlos Rodrigues Franco)

Parei o carro no sinal vermelho, alguns garotos faziam malabarismos em pleno centro urbano, na tentativa de ganhar alguns trocados, geralmente, disputadas moedas, que vão sendo acumuladas em longos processos de compras. Dou uma ajeitada no retrovisor e confiro a mensagem no celular. “Chiclet, bala, água” me pergunta um jovenzinho. Sorrio e respondo “água”, ele corre na caixa e pega uma garrafinha “dois real”. “Tá caro”, mas junto as moedas e lhe entrego e antes que possa conferir, o sinal abre e alguém impaciente buzina, só ouço ao longe: “brigadu”. E nem me dou ao luxo de ressuscitar a língua materna.

Na escola, entre uma buzina e outra repenso na cena e volto no tempo. Sim, muito tempo atrás, quando a nossa língua era o Latim: oficial (nobres, clero, etc.) e vulgar (soldados, comerciantes, povo, etc.). Um falado pela elite e outro pela população em geral. E da disseminação e transformação de uma e morte da outra surgiu a nossa língua. Vivemos, em nosso tempo, algo parecido e só o tempo vai trazer essas respostas e a nova língua que virá: nem melhor ou pior, mas a que souber transitar e for efetiva.

Mas, vejo nas ruas, escolas e em vários ambientes que a língua também é política. Exerce preconceito e faz marginalizações e esquecemos que a história do Lácio se repete e nada detém a marcha da verdadeira história. Roma (Lácio) e a sua língua dominaram boa parte do mundo e nem por isso sobreviveram... A língua transformou-se e assim tivemos o privilégio de parte dessa herança: última flor do Lácio, que ainda hoje encanta, canta e fascina.

Vivemos tempos de mudanças sociais, econômicas, políticas e, mais do que nunca, devemos nos ater ao fato de que a verdadeira colonização se dá pela língua, pela cultura. Sendo assim, favorecer e fomentá-las é criar uma sociedade mais justa, humana e criativa. Trabalhar “com” e não “contra” e, principalmente, não ressuscitar a pureza original, pois se temos tantas belezas, foram resultado da mistura e miscigenação, da transformação.

Não prego o desconhecimento da língua, mas a aceitação da criatividade, da organização de pensamentos, na elaboração de sonhos e de justiça, e a língua, como detentora de poder e transformação, exerce um papel fundamental nisso tudo e cabe, a cada um de nós, transformar essa realidade. Sabe por quê? Porque há um futuro melhor para nossas crianças, jovens... Um futuro muito além do lucro momentâneo ou mensalões, um futuro, onde cada um possua voz e não seja necessário falar por outrem e deixar o destino em letras anônimas que se apossaram de nós, para benefícios próprios.

Acaba minha janela , volto para a sala de aula, onde 40 ou 50 jovens, mal sabem porque estão ali.... Talvez eles nunca venham a saber, nem saibam que poderiam estar na rua ou cruzamentos da vida, querem apenas o novo sinal para irem para suas casas e jogarem os cadernos num canto e entrarem na internet para jogar ou bater papos virtuais. São jovens, eu sei.... Mas até quando? Serão jovens até que se descubram velhos, pois o tempo, agora mais do que nunca, corre depressa demais. A língua, nisso tudo: já vem enlatada, pronta para consumo.

(sábado, 25 de março de 2006)

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