Ao término duma primeira e sempre insuficiente leitura do drama Macário,
escrito por Álvares de Azevedo, restaram-me muitas interrogações
em suspenso e a decepcionante impressão de que um dos autores mais profícuos
do Romantismo no Brasil havia produzido uma peça teatral parcialmente
desconexa. Não conseguia enxergar vínculos sólidos o suficiente
que atassem o primeiro ato ao segundo.
Uma segunda leitura, mais atenta aos detalhes se fez, portanto, ainda mais imperiosa
para que fosse viável brotar uma análise tanto o quanto possível
esmerada. Resultado, certas lacunas interpretativas foram preenchidas e algumas
avaliações desabonadoras resistiram, teimosas. Ainda assim, como
inexiste de minha parte, antes de me propor à elaboração
do texto crítico, o intento já posto na mesa de somente tecer
loas ou apedrejar gratuitamente a obra em análise, nos parágrafos
abaixo seguem algumas conclusões às quais cheguei, recorrendo
ao auxílio do ensaio A Educação Pela Noite, assinado
pelo professor Antônio Cândido. E, principalmente, procurando seguir
uma tese explicitada pelo escritor, filósofo e lingüista italiano
Umberto Eco, segundo a qual "entre a intenção inacessível
do autor e a intenção discutível do leitor está
a intenção transparente do texto, que invalida uma interpretação
insustentável" .
Quanto à organização interna do drama, a minha primeira
e negativa leitura não se desfez por completo. Parece-me tão tênue
o fio condutor do primeiro para o segundo ato (mormente em seu início)
que considero as ações passadas numa vaga Itália, sem receios
de cometer injustiça com Álvares de Azevedo, dispensáveis
do modo como foram concebidas, tão grande a discrepância existente
em relação a todo o primeiro ato, no que se refere, por exemplo,
à articulação entre personagens e a qualidade do diálogo.
Em "Na Itália" as confabulações entre Macário
e Penseroso (personagem cujo nome é uma clara alusão ao poema
"Il Penseroso", de John Milton, da escola classicista inglesa e autor
de O Paraíso Perdido, onde também há referência
ao demônio influenciando o comportamento de alguém) as confabulações descambam para o filosófico
e para a discussão literária, fossem eles dois teóricos
do Romantismo. A intenção, provavelmente, foi mesmo essa, posto
que, consoante o pensamento do professor Antônio Cândido, entendo
ambos os personagens enquanto desdobramentos extremados de Álvares de
Azevedo: um, Macário, acometido pelo byronismo; outro, pertencente à
primeira geração romântica, sentimentalista ao extremo.
Contudo, em se tratando duma cena teatral, o caráter discursivo não
funciona adequadamente, muito pelo contrário: mostra-se tedioso e cansativo.
Se a peça fosse encenada não seria nenhuma surpresa se víssemos
os espectadores, ao se defrontarem com intermináveis arengas, dispersos
em suas poltronas ou "saindo de fininho". Melhor seria, talvez, escrevesse
o autor um ensaio crítico, posto que o diálogo teatral a mim não
me parece o melhor cenário para digressões filosóficas
explícitas. Mas o é, lógico, quando reside no subtexto,
quando nas entrelinhas.
Que função exerce, precisamente, aquela personagem feminina que
surge logo início do segundo ato? Uma, por assim dizer, continuidade
do sonho que o protagonista tivera deitado por sobre o túmulo com uma
figura feminina que abraçava homens afogados? Ou, ainda, a imagem da
mãe de Macário, que ele desconhecia, conforme dito no início
da peça, mas provavelmente teria sido uma libertina (a mesma vagabunda
com quem ele se deitara num minúsculo quarto e que falecera após
ele ter se retirado da casa?)? Um fragmento da fala dessa mulher, a primeira
a que me refiro, talvez esclareça melhor minha segunda hipótese:
"(...) Morrer! Meu filho! É impossível... Não sabeis?
Ele é a minha esperança, meu sangue, minha vida. É meu
passado de moça, meus amores de velha... (...)" (grifo meu)
Um aspecto por demais interessante em Macário é o que vou
denominar aqui "ciranda incompleta". Resumindo da maneira mais sintética
possível, o personagem Satã influencia decisivamente Macário
que faz o mesmo com Penseroso que não inspira ninguém. Afirmo
isso baseado em quais indicativos? Satã, na obra, conduz suas atitudes
de modo a ser perceptível uma forte carga de ironia (por exemplo, quando
se refere a múltiplos elementos do universo religioso, e à convivência
humana quando descreve, usando tintas sombrias e contemporâneas, a cidade
para onde vai com Macário), uma característica que aos poucos
se faz incorporar à personalidade do protagonista. Este, no início,
é um homem pouco otimista em relação ao mundo e ríspido
no tratamento com seus interlocutores, conforme é possível facilmente
aferir nos diálogos que trava com os funcionários da estalagem
e com o próprio Satã. Acerca do último, vejamos um exemplo
que me parece adequado na resposta que dá a uma pergunta que lhe parece
tola: "- Perguntai de que serve o tinteiro sem tinta, a viola sem cordas,
o copo sem vinho, a noite sem mulher... não me pergunteis se fumo!" . Outros exemplos existem, mas me parece escusado
citar mais de um.
Na exata medida em que sua convivência com Satã vai se cristalizando,
Macário não perde a desesperança frente ao mundo, mas já
se torna uma pessoa mais afável. Nesse sentido, Satã possui um
caráter, ainda que indiretamente, "instrutivo". Ele pretende
que seu "aluno" aprenda a arte de aproveitar o que a vida pode oferecer
de melhor (os prazeres experimentados em abundância), antes de suspirar
pela morte, como fica bem nítido no fim da obra inacabada. Por seu lado,
Macário de tal modo persuade Penseroso sobre suas convicções
literárias e filosóficas que este, apesar de um romântico
sentimentalista ao extremo, suicida-se sem que fiquem nítidas o bastante
suas causas mais profundas (o motivo superficial, um hipotético amor
não correspondido, é negado por sua amada). Muito embora seja
aceitável supor fora também afetado pelo "mal do século"
em função do fascínio que o ato exerce sobre ele.
A fórmula consagrada do drama nos dá a estrutura que deve ser
seguida "sem maiores questionamentos": a linearidade (começo-meio-fim,
nessa ordem e com inquestionável clareza) e a exigência dum ápice
dramático, que desemboque em um desfecho. Ocorre que Álvares de
Azevedo, em Macário, subverte a cartilha conscientemente (o que
é positivo para a trajetória do texto teatral no Brasil): primeiro,
não é das tarefas mais simples estabelecer, na obra, os limites
entre os territórios do sonho e o do real. Ainda assim, uma das interpretações
possíveis a que cheguei, referindo-me ao primeiro ato, é que há
um sonho no interior de outro. Ou seja, Macário, no cemitério,
ao sonhar com uma mulher, já está vivendo num mundo onírico
que tem origem na estalagem e que foi provocado pela presença de Satã
(daí a prova material, ou seja, suas patas impressas no piso do estabelecimento).
Segundo, inexiste uma circunstância de tensão dramática
a que possamos nomear sem as sombras da dúvida como "ápice",
e o que mais se aproxima disso, o conteúdo erudito que ocorre no diálogo
entre Macário e Penseroso não pode ser classificado dessa forma.
Até porque o que há é mais um debate amistoso acerca de
maneiras de se interpretar o mundo e a literatura do que propriamente um conflito.
Terceiro, o drama acaba sem terminar. Ou seja, a última fala não
é um desfecho, na exata acepção do termo. Antes, uma "deixa"
para algo que ainda estaria por acontecer. A morte do autor impediu essa continuação
ou ela existe nas páginas de Noite na Taverna, romance (ou uma
coletânea de contos?) em que a mesma atmosfera do drama está presente,
bem como a quantidade de homens sentados ao redor duma mesa que Macário
diz enxergar pela janela duma taverna juntamente com Satã?
A segunda hipótese, Noite na Taverna como decorrência de
Macário, me parece mais sedutora, ainda que Álvares de Azevedo
não tenha tido tempo para as devidas correções. E se a
verdade residir aí, conforme os indícios acima me apontam, estamos
diante duma construção inusitada na literatura realizada no Brasil:
uma peça teatral fazendo as vezes de prefácio não explícito
de um romance (ou diversos contos que possuem aspectos que se tocam, magistralmente
enredados?).
Mais do que claro está que Macário é uma retomada
da obra Fausto, referência sem a qual o Satã de Álvares
de Azevedo poderia soar gratuito, mera figura retórica ou simples intenção
de chocar. Assim como na obra do escritor alemão Goethe, o protagonista
é alguém decepcionado com a vida, e o modo pelo qual o demônio
se apresenta também foge ao estereótipo cristão (sem os
tradicionais pés de cabra, chifres, enxofre, etc.). Ocorre que o recurso
utilizado por Álvares de Azevedo não é original, posto
que muitas obras em diferentes épocas já o fizeram. Até
por isso, este parágrafo, que pela "ordem natural" que se espera
na construção dum texto, deveria ser o primeiro, está no
encerramento. Apenas como lembrança que uma obra é inspirada na
outra. E Fausto, por sua vez, uma releitura dum antiqüíssimo
arquétipo humano.