A Garganta da Serpente
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A sustentabilidade das políticas públicas de cultura e a lei 8.666
As especificidades do setor e a inadequação da lei.

(Lau Siqueira)

A lei 8. 666, de 1993, é a lei que normatiza os processos de contratação dentro do serviço público em nosso país. Uma lei que tem, inequivocamente, apontado caminhos para o aprofundamento dos processos de democratização e transparência na gestão pública. No entanto, o direito administrativo, não é e não se pretende estanque. Atualmente existem inúmeros encaminhamentos de emendas em tramitação no sentido de aprimoramento da referida lei, para torná-la mais ágil e mais adequada para o desenvolvimento de políticas públicas nos mais diversos setores. Ou seja, assim como as demais, esta lei precisa ser compreendida como um procedimento legal flexível aos interesses gerais da sociedade.

O debate sobre as políticas públicas de cultura é algo relativamente novo dentro das administrações. Basta exemplificar que a secretaria de cultura mais antiga no Brasil é a do Ceará, com apenas 40 anos de existência. Até hoje, muitos municípios brasileiros sequer possuem um órgão gestor de cultura. Ainda que a construção do Sistema Nacional de Cultura, em processo nas políticas centrais do Ministério da Cultura, aponte efetivamente para a necessidade e até a obrigatoriedade de criação de órgãos de gestão cultural em todos os municípios, com orçamento próprio e com políticas melhor delineadas no que se refere às estratégias de desenvolvimento econômico, social, educacional e político das comunidades.

Os conceitos de políticas públicas de cultura abundam, mas no entanto conservam um ponto em comum. Há uma convergência no sentido da busca de traduzir as especificidades que possibilitem um melhor entendimento dos seus objetos, tornando assim mais eficaz a sua aplicabilidade. Este é um conceito que está ligado diretamente ao aprofundamento das relações democráticas nas sociedades. Segundo o ex-secretário municipal de cultura de Porto Alegre, "o grau de engajamento democrático de uma administração verifica-se pela importância que se dá à esfera cultural. "

Desta forma, devemos admitir que a lei em questão aborda o tema de forma absolutamente incongruente. Apenas em seu artigo 25, mais especificamente em seu parágrafo terceiro a lei se refere à contratação de artistas, considerando que a inexigibilidade (ou seja, a excepcionalidade do processo de contratação), dizendo exatamente o seguinte: "para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública." No mais, a lei cala e cai na vala comum do que considera "notória especialização", algo, pois, absolutamente vago no que se refere às especificidades para as contratações no setor cultural que, ao contrário do que se refere à lei, não se trata apenas de contratação artística, uma vez que grande parte das manifestações culturais não podem ser reduzidas, absolutamente, à expressões artísticas.

As políticas de cultura neste início de milênio vem aos poucos desnudando essas tais especificidades, no entanto, ainda nos parece que a legislação se mostra insuficiente para suprir as necessidades do setor, dentro dos princípios do interesse público, de transparência e economicidade. O que alguns setores da chamada classe artística chama de excessos da burocracia, na verdade, penso que se estabelece exatamente na inadequação da lei que rege os processos de contratação no setor, pelo serviço púbico. Este tem sido um dilema para as assessorias jurídicas e comissões de licitação das fundações e secretarias de cultura. Um dilema que não raras vezes tem provocado um confronto de idéias que esbarram na insuficiência da legislação, uma vez que o direito cultural é um segmento cujo debate é ainda bastante insipiente, muito especialmente na administração pública.

Entrementes, não é possível mais continuarmos encobertos pelo véu das impossibilidades cotidianas nas administrações públicas de cultura. Afinal, estamos falando de um setor que abriga cinco por cento dos empregos diretos em nosso país, somando também cinco por cento do Produto Interno Bruto Brasileiro, o nosso PIB (no mundo é sete por cento). Para se ter uma idéia do impacto disso na economia, o setor imobiliário representa quinze por cento do PIB. Portanto, está mais do que na hora de buscarmos saídas para que as contratações no setor público para a área de cultura tenham um embasamento legal mais abrangente, exatamente do tamanho da sua importância para o desenvolvimento da sociedade.

Entendemos que, numa sociedade de mercado, o papel do setor público é exatamente buscar estabelecer equilíbrios que venham a se refletir no equilíbrio geral da sociedade. Pois bem, a ausência quase que absoluta de um debate mais aprofundado sobre políticas de cultura (agora resgatado pelo MinC) até mesmo dentro das políticas educacionais (que, equivocadamente, estão limitadas ao perímetro escolar) nos remetem à necessidade de buscar caminhos e traçar questionamentos que auxiliem o setor público a contratar com melhor sustentabilidade jurídica.

O debate sobre a cidadania cultural não é novidade. Li certa vez que o sociólogo Caio Ferraz, da Casa da Paz(RJ), num debate sobre cultura, políticas públicas e desenvolvimento humano, disse que "trabalhamos sempre com a dimensão da não-cidadania". No mesmo documento ele afirma ao se referir à cidadania na lógica cultural das favelas: "fazemos eventos de teatro, de dança, de música, até para dar um sentido um pouco diferente, para eles enxergarem e verem que cidadania pode e deve ressurgir do gueto".

Ora, as políticas públicas de cultura quando ousam repartir seus inúmeros guetos, seja estéticos, seja sociais, possuem uma razão suplementar para impor um ritmo de compreensão acerca da sua importância na inclusão cultural que nada mais é do que a tão propalada inclusão social.

Expressões tradicionais da como a capoeira, o cavalo marinho, o boi, o coco e suas variações, a nau catarineta e outras expressões da cultura popular, associadas às expressões da contemporaneidade como o hip-hop não poderão estar excluídas das políticas públicas, ainda que sejam expressões culturais não necessariamente reconhecidas pela sua expressão artística (há controvérsias sobre isso que demandam outro ensaio), devido ao impacto social que atingem por atuarem exatamente onde a sociedade tem demonstrado uma capacidade maior e cada vez mais crescente de diluição de valores, de identidades, com resultantes catastróficas dentro de uma lógica onde a violência marca os traços da estratificação social que vem inviabilizando a vida nas cidades.

Essas expressões, especificamente, são focos de resistência no âmago da exclusão. São a barreira invisível diante de uma cultura padronizante que invade as comunidades através, principalmente, da televisão.

Segundo Danilo Santos de Miranda, diretor regional do SESC/SP, "É preciso considerar que idéias, princípios e valores não bastam em gestão cultural. São necessários investimentos em recursos e equipamentos e, em especial, no aprimoramento de recursos humanos, na capacitação técnica dos que lidam com a questão cultural". Seguindo essa lógica, precisamos entender que a legislação atual precisa estar adequada à essas necessidades e, para nosso alívio, sentimos que muito mais do que em anos anteriores cresce nos tribunais de contas e nos legisladores brasileiros uma certa sensibilização para com a importância de trazer à tona as especificidades da gestão cultural para que as leis estejam adequadas às suas necessidades. Esta não é uma necessidade específica, entretanto, do setor em pauta, repetimos, mas da sociedade como um todo que carece cada vez mais de experimentar processos educativos fora do formalismo das políticas de educação vigentes.

Logicamente que não podemos classificar como política pública de cultura toda e qualquer expressão ou movimentação em torno dos interesses sociais. No entanto, até mesmo questões relativas à parcerias público/privadas que não são mais novidades e que se fazem extremamente necessárias quando há uma evidente supremacia do interesse público. Não se pode ignorar, por exemplo, a enormidade de recursos que envolvem eventos como o carnaval de Recife ou Salvador. Recursos, aliás, públicos e privados que geram em torno de si uma das principais políticas de desenvolvimento de regiões empobrecidas como o Nordeste.

Por aqui, a construção de políticas de cultura identitárias estão diretamente vinculadas ao desenvolvimento do turismo, por exemplo. Cidadãos e cidadãs do mundo inteiro buscam a diferença em culturas diferentes e não a pasteurização colonialista que edifica apenas a concentração de renda e a transnacioalização dos seus benefícios.

Portanto, trabalhando a cultura do ponto de vista da identidade cultural e da inventividade artística, estaremos rumo ao desenvolvimento sustentável da cultura. Um processo que atende aos interesses da maioria da população, uma vez que estabelece parâmetros mais democráticos para uma vivência social.

Não estamos falando de nenhuma novidade se considerarmos que até mesmo universidades brasileiras, como a USP, abrigam entre seus cursos, mestrados em política cultural. Ou mesmo em países como os Estados Unidos já existem também mestrados em administração das artes.
Trabalhar nas administrações públicas de cultura com ações bem definidas na área da identidade cultural é uma necessidade que supera qualquer argumentação. Também não podemos excluir da definição de política de cultural os investimentos na inventividade artística que não é outra coisa se não a compilação dos conhecimentos acumulados, com a capacidade criativa do ser humano. Sigmund Freud já dizia que "quando a ciência descobre algo, um poeta já esteve lá antes".

Não se pode conceber que toda essa gama de interesses sociais abrigados nas políticas de cultura, estejam resumidos a um parágrafo de uma lei que não distingue um artista ou um produtor cultural de um saco de batatas. O mais grave ainda é que não distingue um criador de um diluidor. O que nos faria, por exemplo, duvidar do "notório saber" de um mestre da cultura popular, como João do Boi, do Cavalo Marinho do bairro dos Novaes, em João Pessoa?

Portanto o que torna inexigível a contratação do Cavalo Marinho do mestre João do Boi, em João Pessoa, é a sua capacidade de aglutinar memórias da imaterialidade cultural. Não há outro João do Boi. Não há outro mestre Pirralhinho do Boi de Reis. Da mesma forma que somente Adeildo Vieira compõe com aquele determinismo específico, como um criador que busca o diferencial na arte para uma intervenção direta na vida. Com maior ou menor notoriedade diante da mídia, os criadores da música, do teatro, da dança, da literatura, destacam-se pelo desafio que encontram diante do novo nos seus processos criativos. Isso os torna especiais diante da sociedade e deveria, pois, refletir-se na legislação administrativa. Porque para os artistas e produtores culturais emergentes, portanto nem sempre consagrados pela opinião pública e pela mídia, o mercado cultural não representa se não um mercado de trabalho com reflexos diretos e indiretos na economia das comunidades onde vivem e na formação social e auto-estima do nosso povo.

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