Sendo um produto da fisiologia e da interação social, o ser humano
é formado pelos condicionamentos de sua herança genética
e de seu contexto histórico, as condições do corpo e as situações
socio-econômicas, além da qualidade (ou deterioração)
do meio ambiente.
O ser humano não escolhe viver, não escolhe os pais, não
escolhe o próprio nome, não escolhe onde vai nascer, nem quando,
não escolhe o idioma no qual será alfabetizado, não escolhe
o cardápio, não escolhe o grupo étnico, não escolhe
quais doenças vai sofrer, não escolhe a sexualidade, não
escolhe os governantes (pelo menos até a idade eleitoral...), não
escolhe muita coisa realmente. Com uma exceção: pode escolher morrer.
Pode decidir sua própria morte: o suicídio. Se a vida merece
ser vivida é a única questão filosófica realmente
válida. O resto é metafísica.
Onde então a liberdade? Num mundo de condicionamentos, não há
liberdade. Tudo já está em potência, tudo está em pro-jeto,
tudo está-aí. O ser humano se locomove numa 'floresta de símbolos'
(assim dizia Baudelaire) já dados, já pré-formatados. Sua
fala, suas roupas, seus gestos. Até quando julga que seja 'sua' fala, 'seu'
gesto, tudo é uma reação ao já existente. Uma reação
aos pais, à família, ao grupo social, aos líderes religiosos.
Uma reação que é compartilhada - ou então a excentricidade
é logo classificada como 'desvio', ou loucura. É difícil
portanto, ser 'diferente'. Qualquer mudança é demorada e sujeita
a 'inércia social', ou seja, a reação dos 'conservadores'.
Os conservadores são os acomodados. Aqueles que lucram com o atual sistema
de coisas. Em contraposição aos conservadores existem os 'flutuantes',
ou seja, aqueles que são rotulados de rebeldes, subversivos, revolucionários,
gênios, loucos. Aqueles que querem fazer algo DIFERENTE. Isto é,
dizer o que não foi dito, escrever o que não foi escrito, cantar
o que nunca foi cantado. Contudo, o 'flutuante' atua a partir do que já
existe. Ele faz um som? Mas antes alguém inventou o violão, a bateria.
Ele fez um blog surreal? Mas usa o idioma em que foi alfabetizado e usa
as invenções do computador PC e da internet.
Em resumo: a 'flutuação' já é parte da determinação.
Assim como o câncer brota da própria reprodução das
células. Sem essa 'flutuação' a determinação
se repetiria, seria um acúmulo constante de 'inércia social'. Após
10 mil anos de sociedade o ser humano ainda estaria comendo carne crua. Mas alguém
no meio social conseguiu convencer (e com dificuldade!) os demais a assarem, cozinharem,
a carne crua, até que semelhante ação 'culinária'
se tornou comum. Depois veio um outro flutuante que decidiu que o melhor seria
temperar a carne, e jogou uma ervas, e todos passaram a condimentar a carne. E
assim por diante.
Sem os flutuantes o mundo estaria numa inércia de mesmice. Tudo seria o
mesmo de geração a geração. Mas graças as mentes
flutuantes - que sempre sofrem de insatisfação e inadaptação
- a sociedade consegue se beneficiar, mesmo que de início isole,
em resistência, os 'rebeldes', ou até mesmo queime os mesmos nas
fogueiras. A flutuação não é a liberdade, mas uma
'acomodação das placas tectônicas' da sociedade. Quando a
coisa vai ficando improdutiva, tediosa, alguém grita um 'Eureca' e reinventa
a roda. (Uma imagem muito querida por Edgar Allan Poe)
A arte - ou melhor, o artista - é a flutuação por excelência.
O que não significa que o artista seja livre. Ninguém está
livre - pode se pro-jetar numa situação de escolha - mas a partir
de contextos já dados, conjunturas já formadas. (Com essas ideias
os ilustres Camus, Sartre e Beauvoir encheram folhas e mais folhas de palavras
- e nada resolveram) Mas o artista 'flutua' além da coletividade porque
tem uma ilusão a mais que os demais - a noção de Eu, de
sujeito consciente. Gera assim um 'egocentrismo' que move sua mente criadora
a ponto dele, o flutuante, achar que sua visão de mundo é melhor
que a dos demais e nessa pretensão ele reinventa a pólvora. Faz
uma melodia e acha genial, pinta um quadro e entra em êxtase, escreve um
texto e se julga o novo ganhador do Nobel de Literatura.
O egocentrismo do artista é uma mera ilusão. Ele é
mais um na multidão. Vive no mesmo contexto. Sua subjetividade é
uma leve flutuação da mesmice. Ele nasceu com uma dor demasiada
- o mal-estar, a náusea - e consegue criar algo a partir do desassossego
(um flutuante não artista vai se perder nos vícios, nas drogas,
álcool, jogo, ou no crime, na luxúria, no fanatismo religioso, etc,
nunca numa superação: a criação artística)
e conseguindo sobreviver, deixa uma marca da sua existência: sua obra.
É a obra que justifica a existência comum (ou excêntrica) do
artista. Sua obra é a superação do estado de náusea
(mesmo quando o fim do artista seja o suicídio) pois alguém mais
vai conhecer sua criação. Se num primeiro momento criação
é subjetiva - necessidade de desabafar, por exemplo - num segundo momento
vai agir coletivamente - outros vão apreciar ou criticar. E essa obra vai
agir coletivamente: para REAFIRMAR o mundo ou para DENUNCIAR o que está
por aí. O artista é responsável perante a obra enquanto criação,
porém não pode se responsabilizar pelo USO que outros fazem da obra.
Não podemos culpar Nietzsche pelo Nazismo, não podemos culpar Marx
pelo Bolchevismo/Estalinismo, não podemos culpar Goethe quando muitos leitores
se mataram solidários com os sofrimentos do jovem Werther. Pois o criador
pode perde controle sobre sua obra e ela se tornar um medonho Frankentein.
Daí que a obra (a menos que engavetada ou queimada - como desejava um Kafka)
sempre vai atuar coletivamente, quando tem a validade de dizer algo mais do que
o desabafo ( o grito, de E. Munch!) do(a) autor(a), mas o desabafo (o grito) de
um grupo de pessoas, de uma classe social, de um coletivo. Quando ouvimos
o grito do artista, então sentimos que fomos enfim tocados pela Arte.
Agora, o que seja a Arte, isso é outra questão. E possivelmente
sem definição.
(Jan/09)