A Garganta da Serpente
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Margarida Maria Knobbe

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Sistemas em conexão

(Margarida Maria Knobbe)

"O conjunto das mensagens e das representações que circulam em uma sociedade pode ser considerado como um grande hipertexto m´´ovel, labiríntico, com cem formatos, mil vias e canais." (Pierre Lévy)

Se nos dispusermos a realizar um daqueles jogos de associação de palavras, com pessoas diversas, lançando um termo aleatório para que seja dada uma resposta imediata, a idéia ‘mito’ provavelmente provocaria reações contraditórias. Palavra hoje empregada com tão pouco sentido e muita ressonância, mito serve para tudo.

É interessante notar que, na agenda secreta da maioria das explicações, a expressão mito sempre é perpassada pela noção de embuste, geralmente coletivo, consciente ou não. Fato que nos faz interrogar: se as sociedades, desde as mais remotas ditas ‘selvagens’ até as atuais ‘mais racionalistas’, foram e são parasitadas pelos mitos, isso significa que o homem é, em sua natureza, um ‘mitomaníaco’, com uma tendência mórbida para a mentira? A resposta não é tão simples quanto parece. Para tentar elaborá-la é necessário, primeiro, redefinir o significado de mito. Também é preciso retirar de suas vestes as marcas angelicais ou demoníacas pintadas pelo maniqueísmo preconcebido dos observadores.

Em busca da ressignificação da expressão mito, encontramos uma explicação restrita e firme, com a qual concordam os estudiosos Mircea Eliade, André Jolles e Pierre Brunel: “O mito é o lugar onde, a partir de sua natureza profunda, um objeto se torna criação”. Gilbert Durand, em As estruturas antropológicas do imaginário, completa: “Entendemos por mito um sistema dinâmico de símbolos, arquétipos e esquemas, um tema dinâmico que, sob o impulso de um esquema, tende a organizar-se em narrativa”.

Por tudo isso, segundo E.H. Carr, “não há indicador mais importante do caráter de uma sociedade do que o tipo de história que escreve ou deixa de escrever”, e a narrativa do mito impresso na consciência/inconsciência coletiva é uma das principais matérias-primas para tentar compreender os grupos humanos, na tentativa de desvelar ‘o rosto’ da cultura.

A ciência, desde a Filosofia de Platão e Aristóteles, sempre procurou afirmar o triunfo da razão e da lógica sobre outras formas de saber. Em nome de uma objetividade extrema, limitou durante muito tempo o seu campo de pesquisa a tudo o que seja verificável, mensurável e passível de reprodução em laboratório. As próprias disciplinas criadas para investigar o humano buscaram fórmulas exatas e restritivas para tratar o inexato e o irrestrito. Há apenas dois séculos, começou-se a perceber os abismos que desafiam a razão e a lógica, como é o caso do pensamento mítico e de sua influência sobre as sociedades. Portanto, os estudos sérios sobre o tema têm uma história curta, embora não possamos julgá-la pobre.

Mas o estudo do mito só pôde ser empreendido a partir de outras conquistas científicas. As descobertas sobre a memória e sobre a configuração do pensamento são duas delas. A cognição não se alimenta apenas da razão. Há, pelo menos, dois modos de conhecimento e de ação em todas as civilizações: um empírico/técnico/racional e outro simbólico/mitológico/mágico. Ambos entrecruzam-se sistemicamente, por mais que o racionalismo exacerbado não o deseje.

Esse processo sistêmico das idéias também explica as interferências dos compiladores de mitos e os literatos que foram beber em sua fonte. Escondidos atrás do manto da ficção, muitos deles realizaram, na verdade, atualizações das versões tradicionais. Com a intenção de exercer uma troca crítica com a sua própria sociedade, de estimular uma nova ética, ou simplesmente, de adaptar as narrativas ao mundo cultural de sua época.

Porém, longe de representar facilidades para o estudo, essas descobertas complicam a ação do cientista. Primeiro, porque o pesquisador precisa conhecer as armadilhas de seu próprio pensamento. Segundo, porque a cada passo dado nessas conquistas, são necessários novos instrumentos teóricos e metodológicos para desnudar o mito e colocá-lo na perspectiva da cultura.

Uma dessas dificuldades diz respeito à linguagem e à mensagem. Tudo o que é dito ou escrito pode sê-lo de outras maneiras dentro do mesmo idioma e o mito é uma fala definida pela sua intenção. No mito existem dois sistemas semiológicos: o sistema lingüístico (os modos de representação), que serve para construir o outro sistema: a metalinguagem, uma segunda língua na qual se fala da primeira.

Outro problema é a dificuldade dos próprios usuários em perceber o papel, função e significação do mito. Um fosso do qual nenhum pesquisador pode escapar ileso completamente. Se o estranhamento é postura desejável para o investigador das ciências humanas, como livrar-se das influências míticas tradicionais que carregamos sem perceber?

O perigo se torna mais difícil de transpor se nos dedicarmos ao estudo da mitologia em nossa própria cultura e no tempo presente. Já que a mitologia participa de um construir do mundo, quando as sociedades se distanciam das narrativas tradicionais, os antigos arquétipos se desfazem, cedendo lugar a múltiplos subarquétipos, às vezes, quase irreconhecíveis (os heróis imortalizados pelo cinema, por exemplo). Os motivos básicos são os mesmos: os deuses do panteão da Antiguidade se metamorfoseiam em deuses-heróis da salvação; as deusas humanizam-se, erotizam-se e ocupam os espaços míticos da contemporaneidade.

No lugar de colocar problemas que não comportam solução, como na tragédia grega, ou de trazer respostas cosmogônicas sem jamais formular explicitamente os problemas, como o mito autêntico, a variação mítica criada pela comunicação de massa, em nosso século, sobrevive da impossibilidade da realização real. Uma face mitológica que exige o happy end (final feliz) em novíssimas experiências de solidão na geografia do não-lugar.

Além da identificação dos próprios mitos, o trabalho, para quem se propuser a investigar o tema, comporta uma gama variada de outros saberes: história, filologia, lingüística, psicologia, comunicação e até mesmo as novas descobertas das ciências físicas e biológicas.

O que está claro e podemos utilizar como certeza é que mito e sociedade continuam a influenciar-se mutuamente. E essa não é uma tendência pejorativa de ‘mitomania’, porque o mito não é nem uma mentira nem uma confissão, é uma inflexão. Histórico, ambíguo, o mito pode, em última instância, significar a resistência oposta a ele mesmo. Da edificação virtuosa à iniciação libertina, a diferença reside na natureza do ensino e não na forma simbólica do percurso. Representação do passado, do presente e do devir humano, o mito pode tornar-se o caminho simbólico para outros conhecimentos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.:
  • AUGÉ, Marc – Não-lugares, introdução a uma antropologia da supermodernidade, Papirus Editora
  • BRUNEL, Pierre (organizador) – Dicionário de Mitos, Editora Universidade de Brasília / José Olympio, 1997
  • CLARET, Martin (organização) – O poder do mito, Editora Martin Claret, São Paulo
  • LÉVI-STRAUSS – O pensamento selvagem, Papirus Editora, Campinas – SP, 1997
  • LÉVY, Pierre – As tecnologias da inteligência, Editora 34
  • MORIN, Edgar – A cultura de massas no século XX, Forense Universitária, 9ª edição, 1997
  • VERNANT, Jean-Pierre – Mito e sociedade na Grécia antiga, Editora Universidade de Brasília / José Olympio, 1992
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