Ao iniciar este texto sobre Albert Camus, senti que me encontrava numa encruzilhada;
restava-me escolher um dos muitos caminhos: filosofia, romance, conto, ensaio,
teatro e jornalismo; então, optei pelos romances e contos, dentro dos
limites que este espaço comporta; quanto as suas obras de ficção
escritas para o teatro, que era para ele "o mais alto dos gêneros
literários", possivelmente as abordarei em outra ocasião.
Inicio, pois, pelo último romance publicado após a morte de Camus,
qual seja, O Primeiro Homem; essa obra tem como centro os acontecimentos da
Argélia dos anos 30-40, e como personagem central Jacques Cormery, que
outro não é que o próprio autor; Camus conta sua própria
história, começando pela infância, junto de sua mãe
e de seus sete irmãos, que compartilhavam a casa de sua avó, no
bairro popular de Belcourt, em Argel.
Em razão de sua condição de pobreza, tudo levava a crer
que as perspectivas de o menino Albert Camus ver mudada tal condição
eram diminutas, pois todos os fatos conspiravam contra ele, como o de viver
num país pobre, e politicamente dominado pela França (a Argélia
foi colônia da França entre os anos de 1830 a 1962); de ter perdido
seu pai com apenas um ano de idade; Camus nasceu no dia 7 de novembro de 1913,
na Argélia (cidade de Mondovi, distrito de Constantina). Mas, contrariando
esses fatos, Camus cursou a Universidade de Letras na Argélia, e, com
apenas 22 anos escreveu "Direito e Avesso", o seu primeiro ensaio,
e, ainda, em Argel realizou seus primeiros trabalhos jornalísticos; em
1936, quando contava com 26 anos , mudou-se para Paris, onde desenvolveu toda
sua obra.
O romance O Primeiro Homem, no qual Camus conta a pungente história da
sua infância e a memória do seu país, não chegou
a ser concluído em razão da sua morte, aos 47 anos de idade, ocorrida
no dia 4 de janeiro de 1960, perto de Villeblevin, no trajeto da cidade de Sens
para Paris, quando um furo no pneu do carro em que viajava, em alta velocidade,
dirigido por seu editor Marcel Gallimard, sofreu o trágico acidente.
Essa obra, cujos manuscritos foram encontrados sob as ferragens do carro acidentado,
foi editada na França em 1994, pela Editions Gallimard; nesse mesmo ano
a Editora Nova Fronteira publicou a obra no Brasil, com tradução
de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luíza Newlands Silveira.
Embora O Estrangeiro e A Peste sejam os romances mais importantes de Camus,
O Primeiro Homem veio ocupar um lugar de singular importância no conjunto
de sua obra ficcional, não apenas pela força de sua narrativa,
com o estilo que o distingue dos demais escritores, mas, principalmente, por
se constituir em importante legado histórico, dando-nos a conhecer, agora,
fatos relacionados com a sua trajetória de vida.
Já que acima fiz menção à narrativa e ao estilo
de Albert Camus, acho oportuno transcrever o que dele disse André Maurois,
membro da Academia Francesa, em De Proust a Camus - Vida e obra dos maiores
escritores do Século XX: "Sua linguagem era firme e simples; seu
estilo semeado de belas fórmulas; ele pensava com coragem, força
e precisão. No entanto, sua prodigiosa bagagem literária surpreende
um pouco. Os leitores estrangeiros o adotaram com tanto fervor que ele obteve
o Prêmio Nobel na idade em que outros sonham em vão com o Prêmio
Goncourt. Seus romances são ensaios em forma de ficção;
seus personagens não penetram na intimidade do leitor. E, no entanto,
essa glória aparece-nos como coisa justa. É preciso explicar essa
dissonância e essa concordância".
No romance O Primeiro Homem faz-se presente também o tema do absurdo,
como ocorreu em todas as suas obras, independentemente do gênero; exemplo
apropriado da presença do absurdo é encontrado no primeiro romance
de Albert Camus, O Estrangeiro, que tem como personagem Mersault, um jovem argelino,
pequeno empregado de escritório, que mata um homem árabe e assume
as conseqüências do crime, não como um castigo, mas como uma
forma de libertação.
Para Albert Camus o absurdo era uma dimensão presente na vida do homem,
que, em O Estrangeiro, foi mostrado com toda a sua maestria. Esse romance, publicado
pela Éditions Gallimard, em 1957, foi levado para o cinema por Visconti,
que o dirigiu; Meursault, o personagem central de O Estrangeiro, foi interpretado
por Marcelo Mastroiani, que deu ao tema do absurdo a força dramática
na cena em que comete o homicídio, no momento em que dispara sua arma
contra a vítima, e justifica esse ato dizendo: "Foi tudo por causa
do sol". Mas, como diz Horácio González, editora brasiliense:
"Lucchino Visconti não consegue um bom Estrangeiro, pois transcreve
situações literalmente, descambando todo o material narrativo
para o realismo. Perdem-se a mitologia e os efeitos de tragédia da linguagem
literária".
No romance A Peste, de 1947, traduzida por Graciliano Ramos para a edição
da Livraria José Olympio Editora, em 1973, o personagem central é
o Doutor Rieux, médico da cidade de Oran, ao norte da África,
que foi vítima de uma terrível peste que a isolou do resto do
mundo. O absurdo está presente no drama da peste provocada por milhares
de ratos que se multiplicavam e se espalham por todos os cantos da cidade; o
absurdo está presente na vida de cada um dos habitantes de Oran; estes,
tomados de pânico, não conseguem administrar os seus sentimentos
de amor, ódio e inveja; encontram-se dominados pela fadiga e pelo medo
de virem a somar-se às centenas de cadáveres fétidos que
se encontram amontoados nas ruas e praças da cidade.
Também no romance A Queda, publicado em Paris, pela Éitions Gallimard
em 1956, encontra-se presente o tema do absurdo; nele não aparece mais
o sentimento de solidariedade, como ocorreu em A Peste; neste trecho de A Queda,
Camus dá uma idéia clara dessa mudança: "Não
podemos afirmar a inocência de ninguém enquanto pudermos afirmar
sem dúvida a culpabilidade de todos". Camus conta, nesse romance
filosófico, a história de Clemence, um advogado parisiense, outrora
respeitado, que troca Paris por Amsterdã, onde passa a morar numa hospedaria
de marinheiros; aí confessa as suas faltas para pessoas desconhecidas;
fala da hipocrisia de sua profissão, afirmando aos seus ouvintes: "nunca
tive senão boas intenções"; Clemence procura saber
o momento em que começou sua queda; seus ouvintes ouvem suas confissões
e acabam contando-lhe também os seus erros, o que é esperado por
ele; diante de tais confissões, Clemence passa a julgá-los, e
a dar a si próprio o direito de cometer todos os crimes.
A Morte Feliz, obra póstuma, foi publicada em 1971; Camus conta uma história
que se passa, em grande parte, na década de 30, na Argélia dos
anos de 1930; Patrice Marsault, personagem principal, é um empregado
medíocre que vive um caso amoroso com Marthe, e que conhece seu ex-amante
Roland Zagreus, homem requintado, de posses e inválido; Patrice mata
Zagreus para roubá-lo; a partir desse dia, passa a viver uma vida independente;
parte para Praga para depois voltar para a Argélia, em busca do sol que
não encontrou na Europa. Camus conta essa história revivendo o
bairro de Belcourt, na Argélia, no qual passou sua infância; seu
emprego como despachante marítimo; sua viagem para a Europa Central,
no verão de 1936, e sua passagem pela Itália em 1937; suas internações
em sanatórios (tuberculose); sua vida na Maison Fichu, nas colinas da
Argélia, em 1936; seu casamento com Simone Hué, e posterior rompimento
- o seu segundo casamento foi com Francine Faure, em 1940.
A última obra de ficção publicada por Albert Camus foi
O Exílio e o Reino, em 1957, ano em que recebeu o prêmio Nobel
de Literatura. Esse é seu único livro de contos (seis histórias
ao todo); tais contos, no dizer de André Maurais, pareciam constituir-se
em esboço para futuros romances, como ocorreu com A Queda, publicada
um ano antes desse livro de contos; estava para ser publicada como conto, mas
Camus ampliou a história, que resultou no romance. Esse livro de contos
foi publicado no Brasil pela Editora Record, em 1997, com tradução
de Valerie Rumjanek; está na sua na sua 6ª edição.
Embora sem a mesma qualidade dos romances, esta obra de Camus merece nossa leitura.
Encerro este trabalho sobre Albert Camus, com o seguinte trecho, transcrito
por André Maurais, na sua obra citada: "Jean-Claude Brisville perguntou
um dia a Camus: "Qual é o cumprimento que mais o irrita?"-
ao que Camus respondeu: "A honestidade, a consciência, o humano,enfim,
você sabe, todo esse gargarejo moderno".