A Garganta da Serpente
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Livros, Leituras e Bibliotecas

(Silas Corrêa Leite)

Um escritor sente ao mesmo tempo
e mais a dor humana, pois é ao
mesmo tempo celebrante,
testemunha e vítima

(Edna O´Brien)

Os maiores seres humanos do mundo de todos os tempos, passaram a vida inteira literalmente pendurados em livros importantes. Várias conquistas históricas - curas, descobertas, buscas, vitórias, prêmios nóbeis, invenções, artes, ciências, etc. - passaram necessariamente pela enormidade de livros de qualidade que leram, releram, pesquisaram, buscando habilidades e conhecimentos vitais. Livros e leituras. Relembrando a minha doce infância na Estância Boêmia de Itararé, das descalças ruas cor-de-rosa, dos vendedores de pirulito premiado aos vendedores de dolé de groselha preta, do afiador de facas ao vendedor de bananas, do mascateiro de bugigangas aos entregadores de leite e pão (A carrocinha de padeiro/Tem um buraquinho bem no meio/Que vai semeando sanhaços e colibris/Atrás do farelo de pão), recordo que tinha também o simpático Vendedor de Livros: bibliotecas, enciclopédias, Bíblias, dicionários, romances, clássicos. Já pensou? Bons tempos aqueles em que eu era feliz e não sabia.

Você pesquisa a história de um herói, de um aventureiro famoso, de um personagem histórico de quilate, de uma personalidade fora de série para o mundo, e sente o que é realmente fato: a leitura, a educação, a cultura, a sensibilidade, a família estruturada dando amor e cobrando com sanções formaram a base. E os livros, que plantaram idéias em corações e mentes. Pois era um tempo em que um vendedor treinado e bem vestido batia palmas no portão de tabuinhas da casa de gente humilde e ofertava coleções de livros a preços módicos. E as pessoas atendiam curiosas, interessadas. Ficávamos serelepes, de butuca, e víamos aquele monte de livro, de Jorge Amado, J. G. de Araújo Jorge, Érico Veríssimo, Leon Tolstoi, Cecília Meireles, Monteiro Lobato, e o vendedor afirmando com convicção que o homem que lê vale mais. Os pais, sabidos, compravam fiado, em suaves prestações mensais, aquelas enciclopédias que facilitavam a vida da gente, abriam mundos, punham pingos nos is das dúvidas e das quireras de questionamentos precoces. Em casa estudar era obrigação, quase sagrada, e, ler mesmo e na marra, virou castigo. E líamos de tudo: dicionários, a Bíblia, revistas como Fatos e Fotos, Realidade, Seleções e, ainda, Contigo, Intervalo, Palavras Cruzadas, fotonovelas do Sétimo Céu, Cruzeiro e tudo mais. E quando pairava a dúvida, gritava a sábia Vó: -Vá consultar o Pai dos Burros. Eu, quando aprontava (e aprontava muito e sempre) tinha que ler os Salmos de Davi. Mas gostei da prazeirança e contenteza do verbo LER. E depois, convenhamos, era muito melhor do que sova de vara de marmelo. E toma Música ao Longe, Clarissa, Solo de Clarineta, Vinicius de Morais, Guerra e Paz, Pablo Neruda.

Se quem lê vale mais, imagine que lê muito, pois vale muito mais, assim como quem lê coisa difícil ou complicada pensa melhor, abre a cabeça. Quem tem sensibilidade lê poesia então, vira poeta a apronta sabenças e contentezas por atacado. E naqueles tempos o professor que ganhava igual a um juiz, dava um Machado de Assis na aula da sexta-feira, para o aluno trazer trabalho de resumo na segunda. Normal. E tínhamos aulas de redação, gramática, literatura brasileira e literatura portuguesa, além de uma semana de verbos. Os livros nos salvavam. Os dicionários eram quase santos. As enciclopédias valiam ouro. Quem pensava num futuro promissor para os filhos, tinha uma em casa. Livros, leituras, bibliotecas, tudo isso tinha a ver com cultura, educação, evolução, investimento no ser humano.

Assim como nos arrumávamos bem para ir à igreja, ficávamos chiques segundo o figurino, também estávamos embonitados para ir à escola. Para entrar numa biblioteca então, era quase um lugar sagrado, eu adentrava ao prédio todo trancham. Bendita filosofia a dos que confiam na educação e no amor como melhor remédio. -O que você foi fazer na biblioteca, guri? Era um piá entojado querendo saber da acontecência que nos levara até lá. E a resposta - um rapaz que amava os Beatles e Tonico e Tinoco - fazia panca e mostrava o volume do livraço espetacular: -A professora deu o Escritor de renome João Guimarães Rosa para lermos até a prova. E tínhamos orgulho do livro, da escola, da professora. Os pais sabiam: esse menino vai longe, lendo assim. Longe é um lugar dentro da gente no devir?

Você imaginava o futuro de um cidadão pelo livro que tinha embaixo do braço, pelas notas que ele tirava nas provas. Quando sabia falar bem, escrevia bem e tudo isso somado à bendita leitura dos clássicos brasileiros ou mesmo internacionais. Os tradutores eram do nível de um Manuel Bandeira, Érico Veríssimo e outros. Ler era questão de sabedoria. E daí, pegando gosto, íamos lendo de tudo, de gibis - Kit Carson, Flecha Ligeira, Mandrake, Fantasma, Tarzã, Príncipe Valente, Pato Donald - a jornais, pessoas, autoridades, seres humanos, vivências, referenciais; como livros abertos. Muitos deles com um final feliz pelo que fizeram de bem ao povo, à sociedade, à imprensa, à cultura. E com os livros enfrentávamos viagens, estradas de tijolos amarelos, Sangri-lá, Terra do Nunca, Dublin.

Com oito anos, no primário do Grupo Escolar Tomé Teixeira, mal-e-mal alfabetizado (vogais, consoantes, hinos e declamações, mais os causos que meu pai tocador de acordeão contava com sabedoria letral de bubuia), e não foi muito tempo de aulas vivas e surpreendi a Professora Jocelina Stachoviach de Oliveira: pincelei umas quadrinhas pueris. Dia da Pátria, Dia do Índio, Dia da Árvore, Dia da Bandeira e lá estava eu, todo pimpão, declamando e impostando a voz que se formava. Aos 16 anos já colaborava com o jornal O Guarani da cidade. Crônicas, humor, trocadilhos. O castigo de ler - e ler bem e ler alto e ler muito - livros, jornais (as brigas do Lacerda com o Brizola ou o Jango) virou bagagem, conteúdo, soma. O rapaz de botinha sem meia, cabelo na testa, calça calhambeque, tinha vindo de um letramento em casa e no entorno; livros de qualidade. E ainda o vizinho que tinha - Há um Deus - todos os clássicos russos. O menino, criado depois de seis irmãs, quando é lembrado por elas, a imagem que ficou foi das calças curtas de morim-cambraia com suspensório, queds ou ki-chute, tomando crush ou tubaina de tutti-fruti (as irmãs de saia ban-lon), com um caderno, uma revista, um livro da mão. Quem procura acha?

Virou poeta, sem lenço e sem documento. Enfrentando os rocamboles da vida, com labirintos, releituras, tristices, cursos e ganhos. Aprendeu com Castro Alves que "Viver é lutar/A luta é renhida..." Migrou para Sampa, voltou a estudar, aprendeu que escrever era colocar a alma feito nau para respirar, virou escritor, foi premiado, lançou livro virtual, estudou, e, na parede da memória ficou a lembrança de todo mundo lendo em casa. Do pai juntando a família para prosear causos em frente à vitrola Semp; da barulhança que era a chegada de um livro novo, uma novela, um romance. Do vendedor de livros, da estadia na biblioteca que era o céu de todas as sabedorias. A importância do livro. A importância das leituras. Vencer ficou fácil. Enfrentar a barra pesada de viver também. Meus livros, meus maiores tesouros. -Como lê esse guri, reclamava a Vó tempos depois. -Ainda vou viver de ler e escrever, eu respondia, rascunhando um poema, relembrando mestres escritores. Meus livros, meus mestres. Minha vida é um livro aberto, mesmo que na página errada? Imagine só: páginas de rostos, páginas da vida, histórias, baladas e blues. Minha vida é um livro aberto. Esperto que o final feliz dê certo. Como Deus é sábio, mandou os poetas e escritores registrarem sabenças, prazeiranças e contentezas. Iluminuras de paletas letrais. Vivências-salmos. Vidas-livros. Hoje tenho duas almas: uma dela é o prazer da Leitura. Como a vida é um eterno aprendizado e o saber é infinito, compreendo melhor que disse Soren Kierkegard "Ai daquele que sabe: há de pagar pela culpa de ter sabido pouco". Quem mexeu no meu livro?

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