A morte traz à tona a vida. Se alguém tiver certeza de que vai
morrer daqui a um mês, tentará realizar seus desejos imediatamente
e viverá intensamente cada minuto. Mas vivemos como se não soubéssemos
da nossa morte.
Manuel Bandeira (1886-1968), um dos maiores representantes da poesia modernista,
viveu se preparando para a morte. Ele não a desejava, como disse no poema
"Belo Belo": " Tenho tudo que não quero/ Não
tenho nada que quero/ Não quero óculos nem tosse ".
O poeta esperou morrer jovem devido a " uma escavação no
pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado ". O doutor
sugeriu "tocar um tango argentino " como única solução,
no poema "Pneumotórax", mas a "indesejada das gentes"
só veio buscá-lo aos 82 anos, de parada cardíaca, e não
de tuberculose.
A idéia da morte iminente inspirou versos que falavam da "vida
que poderia ter sido e que não foi". A poesia era sua "vida
verdadeira" e ele queria apenas "a delícia de poder
sentir as coisas mais simples" .
A convivência com a doença permitiu ao poeta um trabalho intenso
de (re)construção da sua identidade, desde as formas de lidar
com a doença até o desenvolvimento das variadas temáticas
e formas poéticas.
A percepção do "mau destino que fez o que quis com o menino
bem-nascido" fez com que ele sonhasse com um lugar onde pudesse viver sem
as limitações que a doença trazia. Assim, de todas as viagens
que fez, os melhores lugares foram os inventados, como indicam os versos do
poema "Testamento": "Vi terras da minha terra./ Por outras
terras andei./ Mas o que ficou marcado/ No meu olhar fatigado,/ Foram terras
que inventei."
Sua maior façanha foi trazer a antiga capital da Pérsia para o
reino da poesia. Pasárgada tornou-se sua maior metáfora, seu melhor
refúgio na imaginação, onde "a existência era
uma aventura" e ele podia subir em pau-de-sebo, andar de bicicleta e ser
amigo do rei. Principalmente onde podia praticar o epicurismo e os prazeres
que a doença não permitiu na real vida estóica, como deitar
com a mulher que escolhesse.
Os seguidores do estoicismo aconselhavam viver em obediência à
lei natural da vida, aceitando com serenidade a idéia da morte. O filósofo
estóico Sêneca dizia que devemos saber morrer para viver, que viver
é aprender a morrer.
Manuel Bandeira aprendeu a morrer através da poesia da vida. As lições
diárias foram com as estrelas e a noite, seus temas constantes, ou com
o avião que partia sem medo, no poema "Lua Nova": "Todas
as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de
partir".
O rio que corre, ensinou a serenidade diante do destino imutável que
teria em breve: "Ser como o rio que deflui/ Silencioso dentro da noite.
/ Não temer as trevas da noite. / Se há estrelas no céu,
refleti-las. "
Aprendeu as sutilezas da beleza em "Madrigal melancólico":
"E a beleza é triste./ Não é triste em si,/ Mas
pelo que há nela de fragilidade e de incerteza."
Em "O último poema", percebe que há beleza também
"nas flores quase sem perfume".
Em "Renúncia", mais uma vez demonstrou que estava aprendendo
a aceitar a morte, "Procura curtir sem queixa o mal que te crucia",
"Sofre sereno e de alma sobranceira... tua desgraça."
Ele estava pronto para morrer quando percebeu que a morte é também
um milagre da vida. O poema "Preparação para a morte"
é o resultado desse aprendizado. Nele, diz que a vida era um milagre.
Flor, pássaro, espaço, tempo, memória e consciência.
TUDO era milagre para o poeta. Finalmente, admite: "-Bendita a morte,
que é o fim de todos os milagres."
Manuel Bandeira viveu longos anos aprendendo a morrer. E quando a morte "dura
ou caroável" chegou, tudo devia estar no lugar, como diz em
"Consoada": "Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,/
A mesa posta,/ Com cada coisa em seu lugar.