Se existe uma tarefa complexa, está é, sem sombra de dúvidas,
a análise literária. A complexidade não reside, porém,
na interpretação coerente e exata da obra em si, mas ante a tudo,
é preciso que exista - via de regra - uma harmonia, uma comunhão
espiritual profunda, diria mesmo dialética, por parte da alma do analista,
ou crítico literário, para com a alma do autor da obra.
É necessário que aconteça um equilíbrio e harmonia
transcendentes, uma conjugação perene do Ser que não possa
ser explicada nem pelos estudos da Lógica, ou da Filosofia, tampouco
pela Ética; é preciso que as almas entrem numa fusão
absoluta e completa a fim de que possamos encontrar aquela palavra que os crentes
de todas as religiões há séculos perseguem e que se denomina:
PERFEIÇÃO!
Partindo desta premissa, explicitamos que é humanamente impossível
tecer comentários sobre a Obra Poética - Literária do monumental
escritor e poeta português, Fernando Antônio de Nogueira Pessoa,
devido justamente à universalidade e à magnificência de
todo o seu conjunto, que se abre aos nossos olhos latino americanos com todo
seu turbilhão violento, convulso, indomável e maravilhoso aonde
não o poderão conter nem os próprios rochedos dos mares
infinitos da Eternidade...
Ser o Fernando Pessoa é uma questão óbvia de espírito,
e, compreender o âmago do Ser do Fernando Pessoa, esta é,
também, uma questão óbvia de espírito, pois não
existe um equilíbrio perfeito, harmônico e UNO na visão
espiritualista e, portanto cosmológica do próprio SER do Fernando
Pessoa. O Fernando Pessoa não se define: ELE É! Portanto, o que
se É não pode entrar em julgamento porque explicita e implicitamente
existe.
Daí a existência do fenômeno português Fernando Pessoa
ser um fato indiscutível e consumado não só na Literatura
Lusitana, mas também na própria Literatura Universal, por que
antes de haver sido o Fernando Pessoa, ele próprio já pré
- concebia a existência material e concreta daquele que viria a ser o
Fernando Pessoa.
O Fernando Pessoa antes de nascer, já havia tido a visão interior
- premonitiva, a consciência profética de todos os grandes predestinados...
o ventre universal e antológico do qual foi gerado é o mesmo que
foi banhado por aquele esperma ardente e caudaloso que também fez gerar
o sol, a lua, as estrelas, os profetas,... e os poetas!
O Fernando Pessoa é uma significação que se move.
E o significado existe. Portanto É!
Nascido em Portugal no dia 13 de junho de 1888, na noite ruidosa, alegre e festiva
de Santo Antônio, o Fernando Pessoa ao sair do útero materno já
moldava oniricamente no seu EU a figura sombria, arredia e errante que caracterizou
para sempre a sua alma.
Com o espírito marcado por uma apatia profunda e generalizada, oriunda
dos traumas afetivos e recalques espirituais marcantes passados na fase da primeira
infância, principalmente quando perde o seu pai aos seis anos de idade,
acontecimento que choca o pequenino Fernando porque parece que seu pai lhe tinha
um afeto imenso, um amor desbragado e incomensurável, e a criança,
que até aquela época gozava de uma liberdade espiritual sadia
sob todos os aspectos, se recolhe a si mesmo.
Interioriza-se. Fecha-se em seu "casulo".
O Fernando Pessoa tranca-se na sua pequenina "crisálida". O
mundo de agora em diante será ele mesmo, dentro de si, com as suas circunstâncias
e perplexidades, refletindo-se diante do seu próprio e inexorável
espelho.
Fernando Pessoa e o Narciso... ou o Narciso deitado no divã do analista
Fernando Pessoa, buscando a imagem perdida dentro do seu próprio Ser.
O mundo de agora em diante será o próprio Fernando Pessoa, imerso
dentro de si com toda a sua intensidade e insanidade oníricas.
A vida fácil e tranqüila acaba com a morte do pai, que deixa viúva
a sua mãe e órfãos, o pequenino Fernando e mais um irmãozinho
que logo em seguida morre. Sua mãe começa a sofrer os primeiros
apertos financeiros e desfaz-se da rica mobília da casa, os seus espelhos,
jóias familiares e é obrigada, com o garoto Fernando, a mudar
de residência, agora moram numa casa acanhada, modesta e simples.
Passados alguns meses a mãe do Fernando Pessoa casa-se em segundas núpcias,
por procuração, com um oficial - menor que servia até então
na África do Sul e logo depois se muda para esta nova localidade com
o novo marido, contando o Fernando Pessoa apenas sete anos de idade. Esta mudança
súbita de lar, de categoria social superior para inferior em tão
pouco tempo, a degradação social que passa a mãe, a perda
da pátria - mater, Lisboa, com todas as suas tradições
seculares, magias e encantamentos etc. marcam profundamente a alma sensível
do Fernando Pessoa.
Ao chegar à África do Sul a mãe o isola num Internato...
Na solidão daquela casa de meninos abandonados, rejeitados pelos seus
pais e pela própria vida, o pequenino Fernando procura a companhia dos
livros e através de estudos e leituras procura um lenitivo que coloque
um fim na sua dor, a sua infinita e eterna melancolia...
A sua mãe se enche de novos filhos, o Fernando Pessoa assiste a tudo
passivo, à distância. Há um "Édipo" recolhido
dentro do seu ser. A lembrança saudosa do irmãozinho morto lhe
vem às lembranças através recordações dolorosas
de nítidos pesadelos, no calor febril das suas madrugadas insones e desesperadas.
A chegada de novos irmãozinhos, um atrás do outro, a repulsa do
sangue do Fernando Pessoa aos seus pequeninos irmãos, a revolta infantil
profunda que se enraíza no seu espírito, tão novo, mas
tão profundamente marcado pelo sofrimento da ausência do amor familiar...
o seu autismo, a sua indiferença, as suas primeiras indagações
espirituais ainda numa idade precoce, a falta de amor, a carência afetiva
significada na ausência do amor materno, o amor primordial e único
que de agora em diante será carinho e proteção para com
as novas crianças da família recém criada.
O abandono material e espiritual precoces fez do Fernando Pessoa uma criança
triste, sorumbática e silenciosa, retraída do mundo exterior e
voltada exclusivamente para dentro de si mesmo. Do lado de fora ele era UM...
do lado de dentro ele era VÁRIOS! O Fernando Pessoa consegue superar,
patologicamente, no repúdio, na rejeição doentia, os nascimentos
dos seu novos irmãos, os quais, ao virem para este mundo, roubaram-lhe
o lugar de filho amado e querido.
A sua adolescência viria a ser marcada pelo seu caráter estritamente
esquizóide, oriundo de uma ambivalência espiritual que já
o dominava desde a fase da sua primeira infância. O Fernando Pessoa trouxera
consigo todas as suas mazelas, tristezas, melancolias e desenganos que brotavam
dentro d'alma em raízes ácidas, profundas e verdadeiras e que
irá acompanhá-lo até a sua morte. Aos dezessete anos muda-se
para da África do Sul, aonde deixa a mãe, o padrasto e os novos
irmãos a fim de estudar em Lisboa, porém, devido ao seu temperamento
esquizotímico e irrequieto, a sua passagem na universidade é efêmera,
não estudando nem um ano completo.
O "autismo" é uma característica comum a todas as formas
conhecidas de esquizofrenia, (são conhecidos quatro tipos clássicos:
1 - Esquizofrenia Simples; 2 - Esquizofrenia Hebefrênica; 3 - Esquizofrenia
Catatônica e 4 - Esquizofrenia Paranóide), apresenta-se no caso
do Fernando Pessoa na incapacidade do paciente estabelecer relações
normais com o ambiente. Segundo Bleuler, o enfermo compreende a interpreta o
mundo no sentido dos "seus desejos e fantasias", e, desta maneira,
não tem condições de adaptar-se às exigências
da realidade.
Segundo as opiniões de outro estudioso da área, o Dr. Minkowshi,
o "autismo" seria a perda do contato vital com a realidade, "...
ultrapassando as funções isoladas, se encontra em todas as
manifestações da pessoa alterada, isto é, tanto em sua
ideação, quanto as suas reações afetiva, em sua
volição e em seu comportamento."
Ora! Encontramos todos estes sintomas no Fernando Pessoa, objeto desta análise,
na sua angústia profunda e verdadeira, mesclada a uma solidão
sem limites que lhe foi outorgada pela sua mãe, a figura que ele mais
amava, transtornando desse modo toda a "estrutura do Ser" do Fernando
Pessoa. Associada à angústia surge de imediato à síndrome
depressiva aliada à irritabilidade, a qual se une à melancolia...
Dois estados de espírito numa só pessoa! Dicotomia do EU!
Uma indiferença marcante do EU, o caos absoluto, as divagações
absurdas e magistrais do Espírito e o silêncio abissal nos lábios
trêmulos e finos... crises constantes de ansiedade, o pranto convulso,
desesperado e só, um mal estar intenso, inexplicável, uma depressão
sem fim...
A FUGA!
A fuga de si mesmo através a dispersão espiritual, através
do álcool, através dos versos! A ambivalência aguda é
outro traço característico do seu espírito doentio o qual
não é contraditório porque não discute consigo;
ele discute com ELES...
ELES são os OUTROS! Os heterônimos conhecidos do Álvaro
de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caieiro que co - habitam
iluminados no interior do espírito enfermo do Fernando Pessoa. Um homem
de alma solitária e incompreendido pelos homens, mas, compreensível
a si próprio! Um homem só e incapaz de adaptar-se ao mundo
exterior. O seu comportamento é estranho e os seus atos, sob a lógica
racionalista da razão humana, são destituídos de quaisquer
espécies de sentidos.
"O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente!"
Característica primordial no comportamento esquizóide do Fernando
Pessoa é o seu afastamento da realidade, também das outras pessoas.
Existe uma relação superficial, diríamos aparente. Raros
são os amigos... não tem mulheres, e, em casos de supostos amores
só conhecemos o da Ofélia Queiroz que é um fato merecedor
de análises e estudos. Uma vida exterior passiva, inexistente, todavia,
uma vida interior que explode, vibra e sublima-se em criações
poéticas magistrais que mais se assemelham aos rastros dos cometas nas
profundezas azuis e poéticas do firmamento.
O Fernando Pessoa isola-se dentro de si próprio... e VIVE!
O mundo verdadeiro que existe e pulsa dentro dele, dentro do seu EU, biparte-se
em vários fragmentos de diamantes coloridos e brilhantes. Cada fragmento
de diamante é um ente assexuado e lindo, diferente e universal, com sua
personalidade e pensamentos próprios, que nada tem a ver com a Unidade
Cósmica.
A UNIDADE CÓSMICA NÃO EXISTE!
O que realmente existe solto no espaço são fragmentos de diamantes
d'Alma que possuem vida própria, atitudes e vontades próprias
e que dentro do espírito do Fernando Pessoa constroem o seu exclusivo
e inexorável Universo. O seu próprio e impenetrável casulo...
O Fernando Pessoa não é um... e múltiplo! E é justamente
esta multiplicidade que o faz sob reviver.
Citamos o Fernando Pessoa quando ele diz: "A origem mental dos meus
heterônimos está na minha tendência orgânica para a
despersonalização e para a mistificação."
A partir desta citação pessoana vislumbramos a fuga do poeta frente
ao seu próprio mundo, à sua inexorável irrealidade e constatamos
a busca de si próprio através da ambivalência dispersa
e doentia, a qual, por ser complexa aos demais mortais, foi suficiente para
moldar o irreal imaginário tanto no consciente, como no inconsciente
do poeta.
Encontramos o poeta imerso no seu universo singular, na busca constante da sua
despersonalização buscando unicamente a unicidade
da sua poesia. Ao despersonalizar-se, ele transforma-se no criador... no pretenso
deus de si mesmo, e diante desta surreal gênese poética o Fernando
Pessoa consegue multiplicar os seus EUS, fazendo gerar no âmago d'Alma
figuras bizarras e incandescentes de MAGO, BRUXO e travestido de DEUS ele dá
o sopro da vida ao Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto
Caieiro, Bernardo Soares e outros dignos e ilustres heterônimos que
fazem parte do seu consciente e subconsciente esquizóides.
Ao despersonalizar-se, ELE EXISTE...
E ao existir... ELE É!
Eis o grande mistério do poeta Fernando Pessoa.
O paciente esquizóide possui um caráter predominantemente místico,
porém múltiplo no seu universo mágico interior. Lúcido
em consciência, todavia aparentando às demais pessoas um estado
de ânimo apático, passivo, indiferente. Indiferença esta
que é profundamente aguda no campo afetivo. O Fernando Pessoa é
um homem só, carente de afetos e ausente de iniciativas exteriores.
Uma catatonia periódica invade-lhe o espírito e o Fernando Pessoa
deprime-se, tornando-se débil e presa fácil da ansiedade. A sua
personalidade biparte-se, fragmenta-se... e nas suas cálidas e oníricas
alucinações ele escreve cartas a si mesmo, mantendo uma correspondência
ativa e constante com os seus EUS, pois, como ele mesmo narra numa das suas
cartas íntimas, que quando sentia abandonado e sozinho: "... distraia-se
escrevendo cartas para si mesmo!"
A esquizofrenia andejava pelas alamedas e corredores da sua alma. Visita então
o Álvaro de Campos, o Poeta da Água e lê com o mesmo as
suas maravilhosas Odes Marítimas. Depois o Fernando Pessoa vai passar
à tarde com o inominável Alberto Caieiro, o Poeta da Terra, com
os pés firmes e plantados na terra, com todo o seu enraizamento no REAL,
no chão onde pisa, na razão material das coisas, de todas as coisas!
Quando o crepúsculo desce por trás dos montes e telhados azuis
românticos de Lisboa, o Fernando Pessoa despede-se do Alberto Caieiro
e vai passar a noite com o Ricardo Reis, o Poeta do Ar, o poeta garceziano
das alucinações metafísicas e delírios os mais fascinantes,
aquele poeta habitante do onírico e que sonha de uma maneira mais leve,
absolutamente solta da realidade, conseguindo planar tranqüilo, misterioso
e surreal no silêncio dos seus passos noturnos.
A ÁGUA, A TERRA e O AR... três elementos constituintes do Universo
Cósmico do Fernando Pessoa que individualmente não se mistura
a eles. Cada qual com a sua substância, a sua essência e a sua identidade
poética. Cada um com o seu cósmico e inexorável elemento
criador, no seu individualismo concreto, frente à multiplicidade esquizóide
criativa do Fernando Pessoa que se transforma no quarto elemento, O FOGO, e
parodiando a estória da FÊNIX, o poeta lusitano renasce de si mesmo,
das suas próprias cinzas criadoras, gerando-se do seu próprio
pó!
Este é o quarto elemento, senhores, o próprio Fernando
Pessoa que surge num ímpeto insano e ardente derrubando e queimando as
barreiras do tempo e do espaço, estourando as represas do EU,
fazendo rolar em grossas e maravilhosas torrentes ensurdecedoras os versos cristalinos,
alcoólicos e alquímicos da sua poesia!
A poesia do Fernando Pessoa é muito mais que infinita porque ele consegue
transcender e romper os limites do próprio universo e desta maneira,
tornar-se mais conhecida do que as propagandas da Coca-Cola e os casos de pedofilia
na Igreja Católica, que vergonhosamente dominam os noticiários
internacionais e as redes da internet pelo mundo inteiro.
A Poesia Pessoana engloba a COSMOLOGIA POÉTICA TOTAL, como no
final da década de sessenta já havia profetizado o poeta e arqueólogo
baiano Ivan Dórea Soares num dos seus ensaios poéticos
para o extinto Jornal da Bahia, antigo baluarte cultural contra a Ditadura
Militar em terras baianas que ainda sob ameaças de prisões e torturas,
tive a elevada honra de participar.
Desconhecendo as ameaças simplórias e poéticas da Ditadura
e dos seus representantes militares e civis, em tempos idos, continuei a ler
e a vivenciar no meu espírito rebelde a poesia romântica e esquizóide
do Fernando Pessoa, rompendo com os cânones ortodoxos e conceitos abstratos
do fazer poético, alicerçando dentro de mim as bases da minha
própria eternidade onírica, sob a sombra azul, translúcida,
absoltamente livre e infinita daquele Deus Histórico da poesia
lusitana.
...há um transbordamento surdo, um ruído que abala os alicerces
do próprio Ser e parodiando o Deus - Cristão, o Fernando Pessoa
cria os céus e a terra...
"a terra, porém, era sem forma e vazia;
Havia trevas sobre a face do abismo"
(Vers. 2, Cap. 1 - GÊNESIS)
...e o Fernando Pessoa no sétimo dia da sua criação, resolve criar somente o HOMEM, à sua própria imagem e semelhança, quando surgem então os heterônimos oriundos daquela...
"neblina que subia da terra
e regava toda a superfície do solo"
(Vers. 6, Cap. 2 - GÊNESIS)
...o Álvaro de Campos, Ricardo Reis e o Alberto Caieiro surgem nos Jardins
do Éden do Fernando Pessoa, bipartindo-se, fragmentando-se e povoando
a Terra...
...até a consumação dos Séculos, de todos os Séculos...
até o desenlace fatal dos tempos!
Falece o Fernando Pessoa no dia 30 de novembro de 1935, em Lisboa, com a idade
de 47 anos, vítima de cirrose hepática, devido ao uso e o abuso
do álcool que lhe foi companhia fiel e constante nos últimos dias
de solidão neste mundo.