A Garganta da Serpente
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Monteiro Lobato, o folclorista

(Thiago Fragata)

Nesse mês de agosto é pertinente ressaltar a contribuição de Monteiro Lobato (1882-1948) ao folclore brasileiro. Muitos perfis do insigne intelectual foram desvelados pelos estudiosos de sua obra: escritor, editor, missivista, pedagogo, diplomata, economista, financista, humorista, crítico de arte, poeta, patriota, panfletista. Apenas o raro trabalho "Monteiro Lobato, o Folklore e o Çaa Cy Pererég", assinado por Alceu Maynard Araújo, em 1948, destaca o pioneirismo de Lobato na pesquisa etnográfico e na promoção do folclore brasileiro, focando o caso do fantástico Saci Pererê.

Antes do reconhecimento público como escritor, Monteiro Lobato era fazendeiro em Taubaté, onde ouviu as estórias dos caboclos acerca da entidade maléfica, que visível ou invisível, atormentava a vida de todos. Descrente, o brincalhão fazendeiro rendia conversas com os seus amigos mais distantes. Numa carta a Godofredo Rangel pergunta da forma do Saci em Minas Gerais. Joaquim Correia, amigo comum, jurava ter visto, com "olhos de fogo e correndo aos pulinhos, como tico-tico".

Nacionalista, Lobato condenava veementemente a influência estrangeira, dita civilizada e moderna, sobre os vários segmentos da cultura nacional. Daí as restrições à matriz inspiradora da Semana de Arte Moderna, de 1922, uma vez que defendia o desenraizamento cultural do país. As páginas d"O Estado de São Paulo" foram veículo de seu pensamento e ação. No artigo "A criação do estilo", publicado em 6 de janeiro de 1917, sugere a incorporação dos elementos do nosso folclore nos cursos de arte, especialmente no Liceu de Artes e Ofícios. Conclama que se realize o "7 de setembro estético", tendo como paradigma o Saci.

Embalado pela nota audaciosa, o referido jornal inaugura a coluna "Mitologia Brasílica" convidando os leitores a colaborar na descrição do ente fantástico, filho do inconsciente coletivo. O diário apresenta o seguinte questionário etnográfico: a) qual a concepção pessoal do Saci? Como a recebeu na infância? De quem a recebeu? Qual a forma atual da crendice na zona rural em que reside? c) que história e casos interessantes, "passados ou ouvidos", sabe a respeito do Saci? A iniciativa gerou correspondência dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, decorrente da "técnica de coleta de dados até então inédita entre os estudiosos do folclore". (AZEVEDO, Carmen Lúcia de. Um duende genuinamente nacional. In: __. Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia. São Paulo: ED. Senac/SP, 1997, p. 63-74.)

Concitando a opinião pública a participar do referido inquérito democrático, personificou-se a figura mágica do negrinho, assentando características sobre sua origem, estatura e diabruras. O Saci era fruto dos relatos de negros, alguns ex-escravos. Embora os cronistas coloniais não tenham mencionado sua existência, o mito surgira na região sul, entre fins do século XVIII e início do XIX. Negrinho como azeviche, magrinho, bi-perne, cabelo encarapinhado, carapuça vermelha, beiços e olhos vermelhos como pitanga, tinha unhas compridas. Alguns acrescentam barba, casco e rabo de bode. De baixa estatura, o diabinho ostentava um riso estridente, escondia ferramentas, azedava leite, chupava sangue dos cavalos, guinchava pela noite.

Aproveitando o sucesso da nova "estrela da imprensa paulistana", a Revista do Brasil, de outubro de 1917, divulga polcas, valsas e tangos que tematizam o ícone do folclore nacional. E anuncia concurso de artes plásticas, desafiando os artistas a imortalizarem na tela a mais importante figura do imaginário brasileiro. Concorreram obras de estrangeiros e artistas locais, como Celso Mendes, Joab de Castro e Anita Malfatti. A comissão julgadora do certame, ocorrido no dia 18 de outubro de 1919, era composta por Amadeu Amaral, Wasth Rodrigues e o próprio Monteiro Lobato. Roberto Cipicchia venceu com a obra "Saci na cavalhada", que segundo Lobato teve "interpretação romântica, muito sensata e harmoniosa".

Exultante com a boa repercussão da enquête no jornal e sucesso do concurso de artes plásticas, Lobato resolveu idealizar "Saci Pererê: resultado de um inquérito", publicado no início de 1918. A obra, verdadeiro marco zero da indústria editorial do Brasil, escrita e editada às expensas do "Demonólogo Amador", pseudônimo de Monteiro Lobato, foi seu livro de estréia. (CAVALHEIRO, Edgar. Vida e obra de Monteiro Lobato. In: __. Urupês. 14º ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1968, p. 16) Essa contribuição de Monteiro Lobato tornou-se fonte básica de pesquisa e inspirações. Luis da Câmara Cascudo, folclorista, ampliou as informações sobre a origem, abrangência e assimilação do Saci, na sua "Geografia dos mitos brasileiros" (1947). Ziraldo, cartunista, criou a "Turma do Pererê", série de quadrinhos que animou a juventude do início da década de 1960.

O Saci virou personagem das edições do Sítio do Picapau Amarelo (1921-1944), obra mais famosa de Lobato, prenhe de folclore. As crendices e superstições da Tia Anastácia, os causos e estórias de trancoso de Barnabé, a Cuca e suas maldições permeiam o universo da "maior saga da literatura infantil de todos os tempos... que tem o folclore enquanto fonte inesgotável de elementos vitais da maioria dos personagens". (VALE, Fernando Marques do. A obra infantil de Monteiro Lobato: inovações e repercussões. Lisboa: Portugalmundo, 1994, p. 39-45)

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