Na edição anterior fizemos menção a um movimento
que ficou conhecido como Grupo Sul, e dissemos também que o significado
deste grupo para a história das artes e da literatura mereceria um capítulo
à parte. Neste sentindo, trataremos hoje de Adolfo Boos Jr, autor que,
apesar de não ter sido um dos fundadores do grupo (participou dele quando
este já estava quase encerrando suas atividades), carrega na sua obra
o espírito daquele movimento, seja por seu caráter de experimentação,
seja na radicalidade da sua proposta artística. Para Boos, em entrevista
concedida ao Jornal Rascunho, o escritor não tem que descer
ao patamar do leitor, ele tem que trazer o leitor mais para perto da sua linguagem.
Ou seja, da mesma forma como os modernistas do Grupo Sul, na literatura de Boos
o que importa é o uso que se faz da linguagem associado àquilo
que se tem a dizer, o rigor estético e social do texto, sem concessões
aos leitores e ao mercado editorial.
Também os modernistas do Grupo Sul, na segunda metade da década
de 1940, queriam discutir e produzir uma arte comprometida com a ousadia estética
e de linguagem. Ainda que tardiamente (o movimento modernista brasileiro data
dos anos 20), intelectuais como Salim Miguel, Eglê Malheiros, Ody Fraga,
Antonio Paladino, Aníbal Nunes Pires entre outros, àquela época
jovens entusiastas, rebelaram-se contra o marasmo no debate artístico
florianopolitano (na literatura representado pelo realismo e pelo parnasianismo),
e organizaram-se no Círculo de Arte Moderna. O CAM foi responsável
por uma série de discussões e produções que oxigenaram
a atmosfera cultural de Florianópolis. Em 1948 lançou a Revista
Sul, que existiu por impressionantes 30 números e teve sua última
edição lançada em 1958 ano em que oficialmente se
encerraram as atividades do Grupo Sul. Além dessa revista, o CAM criou
um grupo de estudos teatrais, montando peças de Pirandello, Bernard Shaw,
Sartre, Ody Fraga, entre outros; organizou o primeiro clube de cinema de Santa
Catarina; produziu o primeiro longa-metragem catarinense, o filme O preço
da ilusão (1958), com direção de Nilton Nascimento;
contribuiu com a criação do Museu de Arte Contemporânea
de Florianópolis; e fundou a Edições Sul, que publicou
oito livros, dentre os quais está Teodora & Cia (1956,
contos), primeiro título de Adolfo Boos Jr.
Recentemente, Adolfo Boos Jr. concedeu longa entrevista ao Sarau Eletrônico,
e nesta relatou seu encontro com o Grupo Sul. Segundo Boos, corriam os anos
50, e numa certa madrugada, foi com um amigo a um bar de Florianópolis.
Lá encontrou um grupo de artistas reunidos, entre eles estava um baixinho,
Salim Miguel: De repente esse baixinho levanta, sobe na cadeira, trepa
em cima da mesa e recita uma coisa que eu nunca tinha ouvido em minha vida,
que achei maravilhosa e, mais tarde, vim a saber que era o Poema de sete
faces do Carlos Drummond de Andrade. Então tu vês, madrugada,
o sol querendo passar por cima do morro, a baía começando a clarear
e um cara trepado em cima de uma mesa recitando o Poema de sete faces!
Isto é inesquecível! E a conversa derivou para o ele gosta
de escrever. Acabei confessando confissões de bêbado!
que eu tinha alguma coisa escrita. Deste primeiro encontro
se evoca a carreira literária de Adolfo Boos Jr, cuja obra consolida-se
hoje como uma das mais densas, inventivas e viscerais da literatura brasileira.
Após a publicação de Teodora & Cia, em
1956, Boos atravessou um longo interregno sem publicar novos títulos.
Apenas 24 anos depois, em 1980, lançou seu segundo livro, As Famílias,
também de contos e que recebeu o Prêmio Virgílio Várzea.
Em 1986, os livros A Companheira Noturna (Contos) e Quadrilátero
(Romance) receberam, respectivamente, o terceiro e o segundo lugares na Bienal
Nestlé de Literatura Brasileira, feito inédito em um dos principais
prêmios literários do país. Depois vieram O Último
e Outros Dias (contos, 1988), Um Largo, Sete Memórias
(romance, 1997), Presenças de Pedro Cirilo (romance, 2001)
e Burabas (romance, 2005). Lista que deve aumentar em breve, já
que, na experiência dos seus 78 anos de idade, encontra-se em plena atividade
criativa.
Leitor e admirador do escritor William Faulkner, o estilo de Boos, tanto no
conto quanto no romance, é sempre denso, caracterizado pelo fluxo de
memória, a não-linearidade, os múltiplos focos narrativos
e o diálogo com a história. Em Quadrilátero,
por exemplo, o cenário é a imigração alemã
em Santa Catarina. Normalmente, os livros que tratam dessa imigração
olham para o imigrante na perspectiva do herói, do homérico. Já
em Quadrilátero temos a perspectiva humana, visceral e até
mesmo escatológica da imigração. Na entrevista ao Sarau
Eletrônico, Boos disse, pensei justamente num romance que fosse
o oposto. Deixar de ser uma epopéia para ser aquela colonização
a que meu avô se referia. seu avô nasceu em Brusque
(Guabiruba) e sua avó na Polônia.
Em Quadrilátero o projeto civilizatório do imigrante
europeu fica submetido à natureza inóspita e às necessidades
fisiológicas do corpo. Ao narrar a viagem de um grupo de alemães
que sobem o rio Itajaí-Açú em busca da colônia fictícia
de Karlsburg, o autor nos apresenta a personagens cansados e doentes, bestializados,
que só não desistem do empreendimento por vergonha de assumirem
sua derrota pessoal. Ficamos sabendo dos sacrifícios a que eles são
submetidos, seja pela natureza, seja pela desinteria, pela fome, pelo cansaço
e pelo medo. São a vergonha e o medo, apenas, que diferenciam os personagens
dos demais animais. E a colônia retratada neste romance, em nada lembra
as alamedas margeadas por casinhas em enxaimel. Em Karlsburg as casas são
pobres, sem conforto, de chão batido, cujas dependências são
divididas entre humanos e animais. São a miséria e a barbárie
revestidas pelo verniz da civilização.
Há muito para se dizer a respeito da literatura de Adolfo Boos Jr, cabe-nos
entretanto encerrar. Mas não sem antes lançar o convite para que
a obra deste herdeiro do Grupo Sul seja lida e discutida com a atenção
que merece.