Na edição passada, ao tratarmos do escritor Adolfo Boos Júnior,
acabamos citando o romance Quadrilátero, publicado em 1986.
Quadrilátero, assim como muitos romances da literatura catarinense,
aborda o tema da imigração germânica, porém sob um
viés diferente, já que ao invés de construir uma epopéia
mítica, problematiza o processo civilizatório empreendido pela
migração germânica, humanizado-o e denunciando suas mazelas.
Boos, nesse seu romance, inspirou-se nas memórias do seu avô, cuja
família migrara para Brusque, entretanto, queremos aqui fazer dialogar
a migração germânica da narrativa de Quadrilátero
com outros três romances, escritos em tempos diferentes, mas que têm
em comum esse questionamento a um modelo de colonização e germanismo
atribuído ao Vale do Itajaí e vendido pela indústria do
turismo. Em Blumenau, especificamente, o poder público procurou construir,
a partir de 1967, uma cidade performática, um simulacro desenvolvido
para o consumo turístico onde segundo Maria Bernardete Ramos Flores
em seu livro Oktoberfest: turismo, festa e cultura na estação
do chopp tudo deveria convergir para uma única voz,
plasmada numa só imagem, cantada numa só língua: a germânica.
Assim, colocaremos aqui a literatura à serviço da desconstrução
disso que poderiamos chamar de falso enxaimel, sem entretanto pressupor
um verdadeiro enxaimel. O falso reside, justamente, na ideia de que possa haver
um verdadeiro.
No romance de Boos percebemos o individualismo dos colonos germânicos,
que apenas se unem quando essa união pode representar algum benefício
privado. Não há altruísmo nos colonos de Quadrilátero.
Vejamos o que nos diz o fragmento selecionado:
Era cada um para o seu lado, sonhando a sua maneira e alimentando o
sonho com a inveja, juntos apenas quando a necessidade obrigava alguém
a pedir emprestado; em comum, somente o desencanto e a decadência, mas
vistos apenas nos outros e raramente admitidos em si próprio (...). Não,
não era uma família, pelo menos dentro da noção
de família, união e coisas assim: porém, sob outro aspecto,
era quase uma família, desunida, irmanada apenas na miséria e
na revolta e muito pior na maldição de não
se entregar, de não desistir; quem ajudava já estava pensando
em pedir, cada um perseguindo o sonho a sua moda, vendo no vizinho tudo aquilo
que não queria ser e contudo apresentando a mesma imagem.
(Quadrilátero, 1986, p. 389-390)
Neste mesmo sentido encontramos Faina de Jurema, romance experimental
publicado pelo escritor Godofredo de Oliveira Neto em 1981. Godofredo nasceu
em Blumenau, entretanto radicou-se no Rio de Janeiro. Ainda assim, Blumenau
e Santa Catarina são cenários recorrentes em sua obra. No fragmento
abaixo, novamente a constatação do individualismo germânico:
A civilização dos seus antepassados, porém, junto
com as suas qualidades, legou-lhes seus imensos defeitos. O espírito
de comunidade funcionava unicamente nas relações entre o grupo
e outro grupo de raça distinta. No interior do círculo o individualismo
preponderava. Para se elevar, pisar sobre os ombros era a lei. A vitória
assim obtida era agraciada com prêmios materiais. Isto era o mais importante.
A noção de moeda e de seu poder colateral estava aqui tão
às soltas como no velho mundo quando de lá partiram (Faina
de Jurema, 1981, p. 47)
Nosso terceiro fragmento pertence ao romance Enquanto isso em Dom Casmurro,
do blumenauense José Endoença Martins. Publicado em 1993, Enquanto
isso... foi escrito logo após o governo Collor, momento em que
as indústrias têxteis de Blumenau atravessaram grave crise e demitiram
milhares de trabalhadores. Assim, encontramos uma linguagem mais direta, contundente,
que denuncia o simulacro da germanidade e todo peso da austeridade que os descendentes
dos colonos procuram imprimir a si:
Esta cidade também já foi alemã, italiana. Com alemães
e italianos as enchentes anuais perderam leveza e novidade. Ganharam angústia.
O enxaimel foi despejado da riqueza de detalhes estéticos que abrigava
e virou simulacro empobrecido da nostalgia. A Oktoberfest adquiriu o teor escuro
da revolta desesperada, da dor. Uma dor de cerveja e mijo azedos. Alegrias e
festas exauriram-se. A abundância econômica despencou. (Enquanto
isso em Dom Casmurro, 1993, p. 10)
Por fim, temos Gregory Haertel e seu romance Aguardo, de 2008.
Psiquiatra, Gregory é também autor de teatro. Aguardo é
o nome fictício da cidade em que se desenrola a narrativa. No fragmento
abaixo encontramos a desconstrução dessa arquitetura social que
chamamos de enxaimel e a denúncia do homicídio identitário
e cultural empreendido pela construção da hegemonia germânica:
Encravada no meio de um vale, Aguardo é cortada em toda a sua
extensão por um rio que raramente acorda. Até esta enchente de
1980 o rio despertara duas outras vezes. Daqueles despertares lê-se nos
livros. Moram em Aguardo os que ali nasceram e os que para cá fugiram.
Existiam índios e negros. Os primeiros foram exterminados juntamente
com as capivaras, à bala. Os negros desapareceram. Não existem
bancos em Aguardo. O dinheiro é guardado sob os colchões em sacolas
de supermercado. As casas de Aguardo são limpas. As panelas de Aguardo
são ariadas dia sim dia não e usadas uma vez por mês. As
crianças de Aguardo são gordas (qualquer sinal de magreza é
interpretado como desnutrição) e as suas notas são altas
(o boletim vai de oito a dez. Notas abaixo destas são motivo para reprimendas
públicas e conselhos aos envergonhados pais). Em Aguardo evita-se comentários
sobre suicídios e deficientes mentais. Os retardados, em Aguardo, são
como o tamanho dos genitais: só sabem sobre eles quem os tem. (Aguardo,
2008, p. 31).
Há muito ainda por se dizer a respeito da relação entre
a literatura e a construção/desconstrução de identidades,
mas nosso espaço é limitado. Permanecem, entretanto, os fragmentos
acima e o convite para a leitura desses livros que muito dizem sobre essa sociedade
cuja verdade se espelha no enxaimel, e que por se construir enquanto verdade,
necessita ser questionada e desconstruída.