A Garganta da Serpente
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Do Património Linguístico

(Violeta Teixeira)

Num país, cuja ministra das Finanças prossegue, castradora, a alienação, ao desbarato, de património do Estado, receio que venha àquela mente, obcecada pelo défice, a ideia de alienar o mais precioso património de qualquer povo, a saber, a língua, o corpo que sustenta a identidade pátria, corpo, esse, quotidianamente mutilado, pelos sujeitos falantes e escreventes. No primeiro caso, incluo, chocada, muitíssimos políticos, no segundo, os produtores prolíferos da literatura "light".

Que fazer para salvaguardar a pluricontinental pátria linguística?

Bem! Quanto a mim, se pudesse, organizava um exército, cujos combatentes tivessem sem competência linguística, e incitava-os a uma revolução político-cultural. Com que armas? As palavras. Que outras poderiam ser?! Não têm dois gumes?

Na impossibilidade de o fazer, e sendo a minha mátria o universo das palavras, tento, neste momento do escrito, descobrir o livro da minha vida, se, porventura, algum o é. Prossigo, porém, porque, enquanto me empenho naquele achamento, exorcizo, de uma certa maneira, o medo da obsessiva castradora Ferreira Leite. Diria melhor, do medo do Governo inculto. Tão inculto, que não tem uma política para a língua portuguesa, como, por exemplo, a França e o Reino Unido. Sim! Sou uma utópica guardadora do cosmos linguístico-literário. Mas, quem pode viver sem utopias? A seiva, o pólen do devir.

Eis por que a minha exorcizante busca será, com certeza, condenada ao fracasso dado que sei tão-só que os livros são os pilares que sustentam a minha vida. Todos os lidos e os que nunca lerei. São-no desde que, ao juntar, combinar, recombinar fonemas, comecei a ver florescer palavras. E, acasalando estas, me maravilhei com o desabrochar de frases plenas de seivas significativas, numa espécie de magia inefável, para a minha mente infantil. E, depois, o deslumbramento, ao olhar para as primeiras folhas virgens, tornadas, de súbito, multicolores, idênticas às que via nas páginas dos livros, muitos deles lidos, clandestinamente, na biblioteca do meu pai, onde corriam águas interditas à minha sede de leitura. Águas apetitosas para o meu gosto rebelde.

Além de leitora voraz de livros, fossem ou não frutos proibidos, comecei desde muito cedo, a tecer versos, versos semelhantes aos que decorava para, ao dizê-los, saborear a sua doce eufonia, embora não tivesse ainda adquirido a competência de os descascar semanticamente. Como podia a garota de doze ou treze anos compreender o sentido de muitos versos dos sonetos de Antero de Quental ou de "Os Lusíadas"?

Leitora voraz continuei a sê-lo durante toda a vida, como, igualmente, tecedeira de poemas. Estes, não sei porquê, no canto mais íntimo do meu casulo, onde não permitia que se aproximasse fosse qual fosse o bicho cogitante.

Apesar de tudo quanto este escrito tem vindo a me desnudar, continuo a não vislumbrar o achamento do livro da minha vida, de modo a exorcizar, repito, o medo da alienação da língua mátria.

Em todo o caso, creio que, se erguer uma montanha com todos os livros que, já lidos, me olham do alto de prateleiras, receosos de serem excluídos da busca, colocarei no cimo, folha a folha acariciada pelo minha brisa afectiva, o " Livro do Desassossego", de Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros, no escritório do patrão Vasques, sito na Rua dos Douradores, escritor, esse, que é, afinal, de entre todos os Pessoa, o Fernando Pessoa ele-mesmo, mas mutilado.

Enfim! A poetisa aracnídea, que me sou, não sabe se exorcizou, na viagem da escrita, o dito medo. Será este o livro da minha vida? O livro do sossego desassossegado do meu casulo? Talvez no agora, o que, neste contexto, é algo de despiciendo.

Lamento. Não pense o leitor que eu vou " palavrar" sobre ele. Direi apenas que as palavras são para este semi-heterónimo de Pessoa " corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas." O leitor não sente o desejo de os possuir, ao contrário do ajudante de guarda-livros, para quem a "(sua) pátria é a língua portuguesa", embora confesse o total desinteresse pela sensualidade real?

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