(Orientador: Gerardo Andrés Godoy Fajardo - Universidade Estadual da Paraíba)
Neste artigo pretendemos mostrar três lendas indígenas, onde figuram,
a ascensão e queda do matriarcado na humanidade, fazendo um paralelo
com textos bíblicos, com o intuito de mostrar, que esses escondem diversos
momentos de nossa evolução histórica que a literatura indígena
nos pode revelar, fazendo referência a um tempo em que as mulheres dominavam
a coleta, a família, as relações sociais. Um tempo de fartura,
gozo e paz, pois, sendo, num passado distante a base alimentar da humanidade
unicamente a coleta, foi desnecessário o uso da força física.
A primeira lenda, chamada "Como surgiu a noite" trata da criação
da noite, onde, a mulher, matriarcal, dominadora de sua própria natureza
divide o dia da noite, cria aves e animais rasteiros, tal qual Deus no livro
Gênesis, visto que tudo que se relaciona à fertilidade e à
possibilidade de desenvolvimento humano na terra era ligado ao gênero
feminino. Na segunda lenda, chamada, "Os dois papagaios", trataremos
da estória de dois papagaios criados por sol e lua. Essa segunda lenda
trata do momento histórico em que as mulheres passaram a assumir atividades
domésticas, embora, os homens ainda cozinhassem. Isso devido ao fato
de ainda não terem consciência de sua função biológica
na reprodução humana, por isso atribuíam a gravidez das
mulheres aos deuses. Assim os dois papagaios transformam-se em duas moças
e começam a preparar refeições para os jovens sol e lua.
A terceira e última narra a estória de Ceuci, onde a filha de
um cacique deixou-se tentar por umas frutas sedosas de cucura, que eram vedadas
ao desejo das impúberes. O sumo, escorrendo-lhe pelo seio abaixo, despertou
a fecundação. Essa gravidez provocou sua expulsão da aldeia,
por isso deu solitária à luz um menino muito especial chamado
Jurupari que em Tupi quer dizer Boca Fechada. Ele trouxe o patriarcado à
Terra e depois de sua vinda nunca mais as mulheres, com algumas exceções,
exerceram domínio sobre os homens. É uma espécie de Moisés
indígena, daí a importância do paralelo da literatura indígena
com textos bíblicos. Sobre isso nosso objetivo é comparar as lendas
indígenas aos textos bíblicos e mostrar que neles estão
escondidos diversos valores históricos e culturais que a mitologia indígena
nos revela. Nessa mitologia encontraremos mulheres que num passado muito remoto
foram admiradas por sua capacidade de fecundação, ao passo que
nos textos bíblicos o mundo começa com, a estória da Eva
pecadora, a que comeu do fruto proibido. E por fim veremos como a lenda de Ceuci
se encaixa com perfeição na da Eva bíblica, marcando a
queda do matriarcado e iniciando essa nova fase da humanidade chamada patriarcado.
Palavras chave: literatura indígena; textos bíblicos; matriarcado;
Ceuci; Jurupari
Antes de iniciar de fato este artigo gostaria de lembrar, que diversas teorias
enfatizam que houve um tempo em que as mulheres dominavam a terra, dominavam
a coleta, a família, as relações sociais. Segundo estas,
foram possíveis tempos de fartura, gozo e paz. Esse tempo corresponde
a três quartos de nossa existência na terra e se chamou matriarcado.
De acordo com Marcireau (1974, p. 157) "Os homens começaram por
viver numa comunidade sexual sem entraves e depois a humanidade viveu a fase
do matriarcado. A cultura primitiva é feminina; a cultura masculina só
veio mais tarde".
Ainda nos relata um livro chamado O martela das Feiticeiras que "nessas
sociedades não havia a necessidade da força física para
a sobrevivência e nelas as mulheres possuíam um lugar central",
(FRAMER; SPRENGER, 2002, P. 5)
Para Leonardo Boff,
Num estágio já avançado do processo civilizatório, as mulheres compareciam como as principais produtoras de cultura. Há pelo menos trinta mil anos, dependendo das regiões, florescia em todos os continentes o matriarcado (...) Era o tempo das grandes Deusas, que inspiravam organizações sociais marcadas pela cooperação, pela reverência à vida e a seus mistérios. As mulheres detinham a hegemonia política; eram elas que mediavam e solucionavam os conflitos e organizavam as sociedades. Eram responsáveis pelo bem comum do clã na vida e na morte.
Assim também, em muitas sociedades indígenas a hereditariedade
acontece baseada na linhagem ou no clã materno. Como nos diz Melatti;
(1994, p. 64-65). "Entre os índios Tenetehára, os produtos
da roça, caça, o peixe, depois de trazidos para a casa, passam
a pertencer à mulher. A propriedade da roça entre os índios
Krahó, é difícil de ser definida (...) Em caso de divórcio,
entretanto, os produtos da roça passam a pertencer apenas à mulher.
Nos dirá ainda Mellati: (1994, p. 110) "Já entre os Borôro,
a chefia é privilégio de dois clãs, um chamado Baaddageba
Xobuguiu e o outro, Baaddageba Xebeguiu, ambos pertencentes à metade
Exerae. Entre os Borôro a chefia não pode passar de pai para filho.
Pois sendo a descendência entre eles matrilinear, o filho nunca pertence
ao clã do pai mas sim ao da mãe".
Ainda devemos considerar o que nos relata o antropólogo Darcy Ribeiro
ao falar sobre a couvado, entre os índios kaapor. Consiste em um período
de resguardo praticado pelo homem quando a mulher dar à luz, "No
dia que cheguei nasceu a criança, da aldeia de Koatá cujos pais
estão de resguardo. Quero ver até quando o homem ficará
recluso com a mulher (...) o homem deitado na rede, falando baixo, sem levantar-se
para nada, parece que nem fuma, porque pôs de lado um cigarro que lhe
dei". (RIBEIRO, 1999, p. 189).
Isso nos remete a um tempo em que os homens começaram a invejar as mulheres
por sua capacidade reprodutiva. "Essa primitiva 'inveja do útero
dos homens é a antepassada da moderna 'inveja do pênis que sentem
as mulheres nas culturas patriarcais mais recentes". (FRAMER; SPRENGER
2002, p. 5)
Essas citações nos mostram claramente que embora não tenhamos
certeza absoluta da existência de um período matriarcal não
podemos negar suas evidências, principalmente em se tratando de povos
indígenas. Dentre as principais características desses indícios
podemos destacar.
Asseguramos, porém, que a aceitação de que o patriarcado
sucedeu o matriarcado pertence cientifica e historicamente à teoria da
evolução do século XIX. Segundo tal teoria, podemos perceber
que num passado distante, a base alimentar da humanidade era unicamente a coleta.
Daí tornou-se desnecessária a força física, transformando
a mulher num ser sagrado, devido a sua capacidade de fertilidade. Por todos
os cantos da terra a mulher era adorada e vista como um ser divino.
Assim:
Os antropólogos encontraram muitas estatuetas de Vênus, e sepulturas Neanderthal, remontando a muitos milênios, com seus mortos enterrados em posição fetal, seus ossos pintados com ocre vermelha. Simbolicamente, os defuntos tinham reentrado no ventre da mãe terra. O vermelho simbolizava o sangue da mãe, e voltaram simbolicamente para o seu encontro. Completando, o que nossos ancestrais da idade glacial sabiam ser o grande ciclo da vida, de um ventre, de uma simples mãe para a Grande Mãe ou Deusa Mãe.
O que não significa ter havido um tempo em que a mulher esteve socialmente muito acima dos homens, mas, baseados em vestígios como esses não podemos negar a grande importância social que a atribuíam os homens às mulheres nas sociedades antigas, Esse tempo, como todos os outros que o sucederam, ou que o antecederam provavelmente está hoje refletido na literatura e nesse artigo pretendemos mostrar uma possível ascensão e queda do matriarcado segundo a literatura indígena, visto que:
A velha religião com uma visão da vida matriarcal era uma Religião de êxtase. A arqueologia nos comprova com desenhos e figuras humanas com olhos arregalados de assombro, seres humanos dançando com animais selvagens, alçando vôo com pássaros, dividindo domínios aquáticos com os peixes e as serpentes. Estas práticas religiosas e ritos xamãnicos, sobrevivem até os dias de hoje, entre povos aborígines como as tribos indígenas.
Várias são as deusas que dominam a literatura dos povos indígenas.
A Iara, senhora das águas doces, que arrebata de paixões os navegantes
desprevenidos, levando-os ao fundo dos rios, Mani, que sendo muito branca deu
origem à mandioca, principal fonte alimentar dos indígenas, os
próprios gênios centrais adorados pelos tupis, sol e lua, onde
seria sol "Guaracy, c, Guará-cy, a mãe dos viventes"
Sampaio (1987, p. 237) e lua "Jacy, corr, Ya-cy, a mãe dos frutos"
(SAMPAIO, 1987, p.256).
Notemos que tudo que se relaciona à fertilidade e à possibilidade
de desenvolvimento humano na terra era na literatura indígena ligado
ao gênero feminino. A prova disso é que em muitas sociedades indígenas
a mulher ainda hoje é a principal responsável pelo plantio como
nos atesta Malatti, (1994, p. 62). "As atividades coletoras em muitas tribos
cabem às mulheres, como por exemplo, entre os Xavantes e os Timbiras".
Às mulheres sempre foi atribuído o dom da fertilidade em muitas
sociedades indígenas. Veremos isso em três lendas que passamos
a analisar nesse instante. A primeira conta como surgiu a noite, a segunda a
lenda dos dois papagaios marca um tempo em que as mulheres começaram
a assumir atividades domésticas e a terceira a Ceuci e Jurupari.
"Chamou (o índio) a mulher:
-Vamos dormir, estou com sono!
A filha do Cobra-Grande respondeu.
-Ainda não há noite, não se pode dormir.
O marido insistiu:
-Não faz mal, eu quero dormir assim mesmo!
-Não pode- Disse a mulher- só quando a noite chegar.
-Você sabe que a noite não existe
(...)
-Existe sim.- Afirmou ela.- Meu pai tem a noite. Eu não posso dormir com a claridade do dia. Se você quiser que eu durma também, mande buscar a noite. Está com meu pai."
Moraes, (1979, p. 3)
Notemos o grande domínio que tem a mulher sobre sua casa. O marido não
dorme com ela, ou seja, não a possui, enquanto esta não desejar.
Só ela sabia o segredo da noite, o segredo de seus encantos, guardados
há anos por seu pai. Seu marido terá de esperar por sua boa vontade,
até que resolva mostrar seus "segredos mais noturnos".
Na seqüência da estória seu esposo pede a três servos
que vão buscar a noite com o Cobra-Grande. No caminho de volta, movidos
pela curiosidade, furam o coco onde habitava a noite, liberando-a e deixando
o mundo todo escuro. Moraes (1979).
Notemos ainda que essa mesma curiosidade, desmedida e inconseqüente é
que vai levar Eva, séculos mais tarde, a comer o fruto proibido, ou seja,
o estigma da curiosidade e da insensatez migrou do homem para a mulher.
Mas na nossa lenda, num determinado instante a própria noite é
comparada a uma mulher sagrada, pois: "A noite era pajé, isto é,
feiticeira. Fez com que tudo que estava espalhado pela floresta se transformasse
em outra coisa". Moraes, (1979, p. 6).
Prosseguindo a narrativa, vemos um controle ainda maior da mulher sobre seu
meio natural."Quando a Estrela d'alva brilhou no céu a filha do
Cobra-Grande disse ao marido: "Já vem rompendo a madrugada; vou
dividir o dia da noite". (MORAES,1979, p. 7)
Interessante é notarmos que no livro Gênesis, Antigo Testamento
é o Deus homem, o Deus masculino, que divide o dia da noite. Assim temos:
"Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. Deus chamou à
luz DIA e às trevas NOITE", Gênesis, 1: 4-5. Na nossa lenda
isso é feito por uma mulher. Essa mesma mulher, não só
separa o dia da noite, como também, cria todos os animais da terra, em
oposição à idéia patriarcal do Deus-homem. Vejamos:
"enrolou um fio de cabelo bem enroladinho e falou:
-Tu serás Cujubi! Foi assim que ela fez o Cujubi (...)
A mulher enrolou outro fio de cabelo, pôs uma pitada de cinza e falou: Inhambu te chamas (...)
Inhambu saiu correndo para o campo (MORAES, (1979, p. 7)
No gênesis, livro cujo patriarcado já está bastante solidificado
está escrito que "Deus criou os monstros marinhos e toda a multidão
de seres vivos que enchem as águas, segundo as sua espécie e todas
as aves, segundo a sua espécie" Gênesis, 1: 21.
Mas ao contrário do gênesis, vemos em nossa lenda, a mulher muito
segura de si. Sobre isso, "Hoje há consenso entre os antropólogos
de que os primeiros humanos a descobrir os ciclos da natureza foram as mulheres,
porque podiam compará-los com o ciclo do próprio corpo".
FRAMER; SPRENGER (2002,p. 7). Cheia de mistérios, ela domina toda a natureza
a sua volta, ao passo que o homem, é apenas um ser curioso, cheio de
dúvidas e erros, num tempo em que viam espantados, surgir de dentro das
mulheres um outro ser vivo, já que "a mulher era considerada um
ser sagrado. Que possuía o privilégio dado pelos deuses de reproduzir
a espécie". FRAMER; SPRENGER (2002, p. 5)
Agora passemos à lenda dos dois papagaios.
Essa lenda marca um tempo em que os homens cozinhavam, mesmo já desenvolvendo atividades de caça. Foi num dado momento que as mulheres começaram a desenvolver atividades domésticas. Vejamos um trecho da lenda:
"O Sol saiu para caçar. Andando no mato, encontrou um ninho com dois papagaios, tão pequenos que mal podiam voar. (...) Lua naquele tempo era um jovem, os dois amigos davam de comer aos papagaios e todos os dias entretinham-se com eles.
O tempo passou, os papagaios cresceram e aprenderam a falar que nem gente. Certo dia, um deles disse ao outro:
-Vivo morrendo de pena de nosso pai, coitado! Volta cansado de suas caçadas e antes de poder descansar tem que preparar a comida. Vamos ajudá-lo; assim quando voltar, ele poderá descansar. No mesmo instante, os dois papagaios transformaram-se em duas moças.
Começaram a preparar a refeição e, enquanto uma trabalhava a outra vigiava a entrada pra no caso de alguém chegar, prevenir com tempo a amiga e de novo virar papagaio."
(MORAES, 1979, p. 12-13).
Já de início, percebe-se que sol e lua que antes designavam mãe
do dia e mãe dos frutos, agora, passam a representar dois jovens. Vemos
então que a mulher começa a assumir uma postura doméstica.
Isso se explica pelo fato de os homens já dominarem as técnicas
de caça e não dependerem mais da mulher pra sua sobrevivência.
"Assim, A mulher fica, então, reduzida ao âmbito doméstico.
Perde qualquer capacidade de decisão no domínio público,
que fica inteiramente reservado ao homem", (FRAMER;SPRENGER, 2002, p. 7)
O mais interessante é notar que nesse ponto da lenda ela nos lembra que
houve um tempo em que os homens tinham de cozinhar. "-Vivo morrendo de
pena de nosso pai, coitado! Volta cansado de suas caçadas e antes de
poder descansar tem que preparar a comida. Vamos ajudá-lo; assim quando
voltar, ele poderá descansar" (MORAES, 1979, p. 12).
A mulher sente pena do homem. É um período transitório.
Um período em que o homem começa a dominar a tecnologia, começa
a caçar, construir casas. Mas apesar disso, ainda mantinha antigos costumes,
provenientes do matriarcado. Isso se explica porque "O homem ainda não
conhece com precisão a sua função reprodutora e crê
que a mulher fica grávida dos deuses. Por isso, ela ainda conserva o
poder de decisão" (FRAMER; SPRENGER, 2002, p. 6). À medida
que o homem foi desenvolvendo as técnicas de caça e que os gêneros
de coleta foram escasseando é que os homens começaram a superar
a mulher pela força. Isso vemos no desenrolar da estória.
"Sol e o companheiro fizeram de conta que iam caçar. Levaram arcos e flexas (sic), mas deram apenas uma volta pelos fundos e esconderam-se entre as árvores (...). no mesmo instante sol entrou pela porta da frente e lua pela porta dos fundos. Entraram ao mesmo tempo, nisso, deram com as duas moças que , ao se verem descobertas, baixaram a cabeça e sentaram caladinhas (...)- Então, são vocês que todos os dias preparam nossa comida? De onde vieram?
- Nós estávamos com pena de vocês trabalhando tanto o dia inteiro, e ainda por cima, quando voltavam para casa, tinham de fazer o jantar (...).
- Agora vocês ficarão sempre assim. Exclamou sol, brilhando de satisfação.
(MORAES, 1979, p. 14-16).
É nesse instante que o homem começa a assumir uma postura dominante
sobre a mulher. E isso, a lenda deixa bem claro quando diz "baixaram a
cabeça e sentaram caladinhas" Moraes (1979,p. 15).
As mulheres, foram então, reduzidas a meros objetos de desejo e servas
domésticas, cuja função, era entreter seus maridos nas
horas de cansaço.
Daí por diante, a imagem da mulher, sobretudo a mulher indígena,
passará por transformações chocantes, assim:
Quando Ives d'Evreux estabeleceu as classes de idade, ressalta o aspectos físicos das velhas e suas funções no preparo do cauim e no repasto canibal, tarefas pouco edificantes na ótica européia. O religioso francês descreve as anciãs como sujas, porcas, descuidadas da higiene, enrugadas, de seios caído e com um desejo incontrolável de comer a carne do inimigo.
(PRIORE, 2007, p. 36-37).
Esse mesmo livro, no entanto, nos explica o motivo de tanta degeneração
às mulheres anciãs indígenas por parte dos europeus, sobretudo
os missionários que muitas vezes
as pintavam como figuras demoníacas, pois, "Em suma, elas simbolizavam
o afastamento das comunidades ameríndias da cristandade e, sobretudo
a inviabilidade de se prosseguir com os trabalhos de catequese e colonização"
Priore (2007, p. 43)
Essas mulheres eram a figura viva de uma possível era matriarcal. Deviam
representar à sociedade européia, machista e patriarcal, um imenso
perigo. O perigo que as mulheres soubessem que um dia dominaram a natureza com
mais eficácia que os homens. O perigo de se quebrar a lei patriarcal
de Moisés, a lei do DEUS masculino. Assim, a mulher, devia estar sempre,
rigidamente controlada, pois, "em algum momento, o homem começa
a dominar sua função biológica reprodutora, e, podendo
controlá-la, pode também controlar a sexualidade feminina"
(FRAMER; SPRENGER, 2002, P. 7).
Segundo Engels "Com o surgimento do costume do cercamento e da delimitação
das terras, adotadas pelos homens vitoriosos em combates e guerras, os machos
passaram, disse Engels, a exigir fidelidade sexual das mulheres porque não
aceitavam ter de legar os seus bens, obtidos com sangue e pela exploração
do próximo, a um descendente que não fosse seu filho legítimo,
gente do seu próprio sangue. Foi então que o adultério
feminino passou a ser considerado grave infração, senão
crime capital. As exigência do patrimônio enfeixado nas mãos
dos homens teriam então suprimido as liberdades femininas, tornando as
mulheres cativas, presas a um casamento monogâmico".
A situação sexual da mulher européia, mesmo as que atravessaram
o mar até o Brasil, era tão caótica que segundo Priore;
(2007, p, 58-59)
Já não se fabricavam cintos de castidade para sossego do marido ausente, mas os recolhimentos bem cumpriam a função de zelar pelo comportamento da mulher longe do marido. (...) Podia dar-se o caso mais brutal, de o marido livrar-se da presença da esposa com esse expediente. Em Salvador, por exemplo, graças a um inquérito, descobriu-se certa mulher confinada no convento de Nossa Senhora DA Lapa havia vinte anos.
Não é de admirar que, encontrando aqui na América, uma
extensão infinda de mulheres desnudas, esses europeus cristãos
e patriarcais, entrassem em "pânico". Tanto que no
século XVI "Nóbrega pedia esmola de roupas 'ao menos uma
camisa a cada mulher' (...) 'não parece justo estarem nuas entre os cristãos
na igreja, e quando os ensinamos'" Carneiro (1986, p. 80). Esses homens
tinham "pânico" da nudez indígena, mais que tudo, tinham
medo do domínio feminino e o que isso podia representar. Foi isso, aliás,
que deu origem às sereias, sempre prontas a dominar o homem com seu meloso
canto e às Amazonas ou Icamiabas, como eram conhecidas aqui na América.
A própria igreja foi inegavelmente a principal contribuinte para a supressão
feminina. No entanto, não é de admirar que esses europeus reprovassem
tanto a situação social e a liberdade nua da mulher indígena.
Desde o princípio, os textos bíblicos se definem como sendo quase
sempre patriarcais. A tal ponto que no livro de Levítico vemos:
Fala aos filhos de Israel dizendo: se uma mulher conceber e tiver um varão, será imunda sete dias, assim como nos dias de separação de sua enfermidade (menstruação) será
imunda(...), mas se tiver uma fêmea, será imunda duas semanas (...) depois, ficará sessenta e seis dias no sangue da sua purificação. Levítico 12: 2-4
Então, a mulher passa de Grande mãe da fertilidade a símbolo
maior do pecado. A lenda de Ceuci e Jurupari é o grande ícone
dessa transição.
Vejamos a lenda:
"A filha de Tupã e de Iuacaci (Mãe do céu), baixou do sol (...) e andou vagando no espaço. Aproveitando-se do sono de uma menina caraíba (pajé), nela incorporou-se (...). dormindo, a menina (...) recebera o espírito divino, tornando-se assim a cunhã (mulher) mais poranga (bela) e ladina da taba (aldeia).
Seus encantos aumentavam dia a dia, adquirindo o poder de amainar as feras e acalmar os ventos"
(ORICO, 1975, p. 158).
Até esse instante, temos claramente ainda viva a imagem do matriarcado.
Embora já exista a figura de Tupã (Deus), existe também
a seu lado Iuacaci (a Mãe do céu). A menina da qual o corpo é
apossado é uma pajé, que sabemos ser esse o principal líder
espiritual indígena.
Ceuci é até aí uma figura sagrada. Com sua beleza descomunal,
acalma as feras e os ventos. É o domínio da mulher sobre a natureza.
Mas tal qual a Eva bíblica, uma mudança radical em sua vida está
pra acontecer assim que ela fizer uso indevido de um certo fruto. Prossigamos
a estória.
Certo dia, passeando pelo mato, uma lua antes de sua cariamã (a festa da puberdade das donzelas) deixou-se tentar por umas frutas sedosas de cucura, que eram vedadas ao desejo das impúberes. O sumo, escorrendo-lhe pelo seio abaixo, despertou a fecundação. Os caraíbas ficaram revoltados, embora ela continuasse a garantir que era virgem" (ORICO, 1975, p. 158).
Veja que antes a mulher era sagrada por sua fertilidade, agora essa fertilidade
era perigosa, devia ser controlada. Apesar disso, em algumas tribos indígenas
esses resquícios de matriarcado ainda são muito fortes e o homem
ainda cede aos caprichos de suas esposas como vemos em: Ribeiro (1999, p. 164)
"O Serapião que não tem filhos teria também relações,
mas como sua mulher não deseja ainda engravidar e parir por ser nova
e não querer ficar presa à criança, ela o retira de si
antes da ejaculação".
Não seria esse coito interrompido o sumo da cucura? Provável é,
pois sabemos que mesmo interrompido o coito, momentos antes da ejaculação
o órgão masculino expele um
líquido lubrificante, esse líquido por si, já contém
milhões de espermatozóides. Além disso, é costume
do homem também, concluir seu coito interrompido com a aspersão
do
esperma sobre o corpo da mulher, o que ocasionaria facilmente a gravidez de
uma virgem.
Na seqüência, Ceuci é banida da tribo, apesar dos maracás
comprovarem que ela é mesmo virgem. Exilada ela tem seu filho na serra
do Camuké. Seu nome era Jurupari e ele veio com a missão de trazer
á terra o patriarcado. Assim:
"Ele ditava a lei e revelava a agricultura, espalhando suas lições
da montanha do Camuké. Orico (1975, p. 159). De alguma forma, a supremacia
masculina chegou às aldeias indígenas. Jurupari, o filho de Tupã,
veio tomar o controle do mundo das mulheres e dar aos homens. Daí nos
dirá Cardim, (1978, p. 110)
(...) Quando vão fora a mulher vai de trás e o marido diante para que se acontecer alguma cilada não caia a mulher nela (...), porém, em terra segura ou dentro da povoação sempre a mulher vai diante o marido de trás, porque são ciosos e querem sempre ver a mulher.
E concluindo o trágico destino de nossa bela Ceuci, percebemos nela a figura da Eva bíblica. Sempre tentada, inconseqüente. Uma criatura cheia de erros, incontrolável, que não consegue segredar um só instante os mistérios da vida, ao contrário dos homens, sempre fortes e belicosos.
Aconteceu, porém, que Anhangá (diabo) empregando as suas artes tortuosas, conseguiu induzir Ceuci a transpor em terreno vedado sistematicamente à curiosidade feminina.
Violando o recinto privativo, a mãe de Jurupari, condenava-se ao sacrifício certo (...)
- Morreste mãe porque desobedeceste a lei de Tupã: esta lei que eu ensino.
Orico, (1975, p. 159).
Aí está o ponto-chave da lenda de Ceuci. É isso que a
faz tão especial.
Foi a curiosidade que fez os três rapazes da primeira lenda abrirem o
coco a trazer a noite a tona. Essa mesma curiosidade fez com que sol e lua descobrissem
que os dois papagaios eram na verdade duas moças. Mas terminado o matriarcado,
ou parte dele, é a mulher que assume a posição da curiosa
inconseqüente.
Ceuci é num primeiro instante a virgem sagrada, porém, na mesma
lenda, converte-se radicalmente na Eva pecadora, aquela que comeu o fruto proibido,
que foi mordida pelo demônio da curiosidade.
E que fruto proibido é esse? Que curiosidade é essa? O conhecimento.
Quando foi instituído o patriarcado, o conhecimento converteu-se em fruto
proibido. Principalmente às mulheres. "Então disse o senhor
Deus: eis que o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal:
ora, pois, pra que ele não estenda a sua mão, e tome também
da árvore da vida, e coma, e viva eternamente". Gênesis, 3:
22
O mais interessante é que significa "Jurupari - de Yuru-pary, boca
fechada". Bueno (1982, p. 165) é como se com esse nome lembrasse
aos homens que é preciso guardar algum segredo. Mas que segredo tão
importante será esse? O matriarcado?
Zombando das mulheres os homens nomearam-nas de "Cunhã, de Cu, língua,
nhã, que corre, a língua ligeira, rápida, linguaruda e
por ironia mulher". Bueno (1982, p. 96)
Assim, tornou-se sistematicamente a mulher a linguaruda, aquela que nada segreda,
a faladeira, curiosa e inconseqüente. Aquela que deve estar sobre a tutela
de seu esposo, pois dirá o gênesis, 3: 16: "E à mulher
disse (Deus) multiplicarei grandemente a tua dor e a tua conceição:
com dor terás filhos; e o teu desejo será para teu marido, e ele
te dominará".
Mas os indígenas, apesar de fazerem uso de um sistema, por assim dizer,
patriarcal, ainda têm na mulher a idéia da fertilidade.
A literatura indígena está aí, pra nos mostrar mitologicamente
as realidades de outras eras. É só ler nas entrelinhas. É
por isso, que se faz tão necessária a preservação
e divulgação desse gênero literário. Na literatura
indígena pode-se esconder o segredo do universo. O segredo de nossa existência.
Vamos dedicar uma atenção maior a essa literatura que é
a real expressão do nosso povo A literatura indígena.
(Publicado nos Anais do IV Colóquio Nacional Representações de Gênero e de Sexualidades, 19 e 20 de junho de 2008 - Campina Grande, Editora Realize, 2008 - ISBN 978-85-61702-00-7)