CAPÍTULO 'O GRANDE INQUISIDOR', DO LIVRO 'OS IRMÃOS KARAMAZOVI',
DE DOSTOIEVSKI
FILME 'DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL', DE GLAUBER ROCHA
"Que assim mal dividido esse mundo anda errado,
Que a terra é do homem, não é de deus nem do diabo"
[CANTADOR QUE CONCLUI A HISTÓRIA]
Mundo mal dividido, o nosso mundo. Mundo que não é de Deus nem
do Diabo. O mundo é do homem...
I
Assim age o poder, através da intimidação e da manipulação
alienatória.
A civilização ocidental apresenta em seu discurso de poder uma
inversão de valores. Suas relações assimétricas
de força buscam a manutenção desse poder, a manutenção
do próprio sistema vigente.
O Coronel que explora o vaqueiro Manuel é a centelha que dá origem
à história. Manuel tinha planos, planos que são destruídos
pelo poder do Coronel sobre ele. Ao tomar para si as rédeas do seu destino,
o seu livre-arbítrio, ele só tem uma saída: a revolta.
E ao se revoltar ele mata o Coronel e foge.
A desigualdade social do sistema é o motor da trama. Mostra, sem subterfúgios,
o embate entre elementos desse sistema hierarquizado e opressor. O discurso
de uma sociedade ocidental cristã, democrática e livre, mesmo
num país com alto grau de sincretismo como o Brasil, só serve
para uns poucos privilegiados. A maior parte dessa gente, pobre, não
tem voz na sociedade.
Glauber dá voz a essa gente pobre, ao povo, e inaugura o Cinema Novo,
cinema que faz o espectador questionar, que leva o espectador a dialogar com
o filme.
II
As instituições de poder têm um único propósito:
permanecer no poder. Para tal, não deixam de usar os meios necessários.
Não há ética no poder. E uma moral é relegada como
um mero epifenômeno social, quase uma anomalia. Quem tem, tem para-si.
E é-se obrigado a escolher um lado.
Antônio das Mortes é apenas uma ferramenta a ser usada por aqueles
que têm o poder. Uma ferramenta, uma "mercadoria" que tem um
preço. Nesse sistema vigente, aliás, o homem se torna "mercadoria",
e como "mercadoria" ele pode ser substituído; ele é,
pois, descartável.
Manuel, jogado nesse mundo que não é de Deus nem do Diabo, mas
do homem - o homem amoral, o homem desse sistema violento que usa um discurso
invertido para alcançar o poder, que explora e mata e não se sacia
nunca, o homem que trata o outro como "mercadoria", - Manuel se entrega
a um novo "dono", agora o beato (um deus negro?), que representa o
maior dos perigos às instituições do sistema, maior até
do que a rebeldia assassina de um Virgulino e companhia, de um Corisco (um diabo
louro de olhos azuis?) vitimado pelo mundo que não o entende; maior porque
é pior a transgressão, se um toma o lugar do Diabo, o outro quer
tomar o lugar de Deus, e Deus é o próprio sistema, porque o sistema
representa o Bem, o sistema é o estádio da Regra, é o pé
direito da Justiça, o estandarte da Civilização.
III
Aqui entra o grande inquisidor, na figura quase apagada de um homem de batina
negra, um homem de aspecto doente, esquelético, riso sinistro, um homem
que tomou para si através dos séculos o encargo de representar
um deus "todo-poderoso" (esqueça o outro deus, o deus
"todo-misericordioso", porque a misericórdia só será
concedida àqueles que se prostrarem diante do "senhor", seja
este obrigatoriamente a instituição de poder e seus representantes)
no mundo.
Como quando o próprio grande inquisidor no livro de Dostoievski diz:
"Não digas nada, cala-te. Aliás, que poderias dizer? Sei
demais. Não tens o direito de acrescentar uma palavra mais do que
já disseste outrora. Por que vieste estornar-nos?" O Sebastião
e sua gente devem ser calados. São eles um estorvo também. A Igreja
e os seus representantes, ou seja, a instituição, são os
únicos que possuem o poder de falar, o poder como direito divino, como
única e verdadeira voz de um deus "todo-poderoso".
A questão da voz é fundamental. É através da voz
que se realiza a ordenação do mundo. A voz que no princípio
ordena: Faça-se a luz!
Para mostrar o apelo da voz, e a preocupação do Glauber e do Cinema
Novo em geral em dar voz ao povo, temos a frase-ícone e derradeira
de Corisco: "Mais fortes são os poderes do povo!" Na
realidade, o Corisco mesmo teria dito, ele que era conhecido também por
seu misticismo: "Mais fortes são os poderes de Deus!"
A troca da palavra Deus pela palavra povo enfatiza essa preocupação
de dar voz a essa gente sofrida, explorada.
IV
Sebastião e Corisco são transgressores, portanto. Manuel, como todos os pobres desse mundo, se não tem serventia, não tem valor algum. Um possível e essencial valor humano é retirado do próprio ser humano que não "serve" (não se submete) ao sistema funcional vigente. Já Antônio das Mortes, como já foi dito acima, é uma ferramenta, o que significa dizer que é mais um instrumento do que uma mão-de-obra, é mais uma arma de matar do que um homem. O homem, nesse mundo, é "mercadoria", e aquele que hoje trata o outro como tal, amanhã poderá também ser tratado assim.
V
O grande inquisidor do livro continua: "Tudo foi transmitido por ti ao
papa, tudo depende pois agora do papa, não venhas estorvar-nos antes
do tempo, pelo menos." O poder institucional se apresenta como divino,
como universal, atemporal, por conseguinte eterno. Não cabe ao homem
reclamar por ele. Não cabe ao homem lutar contra ele. Estaria o homem
assim lutando contra Deus.
Escolha um lado! O lado de Deus ou do Diabo. Mas o mundo não é
de Deus nem do Diabo, o mundo é do homem. E, nesse mundo, o poder está
nas mãos de uns poucos eleitos, privilegiados, que se "sacrificam"
para manter as instituições, para manter a sociedade, suas regras,
sua gente.
"Foram necessários 15 séculos de rude labor para instaurar
a liberdade (...) fica sabendo que jamais os homens se creram tão livres
como agora e, no entanto, a liberdade deles depositaram-na humildemente a nossos
pés.", diz o grande inquisidor. "Porque é agora, pela
primeira vez, que se pode pensar na felicidade dos homens. São naturalmente
revoltados; revoltados podem ser felizes?" Ponto capital, é preciso
manter essa gente sob dominação permanente, só assim eles
estarão livres do encargo de tomarem para si a responsabilidade de suas
vidas. Eis o discurso invertido se apresentando como lógica fundamental
do sistema, como racionalização básica da sua estrutura
funcional.
Na passagem a seguir o grande inquisidor sentencia que "os séculos
passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios
e intelectuais que não há crimes (...) não há pecado;
só famintos." E, pela fome, o povo entrega a sua liberdade por um
pedaço de pão, por um quilo de feijão. A gente do povo
dirá: "Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido
o fogo do céu não no-lo deram." Em Monte Santo, porém,
a ladainha ainda roga aos céus e desafia o poder dos homens na terra,
por isso devem todos ser eliminados. Matam-se os famintos transgressores.
VI
Aos famintos submissos, a esmola. Diz o grande inquisidor: "Nós
os nutriremos, utilizando-nos falsamente de teu nome, e os faremos crescer.
Sem nós, estarão sempre famintos." E continua: "Nenhuma
ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas
acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade,
dizendo: 'Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis'."
E as terras do mundo não serão divididas entre os homens. As terras
do mundo já têm os seus donos. E caberá aos seus donos a
boa-vontade de dar de alimento aos famintos.
Os rostos dos famintos são desprovidos de identidade, de humanidade.
São rostos do esquecimento. É a África abandonada ao deus-dará.
São as favelas latino-americanas às margens dos grandes centros
urbanos. É a periferia do mundo. É o excesso da escassez. É
o silêncio perturbador das hordas de miseráveis. É o mal-necessário
da marcha civilizatória. É um dano colateral. É, repito,
retirar do homem a própria humanidade.
VII
"Compreenderão o valor da submissão definitiva (...) Amar-nos-ão como a benfeitores que tomam a si a carga de seus pecados perante Deus (...) Os felizes contar-se-ão por bilhões e haverá 100.000 mártires encarregados do conhecimento maldito do bem e do mal. Morrerão tranqüilamente, extinguir-se-ão mansamente em teu nome e no outro mundo nada encontrarão senão a morte." Porque "assim mal dividido esse mundo anda errado, que a terra é do homem, não é de deus nem do diabo", conclui a história o cantador. Porque, como decretou Nietzsche, "Deus está morto." A civilização apodrece. É a crise estrutural do sistema. Desestruturação fatal da sociedade. E, como o próprio Dostoievski revela, "se Deus está morto, tudo é permitido." O homem, contradição e arbitrariedade, abandonado no mundo, se depara com a sua condição anômala, posto que não existe referencial fora dele para ele. O homem se descobre sozinho no mundo, o homem se sente sozinho no mundo.
VIII
Manuel termina desprovido de qualquer juízo, correndo em direção a um mar fictício, sozinho no mundo, ele e seu livre-arbítrio; mas não há lugar para ele nesse mundo, não há lugar para a sua revolta transgressora, resta-lhe apenas o que o próprio Glauber chamou de "delírio libertário". Porque o mundo não é de Deus nem do Diabo, o mundo é do homem.
(novembro de 2006)
Deus e o diabo na terra do sol
Direção: Glauber Rocha
Duração: 125 minutos
Cor: Preto & Branco
Ano: 1964
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