No aeroporto de Confins, assisto à uma entrevista do diretor de cinema
Win Wenders, no programa "Milênio", enquanto aguardo o avião
que me levará, junto com minhas esposa e filha, e nossa cachorrinha,
ao encontro do nosso filho, em Brasília.
Win Wenders está comentando como os EUA gastam milhões de dólares
na invasão do Iraque e se esquecem dos seus compatriotas, abandonados
à própria sorte, quando da catástrofe provocada pelo furacão
Katrina.
Ele fala também do seu último filme, em que aborda a questão
da ausência paterna. Um ator de cinema, que interpretou, durante toda
sua vida, um famoso "cowboy", se aposentou. Ele incorporou, em sua
personalidade, a figura deste herói do faroeste americano, com tanta
intensidade, que se ausentou de si mesmo, nada realizando como ser humano, e
desconhecendo os seus próprios filhos.
O repórter comenta que ele recebeu o título de Doutor em Teologia
"honoris causa", pela direção de filmes como "Asas
do Desejo" e "Tão Longe, Tão Perto", e lhe pergunta
se ele é espiritualista. Ele responde que nunca escondeu a sua condição
de espiritualista, que transparece claramente nestes filmes.
Win Wenders diz que a sua principal atividade, atualmente, não é
a de dirigir filmes, mas sim a de viajar pelo mundo. Gosta de diversas cidades,
e volta sempre à elas. Cita, como exemplo, uma cidade americana que,
de importante centro comercial, se transformou em uma cidade fantasma, e que
ele aprecia muito estar lá, assim como aprecia estar em Salvador, Lisboa,
tema do seu filme "Céus de Lisboa", e muitas outras cidades.
Ele menciona o seu filme "Buena Vista Social Club", que lhe permitiu
transformar a vida dos "super-abuellos" cubanos, tornando-os conhecidos
internacionalmente, um feito inédito na história do cinema.
Comenta que recebe muitas cartas e e-mails de cinéfilos que se sentiram
profundamente tocados pelos seus filmes "Asas do Desejo" e "Tão
Longe, Tão Perto", este último, uma continuação
do primeiro. Penso que comigo sucedeu o mesmo.
Além dos filmes citados, Win Wenders dirigiu outras grandiosas obras,
como "Paris, Texas", "Hotel de Um Milhão de Dólares",
"O Estado das Coisas", e muitas outras, em que retrata, com intensa
sensibilidade poética, a frágil condição humana.
Passeio, com nossa cachorrinha Polly, na imensa praça gramada, em frente
ao prédio onde meu filho reside. Meninos jogam uma pelada e uma pequenina
garota leva um tombo ao tentar "esqueitear", ouvindo as atenciosas
lições do pai, acompanhada pela irmã maior. Observo as
pessoas que passam, conversam na varanda, chegam em casa ao fim da sua jornada
diária de trabalho; as casas, altas e baixas, os coqueiros, o pinheiro,
a goiabeira com suas folhas rendadas pelos insetos. Caminho por uma trilha de
terra vermelha, construída por inúmeros passantes que expulsaram
a grama verde e sedosa, sob o peso dos seus corpos. Chego até uma árvore,
com uma gigantesca copa. Imagino-me com uma câmera de filmar, colhendo
uma seqüência ininterrupta, que começa por esta árvore,
e continua o seu giro captando as imagens de um grande conjunto de prédios
à distância, emoldurado pelo rubor do céu, últimos
raios do sol que se recolhe; construções de prédios que
se alinham, solidários; um monturo de lixo, ao lado de uma convincente
poça d'água; quintais de casas limitados por cercas, expondo silhuetas
de imensos cães negros; um portão do que parece ser uma oficina
mecânica, indicada por uma carcaça de carro, atrás do qual
três cães, de diferentes portes e raças, ladram entusiasmados,
de olhos fixos na Polly; uma casa baixa que cresceu unilateralmente em mais
dois patamares; a praça gramada com o caminho aberto; a copa da árvore,
de novo, que encerra o périplo.
Contrastes de uma capital, nova, criação de um genuíno
líder, visionário e brilhante, que cresce a um ritmo alucinante,
e que me deixa tocar sua alma, vaidosa e fugaz, opulenta e seca, prática
e atormentada; pulso de uma nação com grandes sonhos e culpas,
que se imagina no futuro, mas arrasta os grilhões do passado; que se
afirma livre, mas que nunca se perdoa por sua própria vitalidade e natureza.
Penso em Belo Horizonte, minha cidade natal, e em Brasília, a cidade
que me acolheu por longos anos, e vejo que pouco possuem em comum. Novas e com
brilhantes futuros, mas enquanto a primeira peca por escassez, sisuda, acidentada,
coloquial e subterrânea, a segunda peca por excesso, hedonista, carreirista,
superficial e imediatista.
(21/12/2005)
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