Sempre imaginei com bastante curiosidade como seria morrer antes dos vinte
e cinco, na flor da juventude, como os poetas românticos... Bem, um dia
desses, daqueles que a gente nem lembra e que passam com a normalidade cega
e surda na memória do nosso tempo, numa tarde, assim, ela veio.
Eu estava meio que dormindo, mas não inconsciente também não
muito acordada, tinha tomado várias xícaras de café e tinha
tentado escrever meu trabalho. Era tarde da madrugada, cansada acabei por me
debruçar sobre a mesa e deixar os livros e o computador de lado.
Não sei se foi de propósito, mas ela veio esvoaçante e
rápida, criando uma magia sedutora em sua chegada, a capa era tão
escura quanto seus olhos vazios e me olhavam não com vontade, mas com
uma paixão quase penosa... Sorria louca e em suas mãos não
trazia uma foice afiada e sim uma rosa vermelha, que me dava a impressão
de sangrar.
A princípio eu não sabia quem era ela e mal conseguia falar diante
do meu espanto, não de medo, acho que era mais curiosidade e surpresa.
Mas ela se aproximou com a rosa nas mãos, usava uma capa preta longa
que cobria todo o corpo e apenas deixava a mostra os olhos, que já descrevi.
Qual foi meu espanto quando ela se aproximou mais e mais, chegando bem devagar,
perto demais pra me deixar confusa e revelou-se muito diferente do que eu pensava,
disse por fim:
- olá! Você me reconhece?
Fiquei assombrada, não era mulher! A morte é um homem e tem uma
voz forte e sedutora! Os olhos tão próximos dos meus eram azuis,
como gelo, de repente a morte ficou bela pra mim, e eu me vi seduzida. Mal sabia
o que dizer então apenas balancei negativamente a cabeça. Ele
chegou mais perto e podia me tocar (se quisesse), estar perto dele dava a terrível
sensação de uma nevasca, mas também a sensação
de um inferno escaldante...
Então ele tirou o capuz e me fitou os olhos, quase desmaiei com a visão
que tive! As mãos eram branquíssimas e os cabelos negros, tudo
em perfeita simetria, sem nada fora do lugar, uma beleza sem igual! Estonteante!
Sem tirar os olhos de mim falou mais uma vez:
-é uma pena que você não me reconheça menina! Não
se assuste eu prometo não machucá-la. Mas você tem que me
ajudar também! Não é fácil ser bonzinho com todo
mundo...
-você veio me buscar? Eu morri?
- calma! Temos todo o tempo do mundo para conversar, agora quero que você
me diga se existe na sua vida algo que precise ser resolvido, se tem algo inacabado.
Diga!
Engraçado! A morte faz perguntas? O que eu poderia dizer? Minha vida
era um oceano de assuntos inacabados, meu pai me odiava e eu não sabia
o porquê, minha mãe era tão ausente, minha carreira era
mal sucedida antes mesmo de começar, no amor era um desastre, com os
amigos... Nem amigos eu tinha! O que eu iria dizer?
-minha vida nunca foi completa! Eu acho que fui um erro do destino... Leva-me
logo com você e acaba com isso.
-não é bem assim mocinha! Eu não vim buscá-la, sua
vida apenas está começando, olhe ao seu redor e veja quantas pessoas
amam você.
Olhei e vi meus pais e mais algumas pessoas da universidade ao redor de alguém,
choravam, lamentavam, eu podia sentir a tristeza deles. Isso doía em
mim, era horrível sentir a dor deles... Sufocante...
-pára com isso! Tá doendo muito! Pára!
-desculpa! Eu disse, você tinha que me ajudar, é da minha natureza
não ter pena, ser bom ou mau, apenas faço o que tenho que fazer!
Eu vim dizer para você parar de me chamar, eu sou muito ocupado sabia?
Ainda não é a sua vez. Diminua a cafeína, saia mais, converse
mais com seus pais, eles te amam, só não sabem o que você
sente por eles. E aquelas meninas que você chama de metidas são
garotas legais e que acham você muito sozinha e querem se aproximar.
As pessoas não mordem e o amor não é um bicho de sete cabeças!
Tá na hora de acordar, você tem muito a viver, tem um parente meu
que quer muito ficar perto de você, o deixe chegar, o nome dele é
felicidade.
-peraí! Felicidade não é feminino?
-não é bem assim, homem ou mulher, não existe gênero,
é como com os anjos, entende?
-mais ou menos! E você, o que é?
-você vai descobrir um dia! Agora é hora de acordar, não
esqueça tudo o que eu disse, agora vem cá...
- o quê? Como as...
Ele me beijou! E foi um beijo maravilhoso! Eu nunca imaginei algum dia beijar
a morte, mas ele beija tão bem... Mas o fim não foi nada bom,
acordei num sobressalto e minha cabeça doía intensamente. Quando
abri os olhos não estava no meu quarto e sim num hospital, meus pais
estavam ao redor da cama com um olhar tão triste, mas quando me viram
acordar correram pra me abraçar e bendiziam a Deus e tudo foi perfeito,
menos as minhas lágrimas... A dureza do meu coração dissolvia
diante de tanto amor e cuidado, onde esse amor estava nesses vinte e três
anos? Eu só podia chorar...
Acabei por descobrir que havia tido um derrame e tinha estado em coma, meus
pais me contaram tudo, agora os via com outros olhos e tinha a certeza que eles
me amavam, eu diria sempre que os amava tanto... Recebi várias visitas
durante o tempo em que estive no hospital, pessoas que nunca imaginei que se
interessavam por mim, mas uma pessoa em especial me chamou a atenção...
Quando todos saíram ele ficou no quarto, eu o vi meio que de longe assim
que entrou, ficou quietinho no canto do quarto o tempo todo e quando o pessoal
foi embora ele continuou ali de frente pra janela, eu não o conhecia,
nem lembrava de o ter visto na faculdade... Então ele virou e com um
tremendo susto eu o reconheci, era ele! A morte novamente!
-não menina! Eu não sou quem você pensa, nós somos
idênticos, mas não a mesma pessoa. Meu nome é Feliciano.
Mas pode me chamar de felicidade e eu vim roubar você pra mim!
Sempre a mania de chegar perto, perto demais... Sim! Ele me beijou, mas ao contrário
da morte era quente, doce e viciante... O que aconteceu depois desse encontro
é desconhecido pra mim, vivi muitas emoções num dia só!
Lembro-me apenas das sensações causadas e quando acordei de um
longo sono ela estava ao meu lado, uma rosa belíssima, mas não
sangrava e tinha a cor rosa, como deve ser a cor da felicidade e ele havia partido.
Mas a rosa ficou para mim, como um lembrete de que voltaria e cumpriria com
a palavra de me roubar pra ele e quem seria louca de contrariá-lo?
Meu encontro com a morte foi muito proveitoso, mas o encontro final poderia
esperar mais um pouco, afinal, eu não nasci na época do romantismo
excedido mesmo...
(12/02/10)