Houve um tempo em que o tempo era algo que existia, hoje já não
o temos! Vinte e quatro horas não são suficientes para findar
as tarefas que temos a cumprir, às vezes nem sempre tão necessárias
e urgentes...
Eu aprendi a lição, mas precisei de ajuda e veio na hora certa,
o momento mais difícil da minha vida, tão medíocre e fraca.
Eu buscava entender o porquê das coisas, procurava saber se por trás
de uma ação havia uma intenção, nunca confiei totalmente,
até conhecer Eurídice.
Ela era um Sol, de tanto que brilhava, era calma, atenciosa, humana e generosa.
Eu pude conhecê-la graças a um acidente. Tudo aconteceu numa tarde
de domingo, briguei pela milésima vez com meu irmão. Nós
só tínhamos um ao outro desde a morte dos nossos pais e mesmo
assim nos dávamos muito mal. Ele era alegre, intenso, queria viver uma
vida louca e sem regras, sobrou pra mim o papel da chata, responsável
e sem graça.
A vida às vezes pode ser muito injusta conosco, mas se vermos pelo lado
positivo as coisas podem mudar de figura... Depois de horas discutindo eu saí
porta afora para dar um tempo e aliviar a tensão, era um domingo chuvoso
e escuro, apesar de não passar muito das seis. Eu queria que o mundo
explodisse, eu queria explodir, morrer! E quase meu pedido foi atendido.
Atravessei a rua de frente de casa e fui andando na beira da calçada,
tudo bem até um carro invadir a calçada e me jogar a metros de
distância. Depois do acidente pra mim é escuro ainda, lembro de
acordar depois e estar deitada numa cama, num quarto branco. Levantei e percebi
que estava inteira, mas não reconheci o lugar, resolvi andar um pouco
e tentar descobrir onde estava.
Abri a porta do quarto e vi uma sala enorme, num tipo de decoração
antiga, bem em frente a uma lareira tinha uma poltrona, alguém estava
nela. Andei em direção a poltrona e antes que pudesse perguntar
ela se virou e disse:
- oi! Eu estava te esperando menina.
- quem é você? Onde estou? O que aconteceu?
-porque você não senta aqui ao meu lado e aceita uma xícara
de chá?
-mas respon...
-shhhhh! Eu responderei aos poucos, fique calma! O tempo agora é o seu
maior inimigo, aprenda a respeitá-lo...
Não sei dizer por quanto tempo estive ali ao lado daquela mulher, não
parecia velha, nem jovem. Era muito calma, com paciência me contou sua
história de vida, sua batalha contra o tempo numa doença incurável,
o quanto viveu intensamente (sim, ela era um espírito!). Mas no fim das
contas acabou me explicando que eu estava ali a pedido de pessoas que eu conhecia
e que se importavam muito comigo, que foi preciso me tirar um pouco da vida
para me mostrar o que eu estava deixando passar...
- Eu estou morta?
-não! Apenas dormindo querida. Veja! Vou mostrar como você tem
vivido e como as pessoas estão reagindo a fortaleza que você construiu
ao seu redor.
-mas eu...
- só veja e você vai entender.
Então eu vi minha vida, como um filme em preto e branco, a felicidade
com meus pais e meu irmãozinho, meu mundo era completo e tão feliz...
Mas veio o acidente e tirou a vida dos meus pais, vi minha alma se fechando
de tristeza, meu irmão sofrendo sozinho, dois solitários sofredores...
Eu vi tudo... E doeu tanto...
-Eu só queria não ter que ser a mais forte por nós dois!
Eu não queria toda a responsabilidade pra mim! Eu era quase uma criança!
Por quê? Por quê?...
-calma menina! Agora pode chorar, você não está sozinha,
entende o que eu quero te dizer? Teu irmão precisa de ti, assim como
você precisa dele. Não seja autosuficiente, seja humilde e assuma
sua condição humana de precisar do outro! Abra o seu coração,
sei que aí dentro tem muito amor para ser compartilhado...
-o que você é? Anjo, fada, bruxa?
-sou apenas um instrumento do amor maior! Agora vá, tem alguém
que ainda precisa muito de você e nunca esqueça tudo o que eu lhe
disse.
Quando acordei estava em casa, no meu quarto, meu irmão me levou ao hospital,
mas nada de grave tinha me acontecido, só fiquei inconsciente por um
bom tempo. Ele preferiu me levar pra casa já que eu não corria
nenhum risco de vida e acordaria a qualquer momento.
Era engraçado como a minha memória ficou meio embaçada
com todos aqueles acontecimentos, eu lembrava Eurídice e da nossa conversa,
mas não lembrava como havia chegado até ela.
-mano, me desculpa?
-pelo que mana?
- por ser tão incompreensiva e egoísta! Eu só olhei pra
mim, pra minha dor, me perdoa, por favor!
-eu entendo! Não há o que perdoar, somos irmãos e nada
vai mudar isso! Eu te amo maninha!
-obrigada! Eu sou muito sortuda por ter um irmãozinho tão gentil
e maravilhoso! Também te amo mano! (chorando sem parar)
-ok, ok! (limpando as lágrimas) vamos parar de rasgar seda se não
eu vou acabar chorando mais do que devia... Bem vinda de volta irmãzinha!
O que você quer agora? Pode pedir qualquer coisa...
- uma xícara de chá bem quente e um pouco de atenção!
Depois de um abraço bem apertado a vida recomeçou pra nós
dois, agora pra valer, sem tempo, sem tristezas, só a vida, essa que
deve ser vivida e não é a que temos!
(11-03-2010)