Lúcia chega mais uma noite em casa depois do trabalho. Abre a porta
emperrada do portão da frente do velho prédio onde mora. Um pombal.
Muitos e muitos blocos acinzentados com apartamentos pequenos e idênticos.
Pega o elevador barulhento até seu andar. Desce. Encara a porta, com
o número 75 fixado em metal gasto.Gira a chave duas vezes antes de entrar
na sala simples. Poucos móveis, um tapete puído embaixo da mesinha
de centro de madeira.
Suspira. O gato meio cego vem ao seu encontro, ronronando. Acaricia a cabeça
do animal e sorri seu sorriso triste de todas as chegadas.
No caminho até seu quarto, despe os sapatos apertados de salto altos
e o uniforme impessoal, cinza e branco, que é obrigada a usar todos os
dias em seu trabalho medíocre. Senta na cama e massageia brevemente os
pés doloridos. Depois, já em pé, focaliza-se no espelho
grande da cômoda e analisa-se.
Vê sua imagem. Não é especialmente feia. Mas é uma
moça sem graça. Tem certeza disso. Nunca é notada. Sente-se
feita de vapor. Transparente.
Observa-se cuidadosamente: os cabelos castanhos, cor de nada, sem corte, caídos
nos ombros. A pele clara, os olhos também castanhos inexpressivos, a
boca de lábios carnudos, porém sem grandes atrativos. De calcinha
e sutiã detém-se no corpo. Magra. Seios mínimos, bunda
pequena, quadris estreitos. Um corpo andrógino. Indefinido. Prende os
cabelos com um elástico.
Suspira novamente. Volta à sala, depois à cozinha, prepara a ração
do gato e esquenta as sobras do jantar de ontem. Senta-se com ar desolado à
mesa pequena da cozinha, apoia a cabeça com uma das mãos,
e come vagarosamente sua porção requentada, tão sem graça
quanto ela.
Depois entra no chuveiro. Toma um banho rápido, veste uma velha camiseta
com um furo na manga, uma calcinha folgada e mete-se embaixo do cobertor felpudo.
O gato acomoda-se sonolento aos seus pés, fitando-a distraído.
Ela olha para o teto um pouco descascado e com os olhos cheios de água
pensa que poderia dormir e nunca mais acordar.
A vida de Lúcia é assim. Um amontoado de mediocridades. A vida
sob um cronômetro hostil e implacável que lhes esmaga os ossos
todos os dias. Ela é um robô mal programado. Para executar o nada
o dia todo. Sua alma é mofada, com pontos de bolor lhe corroendo lenta
e implacavelmente. Dias cinzentos dentro dela, mesmo que lá fora sejam
de sol.
O robô: desperta às 6:00 da manhã sob o ruído estridente
e implacável do despertador. Depois sacoleja em dois ônibus até
chegar em seu trabalho. Permanece o dia todo sentada dentro de um cubículo,
frente a um velho computador, grudada ao telefone atendendo clientes da operadora
de cartão de crédito. Sorriso congelado, voz mecânica. Outras
trinta pessoas na sala, dentro de seus cubículos, divididos por vidros
antirruído ensebados. Ninguém fala com ninguém, pois o
vidro não permite nenhuma passagem de som. Sente-se numa jaula, ou num
recipiente de laboratório, como um rato aprisionado. Os telefonemas são
gravados. Tudo é controlado. Ao meio dia desce para o refeitório
e almoça a comida cheia de salitre um tanto calada ao lado de seus colegas.
Meio dia e cinquenta sobe mecanicamente para seu andar e para sua jaula,
para de novo fazer os mesmos movimentos da manhã. Sai as dezoito e trinta
e sacoleja novamente em mais dois ônibus e quinze minutos de caminhada
até sua casa.
Às vezes no caminho passa no supermercado ou visita uma tia velha e surda
que é sua única família, mas que não a reconhece
mais, pois tem o mal de Alzheimer. Apenas olha a moça com uma cara abobalhada
e ri. Mas ela continua a visitá-la algumas vezes por mês, levando
frutas frescas ou cigarros sem filtro que a velha fuma satisfeita. Chega depois
à sua casa, suspira, põe a comida para o gato, esquenta suas sobras,
suspira, come sozinha olhando o vazio, toma seu banho, assiste às vezes
um pouco de televisão, suspira, deita-se e pensa que seria bom não
mais acordar. Suspira. Dorme. Não sonha.
Numa noite ela chega em casa e repete o ritual de todas as outras. Mas ao fechar
a cortina da janela da sala detém-se numa luz acesa tremulando no 5º
andar do prédio que fica em frente ao seu, do outro lado da rua. Espia
interessada em algo que se movimenta. Inclina o corpo para ver melhor. Não
enxerga nitidamente, mas parece duas pessoas dançando. Movimentam-se
loucamente, em passos desordenados, mas de uma beleza estranha. Dois corpos.
Parecem estar nus. Às vezes se tocam, outras se afastam. E a luz da vela
fazendo um jogo de luz e sombras no balé fantasma.
Permanece ali, assistindo àquela inusitada cena por muito tempo, absorvida
naquele estranho mundo vindo da janela do 5º andar. Até que depois
de muito tempo a luz se apaga definitivamente, como num fim de espetáculo
e ela não consegue ver mais nada.
Pisca várias vezes os olhos tentando se refazer daquele estado de transe.
Olha o relógio antigo pendurado na parede da sala. Uma e quinze da manhã.
Não acredita ter ficado tanto tempo acordada, observando aquilo. O robô
mal programado. Amanhã vou acordar acabada, pensa.
Deita-se na cama e acaricia com os pés o pêlo macio do gato. Demora
muito para dormir, porque aquela estranha dança não lhe sai da
cabeça.
Na manhã seguinte, antes de entrar no banho vai à janela e espia
o apartamento da frente. Tudo é imobilidade. Uma cortina de cor clara
permanece fechada. Ela suspira entediada e sai apressada.
Volta à noite, e antes de qualquer coisa, caminha rapidamente à
janela novamente. E vê. Novamente um corpo, mas dessa vez não há
luz de velas, mas sim uma luz difusa, como a de uma luminária. O ambiente
é mais claro que na noite anterior e ela vê nitidamente. É
um homem. Parece alto. As costas nuas, fortes, coladas à janela. A pele
morena. Cabelos curtos e escuros. Não dá pra saber a idade. Os
braços abertos, as mãos apoiadas no parapeito da janela. Em intervalos
curtos de tempo ele joga a cabeça para trás e faz movimentos ritmados,
como um leve vai e vem.
Ela fica ali, tentando entender aquela cena e de repente tudo fica claro. O
homem puxa longos cabelos negros que parecem levantar-se do chão. Um
lindo corpo de mulher surge diante do corpo do homem, enrolando-se a ele como
uma serpente faminta.
Lúcia arregala os olhos e engole em seco, sentindo o coração
descompassar.
Então a louca dança continua, diante dos olhos injetados dela.
O homem então vira a moça de cabelos negros de frente para a janela.
E agora ela apoia as mãos cravadas no parapeito, em garra. Ele
lhe morde a nuca e ela joga os cabelos para trás, descontrolada. Seu
rosto não é nítido, mas vê-se que tem os olhos cerrados
e a boca muito aberta. Então, bruscamente ele curva-a, de frente, com
a cintura e os seios pendendo para fora da janela e segura os braços
da moça, atrás de suas costas, em cruz. Movimentos enlouquecidos
dos dois corpos por alguns minutos.
Depois ele respira. A moça abraça-o, beija-o na boca e sai de
perto da janela, caminhando nua lentamente. Ele arfa o peito e olha distraidamente
ao redor. De repente focaliza Lúcia petrificada na janela. Os olhares
se cruzam por instantes. O momento congela-se. Ele cruza o braço e sorri.
Então afasta-se um pouco do parapeito da janela e lhe mostra o membro
ainda rijo, simulando uma masturbação. Lúcia leva as mãos
suadas e trêmulas à boca para conter um grito e afasta-se violentamente
da janela, com o coração descompassado.
Deixa-se cair violentamente no chão e ali permanece imóvel por
alguns minutos, sentindo seu corpo todo latejando. Então levanta-se devagar,
espia novamente a janela, com cuidado para não ser vista. Agora a cortina
clara está cerrada e tudo novamente é imobilidade.
Lúcia está molhada de suor. Entra no chuveiro e senta-se no chão
do box sentindo a água escorrer deliciosamente pelos seus cabelos e seu
corpo. Começa a acariciar-se lentamente, a barriga, os seios, as coxas.
Imagina aquele lindo homem e a cena que presenciou e sente-se cada vez mais
úmida e louca de excitação. E então goza. Arranha-se.
Uiva de prazer. E depois chora. Chora muito tempo até notar que a pele
dos seus dedos está enrugada pelo tempo que está dentro da água.
Essa noite dorme exausta, nua, enrolada num cobertor, no sofá da sala.
Apenas o gato está nos pés da sua cama. Sozinho. Com frio.
No dia seguinte Lúcia está totalmente fora de centro. Distraída
e perdida, com grandes olheiras decorando seu rosto e uma dor nas costas insuportável
pela falta de acomodação no sofá velho. Mas com algo um
pouco mais aceso dentro do peito. E da vagina.
À noite o espetáculo visto da janela se repete. Agora a moça
tem cabelos curtos e loiros. Algumas variações no script da performance.
A luz agora é direta, forte, sobre os corpos grudados. Mas Lúcia
nota que o homem a encara, de tempos em tempos, num meio sorriso. E ela ali,
olhando, tentando, encolhida, esconder-se de seu campo de visão. A excitação
é cada vez maior e no fim do espetáculo ela masturba-se deitada
de costas no chão gelado. O gato, esparramado no sofá, observa
impassível a cena.
E assim as coisas acontecem por várias noites seguidas. O homem tem variações
sexuais requintadas e cada noite a estrela da vez é uma mulher diferente:
morenas, ruivas, loiras, negras, mulatas, japonesas. E Lúcia se acaba.
Se esfola de tanto tocar-se. De manhã não sabe mais o que está
fazendo. Tem se atrasado para o trabalho e emagrece a cada dia, pois mal se
alimenta. Só pensa naquela figura de sonho.
Numa noite, depois do espetáculo diário, Lúcia está
estirada no sofá, nua, tentando dormir. A sala tem a luz apenas de uma
luminária. É então que ouve o som estridente da campainha.
Assusta-se. Não recebe visitas. Enrola-se no cobertor e pensa que com
certeza é um engano de apartamento. Abre a porta mecanicamente. E aí
seu coração gela. E seu corpo se paralisa.
Diante dela está o homem. Alto. Imenso. Lindo. Vestido de preto. Os braços
fortes mostrando-se através da camiseta de mangas curtas. Ela não
pronuncia uma palavra, pois sua voz não existe. Ele sorri. Então,
num movimento brusco, abre a calça e mostra-lhe o membro duro. E ainda
assim entra como se a casa fosse sua e a carrega nos braços.
O que acontece depois disso é uma confusão de corpos e sons. Bagunça,
roupas e cobertas jogadas no chão e um pobre gato acomodado em cima da
estante da sala, imóvel.
Horas depois o homem deixa-a absolutamente exausta, largada no sofá,
a dormir profundamente e vai embora.
Lúcia acorda quase onze horas da manhã. Sente-se flutuar. Não
tem o peso do corpo e da alma. Não sente mais o cheiro de mofo de seu
espírito. Arruma-se rapidamente e segue decidida para um cabeleireiro
perto de sua casa. Entra animada. Corta o cabelo na altura do pescoço,
tingi-o de loiro escuro, com reflexos dourados um pouco mais claros, pede uma
maquiagem e um batom vermelho nos lábios. Acha-se linda. Segue em seguida
até uma loja. Experimenta uma saia preta justa, uma blusa vermelha decotada,
uma sandália preta de saltos altíssimos. Paga tudo com um cheque
sem fundos e caminha orgulhosa e sorridente pelas ruas. Sente-se olhada, desejada,
homens dizem gracejos, olha-se de canto nos vidros das vitrines das lojas e
pela primeira vez não é feita de vapor. Tem carnes. E carnes quentes.
Caminha por horas até o trabalho. Seus pés têm bolhas. Mas
ela não sente dor. Chega no prédio, mas não entra em seu
cubículo. As pessoas quase não a reconhecem. Passa determinada
pelo corredor estreito e entra sem bater na sala proibida. A sala de seu chefe.
O homem olha-a de cima abaixo com a boca aberta, sem pronunciar palavra. Então
Lúcia senta-se em sua mesa, puxa sua gravata até ficar com o rosto
colado ao dele e pronuncia com todas as sílabas: v-a-s-e-f-o-d-e-r!!!!!!!!!!!!!!!
E sai da sala gargalhando e rebolando sua bunda.
Volta para a casa, carrega seu gato e só aí vai olhar para fora.
Então lá, na janela agora sem cortinas do apartamento do 5º
andar vê uma grande placa escrita em letras imensas ALUGA-SE.
Lúcia suspira longamente, abraça o bicho com carinho, passa a
língua pelos lábios e é tomada por uma felicidade jamais
sentida. Então sorri o melhor sorriso de toda a sua vida. O sorriso de
EXISTIR.
(2004)