A Garganta da Serpente
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O Apartamento do Quinto Andar

(Alessandra Mascarenhas)

Lúcia chega mais uma noite em casa depois do trabalho. Abre a porta emperrada do portão da frente do velho prédio onde mora. Um pombal. Muitos e muitos blocos acinzentados com apartamentos pequenos e idênticos. Pega o elevador barulhento até seu andar. Desce. Encara a porta, com o número 75 fixado em metal gasto.Gira a chave duas vezes antes de entrar na sala simples. Poucos móveis, um tapete puído embaixo da mesinha de centro de madeira.

Suspira. O gato meio cego vem ao seu encontro, ronronando. Acaricia a cabeça do animal e sorri seu sorriso triste de todas as chegadas.

No caminho até seu quarto, despe os sapatos apertados de salto altos e o uniforme impessoal, cinza e branco, que é obrigada a usar todos os dias em seu trabalho medíocre. Senta na cama e massageia brevemente os pés doloridos. Depois, já em pé, focaliza-se no espelho grande da cômoda e analisa-se.

Vê sua imagem. Não é especialmente feia. Mas é uma moça sem graça. Tem certeza disso. Nunca é notada. Sente-se feita de vapor. Transparente.

Observa-se cuidadosamente: os cabelos castanhos, cor de nada, sem corte, caídos nos ombros. A pele clara, os olhos também castanhos inexpressivos, a boca de lábios carnudos, porém sem grandes atrativos. De calcinha e sutiã detém-se no corpo. Magra. Seios mínimos, bunda pequena, quadris estreitos. Um corpo andrógino. Indefinido. Prende os cabelos com um elástico.

Suspira novamente. Volta à sala, depois à cozinha, prepara a ração do gato e esquenta as sobras do jantar de ontem. Senta-se com ar desolado à mesa pequena da cozinha, apoia a cabeça com uma das mãos, e come vagarosamente sua porção requentada, tão sem graça quanto ela.

Depois entra no chuveiro. Toma um banho rápido, veste uma velha camiseta com um furo na manga, uma calcinha folgada e mete-se embaixo do cobertor felpudo. O gato acomoda-se sonolento aos seus pés, fitando-a distraído. Ela olha para o teto um pouco descascado e com os olhos cheios de água pensa que poderia dormir e nunca mais acordar.

A vida de Lúcia é assim. Um amontoado de mediocridades. A vida sob um cronômetro hostil e implacável que lhes esmaga os ossos todos os dias. Ela é um robô mal programado. Para executar o nada o dia todo. Sua alma é mofada, com pontos de bolor lhe corroendo lenta e implacavelmente. Dias cinzentos dentro dela, mesmo que lá fora sejam de sol.

O robô: desperta às 6:00 da manhã sob o ruído estridente e implacável do despertador. Depois sacoleja em dois ônibus até chegar em seu trabalho. Permanece o dia todo sentada dentro de um cubículo, frente a um velho computador, grudada ao telefone atendendo clientes da operadora de cartão de crédito. Sorriso congelado, voz mecânica. Outras trinta pessoas na sala, dentro de seus cubículos, divididos por vidros antirruído ensebados. Ninguém fala com ninguém, pois o vidro não permite nenhuma passagem de som. Sente-se numa jaula, ou num recipiente de laboratório, como um rato aprisionado. Os telefonemas são gravados. Tudo é controlado. Ao meio dia desce para o refeitório e almoça a comida cheia de salitre um tanto calada ao lado de seus colegas. Meio dia e cinquenta sobe mecanicamente para seu andar e para sua jaula, para de novo fazer os mesmos movimentos da manhã. Sai as dezoito e trinta e sacoleja novamente em mais dois ônibus e quinze minutos de caminhada até sua casa.

Às vezes no caminho passa no supermercado ou visita uma tia velha e surda que é sua única família, mas que não a reconhece mais, pois tem o mal de Alzheimer. Apenas olha a moça com uma cara abobalhada e ri. Mas ela continua a visitá-la algumas vezes por mês, levando frutas frescas ou cigarros sem filtro que a velha fuma satisfeita. Chega depois à sua casa, suspira, põe a comida para o gato, esquenta suas sobras, suspira, come sozinha olhando o vazio, toma seu banho, assiste às vezes um pouco de televisão, suspira, deita-se e pensa que seria bom não mais acordar. Suspira. Dorme. Não sonha.

Numa noite ela chega em casa e repete o ritual de todas as outras. Mas ao fechar a cortina da janela da sala detém-se numa luz acesa tremulando no 5º andar do prédio que fica em frente ao seu, do outro lado da rua. Espia interessada em algo que se movimenta. Inclina o corpo para ver melhor. Não enxerga nitidamente, mas parece duas pessoas dançando. Movimentam-se loucamente, em passos desordenados, mas de uma beleza estranha. Dois corpos. Parecem estar nus. Às vezes se tocam, outras se afastam. E a luz da vela fazendo um jogo de luz e sombras no balé fantasma.

Permanece ali, assistindo àquela inusitada cena por muito tempo, absorvida naquele estranho mundo vindo da janela do 5º andar. Até que depois de muito tempo a luz se apaga definitivamente, como num fim de espetáculo e ela não consegue ver mais nada.

Pisca várias vezes os olhos tentando se refazer daquele estado de transe. Olha o relógio antigo pendurado na parede da sala. Uma e quinze da manhã. Não acredita ter ficado tanto tempo acordada, observando aquilo. O robô mal programado. Amanhã vou acordar acabada, pensa.

Deita-se na cama e acaricia com os pés o pêlo macio do gato. Demora muito para dormir, porque aquela estranha dança não lhe sai da cabeça.

Na manhã seguinte, antes de entrar no banho vai à janela e espia o apartamento da frente. Tudo é imobilidade. Uma cortina de cor clara permanece fechada. Ela suspira entediada e sai apressada.

Volta à noite, e antes de qualquer coisa, caminha rapidamente à janela novamente. E vê. Novamente um corpo, mas dessa vez não há luz de velas, mas sim uma luz difusa, como a de uma luminária. O ambiente é mais claro que na noite anterior e ela vê nitidamente. É um homem. Parece alto. As costas nuas, fortes, coladas à janela. A pele morena. Cabelos curtos e escuros. Não dá pra saber a idade. Os braços abertos, as mãos apoiadas no parapeito da janela. Em intervalos curtos de tempo ele joga a cabeça para trás e faz movimentos ritmados, como um leve vai e vem.

Ela fica ali, tentando entender aquela cena e de repente tudo fica claro. O homem puxa longos cabelos negros que parecem levantar-se do chão. Um lindo corpo de mulher surge diante do corpo do homem, enrolando-se a ele como uma serpente faminta.

Lúcia arregala os olhos e engole em seco, sentindo o coração descompassar.

Então a louca dança continua, diante dos olhos injetados dela.

O homem então vira a moça de cabelos negros de frente para a janela. E agora ela apoia as mãos cravadas no parapeito, em garra. Ele lhe morde a nuca e ela joga os cabelos para trás, descontrolada. Seu rosto não é nítido, mas vê-se que tem os olhos cerrados e a boca muito aberta. Então, bruscamente ele curva-a, de frente, com a cintura e os seios pendendo para fora da janela e segura os braços da moça, atrás de suas costas, em cruz. Movimentos enlouquecidos dos dois corpos por alguns minutos.

Depois ele respira. A moça abraça-o, beija-o na boca e sai de perto da janela, caminhando nua lentamente. Ele arfa o peito e olha distraidamente ao redor. De repente focaliza Lúcia petrificada na janela. Os olhares se cruzam por instantes. O momento congela-se. Ele cruza o braço e sorri. Então afasta-se um pouco do parapeito da janela e lhe mostra o membro ainda rijo, simulando uma masturbação. Lúcia leva as mãos suadas e trêmulas à boca para conter um grito e afasta-se violentamente da janela, com o coração descompassado.

Deixa-se cair violentamente no chão e ali permanece imóvel por alguns minutos, sentindo seu corpo todo latejando. Então levanta-se devagar, espia novamente a janela, com cuidado para não ser vista. Agora a cortina clara está cerrada e tudo novamente é imobilidade.

Lúcia está molhada de suor. Entra no chuveiro e senta-se no chão do box sentindo a água escorrer deliciosamente pelos seus cabelos e seu corpo. Começa a acariciar-se lentamente, a barriga, os seios, as coxas. Imagina aquele lindo homem e a cena que presenciou e sente-se cada vez mais úmida e louca de excitação. E então goza. Arranha-se. Uiva de prazer. E depois chora. Chora muito tempo até notar que a pele dos seus dedos está enrugada pelo tempo que está dentro da água.

Essa noite dorme exausta, nua, enrolada num cobertor, no sofá da sala. Apenas o gato está nos pés da sua cama. Sozinho. Com frio.

No dia seguinte Lúcia está totalmente fora de centro. Distraída e perdida, com grandes olheiras decorando seu rosto e uma dor nas costas insuportável pela falta de acomodação no sofá velho. Mas com algo um pouco mais aceso dentro do peito. E da vagina.

À noite o espetáculo visto da janela se repete. Agora a moça tem cabelos curtos e loiros. Algumas variações no script da performance. A luz agora é direta, forte, sobre os corpos grudados. Mas Lúcia nota que o homem a encara, de tempos em tempos, num meio sorriso. E ela ali, olhando, tentando, encolhida, esconder-se de seu campo de visão. A excitação é cada vez maior e no fim do espetáculo ela masturba-se deitada de costas no chão gelado. O gato, esparramado no sofá, observa impassível a cena.

E assim as coisas acontecem por várias noites seguidas. O homem tem variações sexuais requintadas e cada noite a estrela da vez é uma mulher diferente: morenas, ruivas, loiras, negras, mulatas, japonesas. E Lúcia se acaba. Se esfola de tanto tocar-se. De manhã não sabe mais o que está fazendo. Tem se atrasado para o trabalho e emagrece a cada dia, pois mal se alimenta. Só pensa naquela figura de sonho.

Numa noite, depois do espetáculo diário, Lúcia está estirada no sofá, nua, tentando dormir. A sala tem a luz apenas de uma luminária. É então que ouve o som estridente da campainha. Assusta-se. Não recebe visitas. Enrola-se no cobertor e pensa que com certeza é um engano de apartamento. Abre a porta mecanicamente. E aí seu coração gela. E seu corpo se paralisa.

Diante dela está o homem. Alto. Imenso. Lindo. Vestido de preto. Os braços fortes mostrando-se através da camiseta de mangas curtas. Ela não pronuncia uma palavra, pois sua voz não existe. Ele sorri. Então, num movimento brusco, abre a calça e mostra-lhe o membro duro. E ainda assim entra como se a casa fosse sua e a carrega nos braços.

O que acontece depois disso é uma confusão de corpos e sons. Bagunça, roupas e cobertas jogadas no chão e um pobre gato acomodado em cima da estante da sala, imóvel.

Horas depois o homem deixa-a absolutamente exausta, largada no sofá, a dormir profundamente e vai embora.

Lúcia acorda quase onze horas da manhã. Sente-se flutuar. Não tem o peso do corpo e da alma. Não sente mais o cheiro de mofo de seu espírito. Arruma-se rapidamente e segue decidida para um cabeleireiro perto de sua casa. Entra animada. Corta o cabelo na altura do pescoço, tingi-o de loiro escuro, com reflexos dourados um pouco mais claros, pede uma maquiagem e um batom vermelho nos lábios. Acha-se linda. Segue em seguida até uma loja. Experimenta uma saia preta justa, uma blusa vermelha decotada, uma sandália preta de saltos altíssimos. Paga tudo com um cheque sem fundos e caminha orgulhosa e sorridente pelas ruas. Sente-se olhada, desejada, homens dizem gracejos, olha-se de canto nos vidros das vitrines das lojas e pela primeira vez não é feita de vapor. Tem carnes. E carnes quentes.

Caminha por horas até o trabalho. Seus pés têm bolhas. Mas ela não sente dor. Chega no prédio, mas não entra em seu cubículo. As pessoas quase não a reconhecem. Passa determinada pelo corredor estreito e entra sem bater na sala proibida. A sala de seu chefe. O homem olha-a de cima abaixo com a boca aberta, sem pronunciar palavra. Então Lúcia senta-se em sua mesa, puxa sua gravata até ficar com o rosto colado ao dele e pronuncia com todas as sílabas: v-a-s-e-f-o-d-e-r!!!!!!!!!!!!!!! E sai da sala gargalhando e rebolando sua bunda.

Volta para a casa, carrega seu gato e só aí vai olhar para fora. Então lá, na janela agora sem cortinas do apartamento do 5º andar vê uma grande placa escrita em letras imensas ALUGA-SE.

Lúcia suspira longamente, abraça o bicho com carinho, passa a língua pelos lábios e é tomada por uma felicidade jamais sentida. Então sorri o melhor sorriso de toda a sua vida. O sorriso de EXISTIR.

(2004)

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