A Garganta da Serpente
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O homem-cesto

(António Bizarro)

Três dias tinham passado desde que McPherson dera entrada no hospital militar gravemente ferido. E nesse espaço de tempo, o jovem tenente deslizara intermitentemente de um estado de semiconsciência letárgica para uma espécie de sonho acordado, em que a sua imaginação corria livremente sem restrições ou entraves lógicos.

Nos momentos de lucidez que lhe eram concedidos pelos cocktails de morfina e sedativos administrados pela sua enfermeira, McPherson mantinha-se mais ou menos atento ao que o rodeava. Tinha o corpo dormente e mal conseguia mexer a cabeça, mas ainda assim não deixava de se sentir curioso em relação ao ambiente circundante.

O maior motivo de interesse era a constante e solícita presença da sua enfermeira, Isabel, uma jovem loira de olhos castanhos, cabelo apanhado na nuca num rabo-de-cavalo, impecável na sua farda branca, a sua chegada sempre anunciada pelo tilintar das chaves que trazia à cintura. A primeira coisa que viu ao recobrar os sentidos, foi o seu rosto ao mesmo tempo sorridente e triste, como se a sua boca e os seus olhos fossem regidos por duas entidades distintas.

A princípio, julgou que fosse a sua imaginação a pregar-lhe partidas, induzida pelas potentes drogas que lhe injectavam para minorar a sua dor, mas começou a notar que ela tratava os outros doentes da enfermaria com frieza e distância profissional, os seus queixumes imediatamente silenciados por frases ríspidas e cortantes, enquanto que com ele era terna e afectuosa. Tinha sempre um gesto de carinho para com ele, fosse dar-lhe um beijo na testa ou afagar-lhe o cabelo suavemente, sempre que ia ajeitar-lhe a almofada ou a roupa da cama, ou quando lhe dava a comida à boca.

Bastara a visão do seu rosto para McPherson se apaixonar perdidamente por ela; o desvelo que ela lhe devotava, diferenciando-o de todos os outros na mesma situação, só servia para tornar a sua paixão ainda mais assolapada.

As primeiras palavras que McPherson lhe dirigiu foram:

'Vou levar-te comigo para casa, porque tu tens tudo o que eu preciso'.

Isabel sorriu, acenando que sim com a cabeça.

'Assim como estás, toda vestida de branco'.


McPherson sentia-se resplandescente no seu uniforme de gala do Corpo dos Fuzileiros, todo branco com botões dourados, sabre à ilharga e dragonas brilhantes. O Corpo era a sua vida, a sua família, e 'Semper Fi' o seu credo; não tinha ninguém para quem voltar, o seu lar era onde quer que o destacassem.

Mas agora que a tinha nos seus braços, toda vestida de branco, nada disso tinha importância. Estavam num prado de ervas altas e verdejantes, um fofo tapete sob seus pés, salpicado aqui e ali por míriades de cores irradiadas por flores silvestres, as quais libertavam os mais doces aromas que alguma vez haviam aflorado o seu nariz, levados por uma valsa lenta, como dois planetas gémeos em torno de uma estrela feliz, cujo compasso era o ritmo dos seus corações batendo em uníssono.

'Vou levar-te comigo para casa, porque tu tens tudo o que eu preciso', sussurrou-lhe McPherson ao ouvido.

'Sim', disse Isabel, e mostrou-lhe o molho de chaves que costumava trazer sempre consigo.

McPherson sorriu-lhe de volta, e então sentiram-se cansados, um cansaço feliz, e de mãos dadas conduziram-se até à beira de um riacho de águas cristalinas que atravessava o prado em toda a sua extensão, sem deixar adivinhar onde começava nem onde acabava, as margens enfeitadas com as cores alegres de incontáveis libélulas.

Ela enfiou a mão em concha na água fresca, e passou-lha pela sua cara e pescoço. Sentiu-se revigorado, mais lúcido e alerta do que nunca, e imitou-lhe o gesto. Isabel soltou um gritinho entre o zangado e o divertido, de uma forma que McPherson nunca testemunhara antes, uma expressão de doçura e feminilidade simplesmente adorável.

Então pegou-a ao colo, e depositou-a com cuidado num leito suspenso feito de pétalas de rosa, árvores azuis derramando sobre eles a sua sombra benevolente. E ao deitá-la, murmurou ao seu ouvido:

'Vou levar-te comigo para casa, porque tu tens tudo o que eu preciso'.

E ela disse que sim, acenando com a cabeça, enlaçando-o com os braços, e beijando-o nos lábios. McPherson sentiu um sabor doce como nunca antes tinha sentido, e desejou prolongá-lo para sempre, desejou nunca mais respirar o ar fora daquela boca. E enquanto contemplava, embevecido, o rosto belo de sua amada, foi transportado para um outro lugar, um outro tempo, um súbito flashback dentro do seu devaneio do dia em que ficou gravemente ferido.


O tenente McPherson encabeçava uma coluna de Fuzileiros em Fallujah, no Iraque. A Força Aérea tinha bombardeado intensamente a cidade durante toda a noite, e a sua missão era fazer o reconhecimento do terreno e rechaçar as forças hostis que por lá ainda se encontrassem.

Prédios semidestruídos sangravam fumo negro por entre fendas estruturais expostas ao sol como chagas pustulentas, o solo pejado de destroços estalando sob as solas cardadas das botas dos soldados invasores. McPherson e os seus companheiros, caminhando de metralhadora à altura do peito, mantinham um olhar vigilante a qualquer movimento suspeito; por detrás de cada janela partida, de cada parapeito rachado, podia esconder-se um franco-atirador com munições suficientes para abatê-los um por um.

Avançaram cautelosamente por uma das avenidas de Fallujah, agora palco de um elaborado cenário de guerra, onde se ensaiavam os passos de um apocalipse a ser transmitido em directo para milhões de lares em todo o mundo, o derradeiro reality show.

McPherson sentiu o ar ser sugado dos seus pulmões ainda antes da explosão do morteiro se tornar audível. A metralhadora voou-lhe das mãos, o capacete foi projectado para longe da sua cabeça, e embateu violentamente com as costas no duro chão rochoso. Deixou de ver, e perdeu toda a sensibilidade nos braços e nas pernas. Ocorreu-lhe que ia ficar tetraplégico, confinado a uma cadeira de rodas para o resto da sua vida.

Não tem noção de quanto tempo ficou assim; em seu redor, tiros e explosões multiplicavam-se exponencialmente, gritos e ordens contraditórias a serem disparadas pelos seus companheiros, o seu nome mencionado várias vezes, até que uma sensação de leveza tomou conta de si, como numa experiência extracorporal, acompanhada pelo som das potentes pás do helicóptero em que estavam a evacuar os feridos, entre os quais ele se incluía.

Depois disso, um lento despertar, um vago sentimento de desconforto, e o rosto, aquele rosto perfeito encimado por uma testa alta e glabra, um olhar inteligente e compreensivo, pequenas veias azuis na têmpora direita, lábios que fariam qualquer homem cometer os actos mais irracionais.


O mesmo rosto que ele agora tinha à sua frente, naquele leito suspenso como por magia, feito de pétalas de rosa perfumadas, onde ele amou-a como nunca amou ninguém, e ela beijou-o como nunca ninguém o tinha beijado, livrando-o de toda a sua dor.

McPherson sentiu um formigueiro na planta dos pés, um formigueiro irritante que logo se alastrou para a barriga das pernas, passando pelos joelhos, subindo até às coxas. Transformou-se depois em dor intensa, como se as suas pernas estivessem a ser dilaceradas por lâminas incandescentes. Uma névoa cobriu os seus olhos, ou pelo menos ele assim o pensou, pois o rosto de Isabel ficou desfocado, como se McPherson tivesse passado a ver através dos olhos de um doente afectado por um glaucoma.

E a dor, oh!, aquela dor que não desistia de torná-lo agudamente consciente das suas duas pernas, como se estas estivessem a ser esmagadas por um lento e complicado sistema de compressão. O rosto de Isabel continuou a devanescer-se, a ficar translúcido até à transparência total, ele viu as pétalas de rosa deformadas pelo peso da sua cabeça, agora desaparecida, e McPherson deu por si na sua estreita cama na enfermaria do hospital militar, os seus olhos lutando para se habituar à obscuridade reinante.

O luar entrava pelas frinchas das persianas, revelando os contornos prateados da enfermaria, e a mesma sensação de dormência que tomara reféns os seus membros inferiores, transitara para a ponta dos seus dedos, subindo paulatinamente pelas suas mãos, pulsos, cotovelos, até aos ombros e omoplatas. McPherson soergueu a cabeça com muita dificuldade, para ver as suas pernas agonizantes, como que em chamas, e viu dois cotos desiguais envoltos em ligaduras brancas.

Não quis acreditar naquilo que viu, ou melhor, naquilo que os seus olhos se recusaram a mostrar-lhe, e tentou esticar os braços no sentido de tocar nas suas pernas ausentes, mas não conseguiu, os braços doíam-lhe agora tanto quanto as suas pernas, e então olhou para os braços e também não os viu, apenas os seus ombros salientes como fiordes orgulhosos. Não compreendia por que razão as suas pernas e os seus braços lhe doíam tanto se não os tinha onde era suposto tê-los, e começou a gritar e a chorar, maxilares cerrados, as veias do pescoço inchadas, latejando como que à beira da ruptura. Balançou-se de um lado para o outro na sua estreita cama, lamentando-se como um animal ferido, as lágrimas correndo abundantemente pela cara congestionada pelo choro e pelo esforço. Tanto se balançou que o seu tronco resvalou pelos lençóis, caindo no chão frio da enfermaria, um cheiro ténue a desinfectante próximo do seu nariz, dores-fantasma nos braços e nas pernas, enquanto os outros doentes, acordados pelos seus gritos, mandavam-no calar a boca e voltar a dormir. E no meio daquele paroxismo de dor e angústia que ameaçava dilacerá-lo por dentro, contorcendo-se no chão como uma barata a quem foram arrancadas as patas, McPherson reviveu os seus últimos dias, como se um filme estivesse a ser projectado directamente no seu cérebro, e sentiu uma raiva de si mesmo, uma humilhação levada a um grau extremo impossível de suportar, que o fizeram gritar ainda mais alto.

'Como é possível', pensou ele, 'como é possível que ela goste de mim, se sou metade de um homem, se não tenho braços nem pernas', os seus gritos formando palavras de desespero, 'quero morrer, quero morrer, alguém que me mate, por favor', ao mesmo tempo que não parava de pensar, 'ela não me ama, ela tem pena de mim, por isso ela me trata tão bem, por estar estropiado, devo ser o que está pior, eu devia ter morrido naquele dia', os outros feridos prometendo fazer-lhe a vontade e matá-lo se ele não se calasse e os deixasse dormir.

Isabel e uma outra enfermeira entraram de rompante na enfermaria, levantaram McPherson do chão e puseram-no de volta na cama. Como ele não parasse de gritar que queria morrer e não ficasse quieto, Isabel dirigiu-se ao fundo da enfermaria de chaves na mão, enquanto a sua colega tentava manietar McPherson. Isabel regressou com uma seringa hipodérmica com morfina, a qual espetou no ombro direito do jovem Fuzileiro, empurrando o êmbolo até ao fundo. De seguida sentou-se na beira da cama, tomando-o nos seus braços, e encostou-lhe a cabeça no seu regaço, beijando-o carinhosamente, limpando-lhe as lágrimas da cara.

Aos poucos, o choro converteu-se em soluços cada vez mais espaçados, até morrer por fim na garganta de McPherson, as pupilas dilatadas pelo opiáceo, o hálito quente de Isabel a envolvê-lo como uma nuvem de algodão-doce. Os seus olhos inflamados viram o rosto dela como pela primeira vez, e sentiu-se a flutuar para longe dali, nos braços da sua querida enfermeira, toda vestida de branco, para um sítio onde não havia dor, um leito suspenso feito de pétalas de rosa.

McPherson estava resplandescente no seu uniforme de gala do Corpo dos Fuzileiros, todo branco com botões dourados, sabre à ilharga e dragonas brilhantes, feliz por ter a sua amada nos seus braços.

'Vou levar-te comigo para casa, porque tu tens tudo o que eu preciso', disse McPherson.

'Sim', disse Isabel, acenando com sua cabeça adorável, pequenas veias azuis na têmpora direita, toda vestida de branco, e mostrou-lhe as chaves do armário dos medicamentos.

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