Três dias tinham passado desde que McPherson dera entrada no hospital
militar gravemente ferido. E nesse espaço de tempo, o jovem tenente deslizara
intermitentemente de um estado de semiconsciência letárgica para
uma espécie de sonho acordado, em que a sua imaginação
corria livremente sem restrições ou entraves lógicos.
Nos momentos de lucidez que lhe eram concedidos pelos cocktails de morfina e
sedativos administrados pela sua enfermeira, McPherson mantinha-se mais ou menos
atento ao que o rodeava. Tinha o corpo dormente e mal conseguia mexer a cabeça,
mas ainda assim não deixava de se sentir curioso em relação
ao ambiente circundante.
O maior motivo de interesse era a constante e solícita presença
da sua enfermeira, Isabel, uma jovem loira de olhos castanhos, cabelo apanhado
na nuca num rabo-de-cavalo, impecável na sua farda branca, a sua chegada
sempre anunciada pelo tilintar das chaves que trazia à cintura. A primeira
coisa que viu ao recobrar os sentidos, foi o seu rosto ao mesmo tempo sorridente
e triste, como se a sua boca e os seus olhos fossem regidos por duas entidades
distintas.
A princípio, julgou que fosse a sua imaginação a pregar-lhe
partidas, induzida pelas potentes drogas que lhe injectavam para minorar a sua
dor, mas começou a notar que ela tratava os outros doentes da enfermaria
com frieza e distância profissional, os seus queixumes imediatamente silenciados
por frases ríspidas e cortantes, enquanto que com ele era terna e afectuosa.
Tinha sempre um gesto de carinho para com ele, fosse dar-lhe um beijo na testa
ou afagar-lhe o cabelo suavemente, sempre que ia ajeitar-lhe a almofada ou a
roupa da cama, ou quando lhe dava a comida à boca.
Bastara a visão do seu rosto para McPherson se apaixonar perdidamente
por ela; o desvelo que ela lhe devotava, diferenciando-o de todos os outros
na mesma situação, só servia para tornar a sua paixão
ainda mais assolapada.
As primeiras palavras que McPherson lhe dirigiu foram:
'Vou levar-te comigo para casa, porque tu tens tudo o que eu preciso'.
Isabel sorriu, acenando que sim com a cabeça.
'Assim como estás, toda vestida de branco'.
McPherson sentia-se resplandescente no seu uniforme de gala do Corpo dos Fuzileiros,
todo branco com botões dourados, sabre à ilharga e dragonas brilhantes.
O Corpo era a sua vida, a sua família, e 'Semper Fi' o seu credo; não
tinha ninguém para quem voltar, o seu lar era onde quer que o destacassem.
Mas agora que a tinha nos seus braços, toda vestida de branco, nada disso
tinha importância. Estavam num prado de ervas altas e verdejantes, um
fofo tapete sob seus pés, salpicado aqui e ali por míriades de
cores irradiadas por flores silvestres, as quais libertavam os mais doces aromas
que alguma vez haviam aflorado o seu nariz, levados por uma valsa lenta, como
dois planetas gémeos em torno de uma estrela feliz, cujo compasso era
o ritmo dos seus corações batendo em uníssono.
'Vou levar-te comigo para casa, porque tu tens tudo o que eu preciso', sussurrou-lhe
McPherson ao ouvido.
'Sim', disse Isabel, e mostrou-lhe o molho de chaves que costumava trazer sempre
consigo.
McPherson sorriu-lhe de volta, e então sentiram-se cansados, um cansaço
feliz, e de mãos dadas conduziram-se até à beira de um
riacho de águas cristalinas que atravessava o prado em toda a sua extensão,
sem deixar adivinhar onde começava nem onde acabava, as margens enfeitadas
com as cores alegres de incontáveis libélulas.
Ela enfiou a mão em concha na água fresca, e passou-lha pela sua
cara e pescoço. Sentiu-se revigorado, mais lúcido e alerta do
que nunca, e imitou-lhe o gesto. Isabel soltou um gritinho entre o zangado e
o divertido, de uma forma que McPherson nunca testemunhara antes, uma expressão
de doçura e feminilidade simplesmente adorável.
Então pegou-a ao colo, e depositou-a com cuidado num leito suspenso feito
de pétalas de rosa, árvores azuis derramando sobre eles a sua
sombra benevolente. E ao deitá-la, murmurou ao seu ouvido:
'Vou levar-te comigo para casa, porque tu tens tudo o que eu preciso'.
E ela disse que sim, acenando com a cabeça, enlaçando-o com os
braços, e beijando-o nos lábios. McPherson sentiu um sabor doce
como nunca antes tinha sentido, e desejou prolongá-lo para sempre, desejou
nunca mais respirar o ar fora daquela boca. E enquanto contemplava, embevecido,
o rosto belo de sua amada, foi transportado para um outro lugar, um outro tempo,
um súbito flashback dentro do seu devaneio do dia em que ficou gravemente
ferido.
O tenente McPherson encabeçava uma coluna de Fuzileiros em Fallujah,
no Iraque. A Força Aérea tinha bombardeado intensamente a cidade
durante toda a noite, e a sua missão era fazer o reconhecimento do terreno
e rechaçar as forças hostis que por lá ainda se encontrassem.
Prédios semidestruídos sangravam fumo negro por entre fendas
estruturais expostas ao sol como chagas pustulentas, o solo pejado de destroços
estalando sob as solas cardadas das botas dos soldados invasores. McPherson
e os seus companheiros, caminhando de metralhadora à altura do peito,
mantinham um olhar vigilante a qualquer movimento suspeito; por detrás
de cada janela partida, de cada parapeito rachado, podia esconder-se um franco-atirador
com munições suficientes para abatê-los um por um.
Avançaram cautelosamente por uma das avenidas de Fallujah, agora palco
de um elaborado cenário de guerra, onde se ensaiavam os passos de um
apocalipse a ser transmitido em directo para milhões de lares em todo
o mundo, o derradeiro reality show.
McPherson sentiu o ar ser sugado dos seus pulmões ainda antes da explosão
do morteiro se tornar audível. A metralhadora voou-lhe das mãos,
o capacete foi projectado para longe da sua cabeça, e embateu violentamente
com as costas no duro chão rochoso. Deixou de ver, e perdeu toda a sensibilidade
nos braços e nas pernas. Ocorreu-lhe que ia ficar tetraplégico,
confinado a uma cadeira de rodas para o resto da sua vida.
Não tem noção de quanto tempo ficou assim; em seu redor,
tiros e explosões multiplicavam-se exponencialmente, gritos e ordens
contraditórias a serem disparadas pelos seus companheiros, o seu nome
mencionado várias vezes, até que uma sensação de
leveza tomou conta de si, como numa experiência extracorporal, acompanhada
pelo som das potentes pás do helicóptero em que estavam a evacuar
os feridos, entre os quais ele se incluía.
Depois disso, um lento despertar, um vago sentimento de desconforto, e o rosto,
aquele rosto perfeito encimado por uma testa alta e glabra, um olhar inteligente
e compreensivo, pequenas veias azuis na têmpora direita, lábios
que fariam qualquer homem cometer os actos mais irracionais.
O mesmo rosto que ele agora tinha à sua frente, naquele leito suspenso
como por magia, feito de pétalas de rosa perfumadas, onde ele amou-a
como nunca amou ninguém, e ela beijou-o como nunca ninguém o tinha
beijado, livrando-o de toda a sua dor.
McPherson sentiu um formigueiro na planta dos pés, um formigueiro irritante
que logo se alastrou para a barriga das pernas, passando pelos joelhos, subindo
até às coxas. Transformou-se depois em dor intensa, como se as
suas pernas estivessem a ser dilaceradas por lâminas incandescentes. Uma
névoa cobriu os seus olhos, ou pelo menos ele assim o pensou, pois o
rosto de Isabel ficou desfocado, como se McPherson tivesse passado a ver através
dos olhos de um doente afectado por um glaucoma.
E a dor, oh!, aquela dor que não desistia de torná-lo agudamente
consciente das suas duas pernas, como se estas estivessem a ser esmagadas por
um lento e complicado sistema de compressão. O rosto de Isabel continuou
a devanescer-se, a ficar translúcido até à transparência
total, ele viu as pétalas de rosa deformadas pelo peso da sua cabeça,
agora desaparecida, e McPherson deu por si na sua estreita cama na enfermaria
do hospital militar, os seus olhos lutando para se habituar à obscuridade
reinante.
O luar entrava pelas frinchas das persianas, revelando os contornos prateados
da enfermaria, e a mesma sensação de dormência que tomara
reféns os seus membros inferiores, transitara para a ponta dos seus dedos,
subindo paulatinamente pelas suas mãos, pulsos, cotovelos, até
aos ombros e omoplatas. McPherson soergueu a cabeça com muita dificuldade,
para ver as suas pernas agonizantes, como que em chamas, e viu dois cotos desiguais
envoltos em ligaduras brancas.
Não quis acreditar naquilo que viu, ou melhor, naquilo que os seus olhos
se recusaram a mostrar-lhe, e tentou esticar os braços no sentido de
tocar nas suas pernas ausentes, mas não conseguiu, os braços doíam-lhe
agora tanto quanto as suas pernas, e então olhou para os braços
e também não os viu, apenas os seus ombros salientes como fiordes
orgulhosos. Não compreendia por que razão as suas pernas e os
seus braços lhe doíam tanto se não os tinha onde era suposto
tê-los, e começou a gritar e a chorar, maxilares cerrados, as veias
do pescoço inchadas, latejando como que à beira da ruptura. Balançou-se
de um lado para o outro na sua estreita cama, lamentando-se como um animal ferido,
as lágrimas correndo abundantemente pela cara congestionada pelo choro
e pelo esforço. Tanto se balançou que o seu tronco resvalou pelos
lençóis, caindo no chão frio da enfermaria, um cheiro ténue
a desinfectante próximo do seu nariz, dores-fantasma nos braços
e nas pernas, enquanto os outros doentes, acordados pelos seus gritos, mandavam-no
calar a boca e voltar a dormir. E no meio daquele paroxismo de dor e angústia
que ameaçava dilacerá-lo por dentro, contorcendo-se no chão
como uma barata a quem foram arrancadas as patas, McPherson reviveu os seus
últimos dias, como se um filme estivesse a ser projectado directamente
no seu cérebro, e sentiu uma raiva de si mesmo, uma humilhação
levada a um grau extremo impossível de suportar, que o fizeram gritar
ainda mais alto.
'Como é possível', pensou ele, 'como é possível
que ela goste de mim, se sou metade de um homem, se não tenho braços
nem pernas', os seus gritos formando palavras de desespero, 'quero morrer, quero
morrer, alguém que me mate, por favor', ao mesmo tempo que não
parava de pensar, 'ela não me ama, ela tem pena de mim, por isso ela
me trata tão bem, por estar estropiado, devo ser o que está pior,
eu devia ter morrido naquele dia', os outros feridos prometendo fazer-lhe a
vontade e matá-lo se ele não se calasse e os deixasse dormir.
Isabel e uma outra enfermeira entraram de rompante na enfermaria, levantaram
McPherson do chão e puseram-no de volta na cama. Como ele não
parasse de gritar que queria morrer e não ficasse quieto, Isabel dirigiu-se
ao fundo da enfermaria de chaves na mão, enquanto a sua colega tentava
manietar McPherson. Isabel regressou com uma seringa hipodérmica com
morfina, a qual espetou no ombro direito do jovem Fuzileiro, empurrando o êmbolo
até ao fundo. De seguida sentou-se na beira da cama, tomando-o nos seus
braços, e encostou-lhe a cabeça no seu regaço, beijando-o
carinhosamente, limpando-lhe as lágrimas da cara.
Aos poucos, o choro converteu-se em soluços cada vez mais espaçados,
até morrer por fim na garganta de McPherson, as pupilas dilatadas pelo
opiáceo, o hálito quente de Isabel a envolvê-lo como uma
nuvem de algodão-doce. Os seus olhos inflamados viram o rosto dela como
pela primeira vez, e sentiu-se a flutuar para longe dali, nos braços
da sua querida enfermeira, toda vestida de branco, para um sítio onde
não havia dor, um leito suspenso feito de pétalas de rosa.
McPherson estava resplandescente no seu uniforme de gala do Corpo dos Fuzileiros,
todo branco com botões dourados, sabre à ilharga e dragonas brilhantes,
feliz por ter a sua amada nos seus braços.
'Vou levar-te comigo para casa, porque tu tens tudo o que eu preciso', disse
McPherson.
'Sim', disse Isabel, acenando com sua cabeça adorável, pequenas
veias azuis na têmpora direita, toda vestida de branco, e mostrou-lhe
as chaves do armário dos medicamentos.