A Garganta da Serpente
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Sacred parts

(António Bizarro)

'Agora olha por cima do ombro, e faz um ar petulante', dizia-lhe o fotógrafo, ajoelhando-se numa tentativa de captá-la no ângulo desejado.
Helena obedecia prontamente a todas as instruções, com um profissionalismo muitas vezes elogiado, e que lhe valera a simpatia e o respeito de todos quantos haviam trabalhado com ela. Os seus olhos mantinham-se impassíveis perante os sucessivos clarões.
Ainda era jovem, cronologicamente falando, mas no seu ramo era já considerada uma veterana. Não bebia, não fumava, não consumia drogas, comia normalmente, e mantinha-se em forma frequentando o ginásio três vezes por semana. Era o que lhe bastava para ter um corpo perfeito. Fora abençoada com uma boa herança genética e uma educação cuidada. Saía pouco à noite, deitava-se cedo e cedo se levantava.
Abraçara a profissão de modelo a convite de uma amiga da família que tinha uma agência, com apenas quinze anos. Fora sempre acompanhada pela mãe até se tornar maior de idade, altura em que foi viver sozinha e ingressou na Universidade para cursar Psicologia. Ambicionava trabalhar com crianças. A sua dislexia fizera-a sofrer muito durante a infância, e isso tornara-a sensível aos problemas das crianças, a dislexia em particular, mas também todos os outros.
Conseguira conciliar os estudos com o trabalho, e planeava abandonar a profissão assim que estivesse apta a exercer a sua verdadeira vocação.
Detestava que pensassem que era apenas uma cara bonita sem nada na cabeça, mas recusava-se a dar entrevistas, o que fazia com que fosse vista quase como uma figura mitológica, uma deusa inacessível a quem nunca tinham escutado a voz. Os poucos amigos que tinha vinham do tempo do liceu, ou então eram colegas da Universidade. Não se dava com pessoas do mundo da moda, apenas a nível profissional.
O fotógrafo deu a sessão por terminada, e enquanto se vestia para se ir embora, apercebeu-se de que ainda não parara de pensar nele.

Paul Banks herdara uma considerável quantia de dinheiro aquando da morte dos seus pais, um rico capitão da indústria e a sua filantrópica esposa. Nunca revelara inclinação para nada em especial, levando mesmo os seus pais a pensar que sofria de algum tipo de atraso, e apesar de lhe ter sido diagnosticado Síndroma de Asperger, ficaram aliviados por saber que não havia nada de errado com ele.
Até que um dia uma mulher mais velha o iniciou nos prazeres da carne e nos prazeres da leitura. Tornou-se um leitor ávido e um amante voraz. Inscreveu-se em Literatura Moderna, e começou a frequentar os círculos literários da cidade, levando uma vida boémia e despreocupada. O seu pai bem queria que ele tomasse o seu lugar na condução dos negócios, mas isso não o seduzia.
Publicou o seu primeiro livro com a ajuda de um amigo. Mais tarde, o seu pródromo foi reeditado por uma grande editora, chegando a ganhar um prémio da crítica. Continuou a publicar, maioritariamente livros de contos e um romance pelo meio. Obteve algum reconhecimento aqui e ali, sem nunca se ter tornado propriamente um escritor popular. Aliás, ele até preferia assim. Escrevia por gosto, não por dinheiro, embora apreciasse o efeito que o seu relativo sucesso tinha junto de algumas mulheres.
Mas ela não parecia muito impressionada com ele.

Conheceram-se numa palestra na Universidade onde Helena estudava, para qual ele fora convidado.
Uma das suas histórias mais conhecidas era 'Ivan, o Terrível'. Era sobre uma criança, Ivan, que todos os dias era alvo de agressões e torturas várias na escola, por parte de uma criança mais velha; roubava-lhe o dinheiro do almoço, atirava-lhe a mochila para dentro do caixote do lixo, batia-lhe, apanhava-o na casa-de-banho e enfiava-lhe a cabeça na sanita, chegando mesmo a ameaçá-lo com uma faca certa vez em que Ivan se queixou a um professor.
Contou aos pais o que se passava, mas o seu progenitor, um self-made man duro e implacável, limitou-se a lamentar que o filho fosse um fracote que servia de saco de boxe e não fazia nada para se defender. Depois de muito penar, Ivan acabou por reflectir seriamente no assunto, tão seriamente quanto os seus onze anos lhe permitiam, e engendrou um plano que levou a cabo com uma frieza inusitada para a sua idade. Deixou-se seguir até à casa-de-banho pelo seu perseguidor, e antes que ele lhe pudesse fazer alguma coisa, Ivan arremessou a cabeça contra o espelho com todas as forças do seu corpo pequeno e franzino. O barulho do vidro a partir-se atraiu professores, funcionários e alunos. Ao abrirem a porta da casa-de-banho, viram Ivan de joelhos perante o seu agressor, sangrando pela cara abaixo, pedindo-lhe por favor que não o matasse, gritando-lhes que tivessem cuidado ao se aproximarem porque o outro tinha uma faca, o que se provou ser verdade após o terem manietado. Ivan ficou com algumas cicatrizes, uma delas projectava-se um pouquinho para lá da linha do cabelo, e a vítima do seu plano foi mandada para um reformatório.
A palestra centrava-se na discussão da violência nas escolas, e alguém no corpo docente lembrara-se de Paul Banks e do seu pequeno Ivan, achando que ele teria algo de importante a acrescentar. Infelizmente, Paul Banks estava demasiado bêbado para poder fazer mais do que coçar a testa, enquanto balbuciava considerações incongruentes acerca de Columbine e a crise no Médio Oriente.
Perto do fim, durante as interpelações do auditório, uma mão ergueu-se no ar. A mão pertencia a uma mulher alta e loura, de olhos azuis e intensos, lábios carmim e voz de veludo.
'Sr. Banks, a sua história, 'Ivan, o Terrível'… é verdade que é autobiográfica?'
Paul parou de coçar a testa, franziu os olhos para observar melhor a sua interlocutora, mas o álcool não lhe permitia distinguir mais do que uma silhueta esguia. Um silêncio estranhamente pesado abateu-se sobre a sala. Era como se esperassem a resposta do escritor, e não pudessem voltar a respirar enquanto ele não se manifestasse.

'Quem é que te disse que a minha história era autobiográfica?'
'Foste tu', respondeu ela, soerguendo-se da cadeira.
Com a mão esquerda, desviou-lhe o cabelo da testa, expondo-lhe a cicatriz sob a luz mortiça do café. Ele sentiu o calor do seu toque, e viu-se a si próprio mentalmente, lamentando amargamente ter bebido naquele dia; devia estar com um aspecto terrível.
'Costumavas magoar-te muito, quando eras criança?'
'Não, apenas fiz o que tinha a fazer para sobreviver. Limitei-me a utilizar a minha inteligência'.
'Muito provavelmente deste cabo da vida ao outro miúdo. Hoje em dia deve ser um criminoso de carreira'.
'Talvez não. Talvez tenha aprendido a lição. Às vezes, ponho-me a imaginar o que lhe terá acontecido; gosto de imaginá-lo a aprender uma profissão no reformatório, a sair de lá, a arranjar um emprego, a casar-se, a ter dois filhos. Actualmente, é um honesto chefe de família que faz tudo para que os filhos não cometam os mesmos erros que ele'.
'Hum… um passivo-agressivo com compaixão pelas suas vítimas…'
'Isso não é verdade… eu não sinto compaixão por ninguém'.
Paul não tinha bem a certeza se tinha sido ele a abordá-la no parque de estacionamento do campus, ou o contrário. De qualquer maneira, era-lhe indiferente. Ao se aperceber de que Helena se estava a sentir desconfortável por estar pasmado a olhar para ela, Paul disse:
'Pareces saída da capa de uma revista…'

'Havia uma seita russa, cujos seguidores acreditavam que o pénis simbolizava a serpente e os seios o fruto proibido.'
'Sim, e depois?'
'Então os homens amputavam os seus pénis e as mulheres os seios… Para se distanciarem do pecado original.'
'As coisas que tu sabes…'
'Tens alguma coisa que se beba?', perguntou ele, levantando-se da cama, arrastando os pés em direcção à cozinha.
'Água, leite…'
'Com álcool!'
'… sumo de laranja', continuou ela, fingindo não ter ouvido, 'sumo de acerola…'
Áce-quê?', gritou Paul, abrindo a porta do frigorifico.
'Amanhã vou para Londres', disse Helena, a cara encostada à ombreira da porta da cozinha.
'Quanto tempo vais ficar lá?'
'Uma semana.'
'Eu podia ir contigo.'
'É melhor não. Vou passar a maior parte do tempo a trabalhar, e o pouco tempo que tiver livre vai ser preenchido com estudo intensivo. Tenho exames daqui a um mês.'
'Não sei como vou sobreviver uma semana sem ti', disse Paul, abraçando-a.
'Tenho a certeza de que vais arranjar alguma coisa com que te entreteres.'
Paul julgou detectar uma nota de ironia no modo como Helena disse aquilo.
'O que queres dizer com isso?'
'Nada, não sei… não tens nenhum livro para escrever?'
'Não escrevo desde que te conheci, nem uma linha…'
'Lamento imenso…'
'Não, não lamentes. É sinal de que estou a conseguir escapar da minha cabeça.'
Enfiou a mão no bolso do casaco e tirou um cigarro.
'Não devias fumar, Paul, pelo menos assim tanto. E também não te fazia mal nenhum deixares de beber. Não percebo por que o fazes…'
'Talvez porque me odeio e queira morrer.'
'Não digas isso nem a brincar.'
'Vou tentar deixar de fumar e de beber, prometo-te.'
'Não te quero obrigar a fazer nada que seja contra a tua vontade.'
'Eu quero fazer isto, por ti, meu amor… quero ser melhor…'
Helena sorriu tristemente, e beijou-o na face, como a mãe de uma criança problemática.

Eram três da tarde, e Paul Banks estava na mesa que habitualmente ocupava no café não muito longe da sua casa. Lia o jornal, e tinha um bule de chá à frente, uma chávena fumegante. Fumava o seu terceiro cigarro do dia. Normalmente seria o décimo-quinto ou décimo-sexto, mas Paul não estava no seu estado normal. Não bebia álcool há três dias, desde que Helena partira para Londres. Curiosamente, sentia mais dificuldade em ver-se livre da dependência da nicotina do que da depedência do álcool. Agora tinha uma nova dependência, uma dependência que em vez de o conduzir à degradação total, estava a torná-lo um homem melhor. Um homem de uma só mulher.
'Não acredito nos meus olhos… Paul Banks a beber chá… oh, e consigo ver o fundo do cinzeiro. Estás doente, meu querido?'
'Olá, Vanessa', disse Paul, levantando os olhos do jornal.
Paul e Vanessa haviam tido uma relação amorosa fugaz, que depois evoluíra rapidamente para uma amizade sincera, mais do género da que existe entre dois homens do que entre um homem e uma mulher. Olhou para ela, e de súbito compreendeu que não podia continuar a ser seu amigo.
'Finalmente aconteceu, Vanessa, aquilo que tanto eu como tu julgávamos impossível.'
'Não acredito', disse ela, sentando-se.
'Acredita que é verdade. E tu sabes o que isso significa…'
'Queres dizer…?'
Ela sabia o que aquilo significava. Levantou-se, alisou a saia, e antes de se ir embora, disse:
'Paul, nós somos amigos há muito tempo, conheço-te melhor do que ninguém. Quando voltares ao normal, telefona-me. Saímos, bebemos uns copos, e continuaremos a ser bons amigos, está bem?'
Inclinou-se sobre ele e beijou-o nos lábios.
'Adeus, Vanessa…'

Paul foi buscar Helena ao aeroporto uma semana depois de se terem separado pela primeira vez desde que estavam juntos. Sentiu-se invadido por uma onda de euforia quando voltou a tê-la nos braços. Ela estava cansada, mas parecia contente por vê-lo.
'Estou farta, estou farta desta vida…'
'Porquê, o que aconteceu?'
'Nada de especial, é que… é um acumular de coisas que me chateiam, e eu… Tenho dinheiro suficiente para deixar de trabalhar e dedicar-me aos estudos, e se calhar é o que vou fazer. Quero afastar-me do álcool, das drogas, daquele ambiente de mercado de carne. Sinto-me velha e gorda…'
'Não digas disparates…'
'É verdade, as modelos que trabalham comigo são cada vez mais novas e mais magras, todas obcecadas em perder peso e contar calorias, metade delas provavelmente sofrem de dismorfia… já não aguento mais, Paul…'
Em casa de Helena, Paul ajudou-a a desfazer as malas, pôs a roupa na máquina de lavar, depois fez chá para os dois.
'Não bebo há seis dias', disse Paul, um tudo ou nada orgulhoso.
'Isso é óptimo', disse ela, a mão no seu ombro. 'E como é que te sentes?'
'Terrivelmente mal. O mundo é uma merda quando estamos sóbrios. Suponho que vou ter que me habituar…'
'Vais conseguir, meu amor, eu sei que vais.'
'Não serei capaz sem ti… De qualquer modo, mantive-me ocupado. Voltei a escrever. Estou a trabalhar num conjunto de ensaios e a pensar em publicá-los. O mundo segundo Paul Banks, uma treta desse género.'
'Ainda bem, já estava a ficar preocupada. Não quero ser uma má influência na tua vida.'
'Não sejas tola', disse ele, sorrindo.
Notando o seu ar de cansaço, conduziu-a até à cama, e fê-la deitar-se. Beijou-a na testa e disse:
'Diz olá aos anjos, meu amor…'

Algumas semanas depois, Helena e Paul deixaram de se ver com tanta frequência. Começou a época de exames, e ela apenas saía de casa para ir à Universidade, para logo voltar aos livros.
Apesar disso, Paul julgar notar uma mudança de atitude por parte dela, uma certa frieza incaracterística que ele achou muito estranha. Chegou mesmo, certa vez que lhe telefonou, a ser ríspida com ele, censurando-o por estar sempre a interromper-lhe o estudo. Resolveu deixá-la em paz enquanto durassem os exames, mas não conseguia deixar de pensar que havia algo mais por detrás daquele estado de coisas.

A vida continuou, sem alterações significativas. Helena continuava em exames, e Paul estava embrenhado na edição do seu pequeno livro de ensaios.
Era um opúsculo que provavelmente iria interessar mais os seus admiradores acérrimos, do que talvez a crítica. Continha algumas memórias, sinopses de alguns dos seus contos, uns publicados, outros inéditos, e a sua visão acerca de assuntos tais como a religião, a vida extraterrestre, o aborto, o racismo, a homofobia, a literatura e a música.
Telefonou-lhe uma noite, e ouviu a sua voz pré-gravada no atendedor de chamadas. Tentou ligar-lhe para o telemóvel, mas estava desligado. No dia seguinte, foi à Universidade, e um dos seus professores informou-o que Helena mencionara que iria estar fora do país pelo menos duas semanas.
Um sentimento de derrota deixou-o deprimido. Nos dias que se seguiram procurou conforto na garrafa, mas o álcool só ajudava a amplificar a sua depressão, e, pior ainda, deixava-o paranóico e pré-suicida.
Um milhão de conjecturas assaltavam-no durante o sono, impedindo-o de dormir, e até durante o dia, fazendo-o comportar-se erraticamente. Alguma coisa fizera Helena afastar-se dele. Teria sido alguma coisa que tinha feito? Não sabia. Se fosse esse caso, achava que tinha o direito de se defender e de corrigir o mal que porventura tivesse feito.
Ao mesmo tempo que reflectia sobre a sua relação com Helena, Paul autoanalisava-se, tirando desse exercício conclusões bastante surpreendentes. Estava mesmo apaixonado por aquela mulher. Não mentira a Vanessa quando lhe dissera que o impossível acontecera; conhecera a mulher que iria fazer dele um homem honesto e sóbrio. Nunca por um momento que fosse, nenhuma mulher o fizera sentir isso.
O problema agora era fazer Helena compreender que o seu amor era verdadeiro. Talvez ela julgasse que ele só se sentia atraído sexualmente por ela, o que, sendo Helena uma mulher tão bonita, devia ser o caso da maioria dos homens com quem ela se relacionara.
Começou a tomar comprimidos para dormir, e se o ajudavam à noite, de dia deixavam-no grogue e apático. Fê-lo lembrar-se de uma história que escrevera na sua juventude, 'Uma Vida Melhor Através da Química'.
Por fim, decidiu que ia manter-se limpo e concentrado no trabalho. Pelo menos até Helena regressar.

Duas semanas haviam passado, e Helena devia estar prestes a voltar. Por isso, esperou por ela. Rondou o prédio dela, dia e noite, até que a viu sair de um táxi. Por um segundo pareceu surpreendida, mas logo assumiu a expressão de quem já estava à espera daquilo.
'Olá, Paul'.
'Olá, Helena.'
'Temos que conversar.'
'Acho que sim.'
Ajudou-a com as malas, e não disseram nada até entrarem na casa dela.
'Estiveste onde desta vez?
'Milão'.
'Porquê, Helena? Por que fugiste de mim?'
'Tive que me afastar de ti para poder descobrir o que realmente sinto por ti. E descobri que não posso viver mais contigo.'
'Porquê? O que foi que eu fiz?'
'Tu sabes.'
'Não sei, não sei mesmo…'
'Quando estive em Londres… houve uma amiga minha que te viu, num café ao pé da tua casa, a beijar uma tal de Vanessa…'
'Foi por isso?'
Paul não acreditava no que estava a ouvir.
'Helena, não compreendes? Esse beijo… esse beijo foi um beijo de despedida, não vejo a Vanessa desde então. Cortei com tudo o que me prendia ao passado, para poder dedicar-me a ti a cem por cento, a duzentos, a mil por cento… Já não bebo, fumo dois ou três cigarros por dia, tomo banho com mais frequência…'
'Olha, Paul, eu conheci muitos homens como tu. E os homens como tu não mudam assim tão facilmente.'
'Homens como eu…?'
'Homens com a tua reputação.'
'Até homens com a minha reputação podem mudar… e não tem sido assim tão fácil. Mas eu mudei. E posso mudar ainda mais… apenas preciso que acredites em mim, e não na minha reputação…'
'Desculpa, Paul, gostava de poder acreditar em ti… mas não consigo…'
Lágrimas afloraram aos olhos de Helena. Paul quis abraçá-la, mas ela desviou-se.
'Tenho muita pena', disse ela, com a voz embargada pelo choro. 'A nossa relação não se pode basear apenas em sexo. É preciso haver mais do que isso, muito mais do que isso. É preciso haver confiança, e eu não posso confiar em ti, Paul, lamento…'
'Mas tu podes confiar em mim, Helena, tens que me dar o benefício da dúvida. Eu seria incapaz de fazer alguma coisa para te magoar… Não é justo, sabes? Eu também tenho sentimentos. Merecia mais do que isto. Devias ter-me dado uma oportunidade. Em vez disso, julgaste-me e condenaste-me, sem que me pudesse defender… Eu amo-te, Helena, eu amo-te muito, e por pior que seja a minha reputação, quero que acredites que eu nunca isso disse a nenhuma mulher. O sexo já não é importante para mim, apenas tu és importante, eu podia amar-te mesmo que não houvesse sexo entre nós... mesmo se fôssemos assexuados…'
'Mas não somos assexuados, Paul, e eu não te posso exigir uma coisa dessas. É por isso que acho que não devemos voltar a ver-nos, nunca mais…'
'Helena…'
'Paul, é melhor ires-te embora. Estou cansada, e amanhã tenho que acordar cedo, e ainda tenho que desfazer as malas, por isso…'
Helena abriu a porta, e deixou o caminho livre para Paul, evitando sempre olhá-lo nos olhos. Ele ficou parado no limiar da porta, como que a querer adiar o inevitável. Por fim, ela olhou para ele.
'Adeus, Paul, desejo-te a melhor das sortes.'
'Helena…'
'Adeus, Paul', repetiu ela, e beijou-o na face.
Depois de Paul sair, Helena enfiou-se no duche. A água caiu-lhe sobre o rosto, e lavou as lágrimas que não tinham parado de correr desde que ele se fora embora.

Por volta das duas da manhã dessa mesma noite, Helena dormia profundamente depois da sua viagem de regresso desde Milão.
O seu confronto com Paul fora-lhe muito doloroso, mas depois do sucedido, sentira-se aliviada. Ficara contente de saber o que a esperava antes do seu envolvimento com Paul se ter tornado mais sério. Já fora magoada antes. Era tempo de se proteger.
A campaínha arrancou-a do seu sono sem sonhos. Estremunhada, sentou-se na borda da cama, os pés no chão frio do quarto, perguntando-se a si mesma quem seria àquela hora da noite. O som insistente da campaínha começava a bulir-lhe com os nervos, e a meio do caminho para ir ver quem era, lembrou-se de Paul. Agora batiam à porta, com a mesma insistência, e de súbito sentiu-se assustada. Espreitou pelo olho-de-vidro e viu Paul, o cabelo desgrenhado, segurando algo com a mão direita, e batendo à porta com a esquerda.
'Paul, o que queres a esta hora? São duas da manhã, vai para casa…'
'Quero dar-te uma coisa.'
'Oh, Paul…'
Helena abriu a porta, e viu Paul no estado mais lastimável; tinha uma caixa de cartão na mão, e manchas de sangue por toda a roupa. O cheiro a álcool fê-la desviar o rosto de nojo.
'Oh, Paul, o que foste tu fazer? Estás bêbado… e o sangue… espero que não tenhas tentado nenhuma estupidez…'
'Não, não… eu trouxe-te uma coisa, uma prenda, não, uma prenda não, uma prova…'
Helena pegou-o pelo braço, e fê-lo entrar em casa. Levou-o para a cozinha, e obrigou-o a sentar-se numa cadeira. Foi à casa-de-banho em busca do estojo de primeiros-socorros, enquanto Paul continuava a balbuciar incoerentemente.
'Espero que não te tenhas magoado seriamente, Paul, senão tenho que te levar para o hospital…'
'Eu amo-te, e trouxe-te a prova, o sexo não significa nada para mim, porque tu és feita de luz, e eu quero ser como tu…'
'Deixa-me ver onde te magoaste, Paul, levanta a camisa', disse ela, pousando o estojo de primeiros-socorros sobre a mesa da cozinha.
'Está aqui… a prova…', disse ele, pôndo a caixa de cartão nas mãos dela. 'Abre-a, Helena, abre-a, e verás que eu estava a dizer a verdade… nada mais do que a verdade…'
Helena segurou na caixa com as duas mãos, interrogando-se acerca do seu conteúdo, temendo saber o que estava lá dentro. Olhou para Paul, e viu o seu rosto branco como a cal. A seus pés formava-se uma poça de sangue cada vez maior.
'Tenho que te levar para o hospital, Paul, e depressa…'
'Não quero… não quero…'
A voz de Paul era agora apenas um murmúrio quase inaudível. Acabou por se calar, e a sua cabeça pendeu para a frente, batendo na mesa com estrondo. Helena assustou-se com o barulho, e largou a caixa de cartão.
'Paul… Paul…!?'
Helena levantou-lhe a cara, e ao ver-lhe os olhos revirados, sentiu um arrepio na espinha. Largou-o de qualquer maneira, as mãos a tremer, o coração a bater-lhe no peito descompassadamente. Levou a mão à cara, sentindo-a contorcer-se num trejeito de dor, e nesse momento teve a certeza de que Paul Banks estava morto. Fizera algo de muito horrível a si mesmo, e esvaíra-se em sangue. Viu a caixa de cartão no chão a seus pés, e um paroxismo de horror tomou conta de si. Caiu sobre os joelhos, tolhida por soluços convulsivos, olhando alternadamente de Paul para a caixa e da caixa para Paul. Rastejou na direcção da caixa, pegou nela, e antes mesmo de remover a tampa, Helena já sabia o que estava no seu interior…

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