A Garganta da Serpente
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Pés Frios

(Anjo Caim)

Ela vai devagar à cama da senhora que dorme no quarto ao lado. Esperou cerca de duas horas para ouvir o ronco da mulher e ter certeza absoluta de que esta havia dormido. Esperava que aquele trabalho todo valesse à pena e que não fosse mais uma de suas ideias bobas de que o mundo vivia em conspiração. De alguma forma sabia que com a velha era diferente. Muito diferente.

Fazia sete anos que morava naquele casarão com a mulher. Foi a única pessoa que a acolheu após a morte prematura dos pais. Ela tinha nove anos, havia feito aniversário dois meses antes da morte dos dois na Br 222, na saída da cidade de Fortaleza, em uma batida de frente com outro carro. Seu pai estava bêbedo e a mãe devia estar chorando. Os dois atravessaram o vidro da frente. O rapaz do outro carro se salvou graças ao cinto de segurança, mas não ficou ileso do acidente. Uma cicatriz na testa e um braço quebrado foram o resultado. "Podia ter sido pior.", afirmou o jovem após ter visto a garota chorando no colo do policial. Mesmo assim, não ficou abatida. Já faz algum tempo que esqueceu o porque de estar chorando naquele dia. Aceita ser pela morte dos pais, mas duvida muito que tenha sido esta a real razão.

Olhou de relance para os remédios e vitaminas na cabeceira da cama. "Pepsamar, Cewin, Atrovent, Biotônico Fontoura... Ela nunca sabe bem para que servem, mas toma do mesmo jeito. Eita, velha estranha!", diz para si mesma em voz baixa, tentando não acordar a senhora. Apesar de todo o tempo que viveu com ela, a jovem ainda não entende certos fatos que acontecem naquela casa e certos hábitos anormais da velha senhora.

Um vento frio entra pela fresta da janela e a deixa arrepiada por um instante. Quase pensa em sair do quarto. Impede a si mesma. Evita ser dominada pelo medo. Continua, então, a observar o quarto: paredes mofadas, janelas quebradas, fotos tampando buracos, móveis de madeira pura e um ar inexplicável. No entanto, nenhuma poeira, nem vestígios de sujeira. Tudo parecia estar brilhando como se houvesse sido limpo a pouco. Por isso, o ar do quarto era surpreendente. Era rançoso e fétido, como se houvesse algo podre ali há muito tempo. Totalmente diferente do resto da casa, que perfumava a jasmim, sendo quase pura.

Novamente é tocada pela brisa. "Regiões litorâneas possuem esse problema", pensa, "nunca se sabe quando você pode ser surpreendida.". O odor do quarto ainda era forte e tentava mantê-la distante da senhora (pois se tornava mais penetrante cada vez que a jovem se aproximava do preguiçoso corpo na cama), mas sua persistência e determinação eram indestrutíveis. Ela chega bem próxima a mulher, quase tocando seu rosto com o dela. Assusta-se um instante ao perceber que a velha perfumava a jasmim como os outros cômodos, mantendo-se em contraste com o ar respirado no quarto.

"Como pode?", indaga. Esperava que a mulher cheirasse ainda pior que o quarto. Foi um engano simples, mas não contínuo. Em segundos achou um fato normal o que acabara de sentir. "Há coisas mais complicadas de se imaginar.", pensou, colocando as mãos na cintura. Novamente, atiçada pela curiosidade, curva-se para sentir o odor da velha. Começou a gostar de cheirá-la. Aproximou ainda mais seu rosto. Imediatamente tornou-se viciativo cheirar a velha senhora. "Que delícia. Como é gostoso. E leve... E... Hum..."; sussurrava. "Ela vai acordar... só mais um pouco... ela vai... já vou sair...". Ela sabe que não deveria estar fazendo aquilo e que, apesar do pesado sono da mulher, esta poderia acordar a qualquer momento.

A jovem começava a perder a razão. Não mais simplesmente "cheirava" a velha. Começa a acariciar as feições da senhora com seu nariz. Deixa escorregar pelo canto da boca um sussurro ou um assopro, como se estivesse expelindo o muito que absorveu para abrigar ainda mais. A esta altura, esquecera de manter a discrição e a quietude para não acordar a velha, e estava praticamente deitada em cima dela, afagando uma pequena mecha de seus cabelos com a ponta dos dedos. Seus dedos faziam que desenhavam pelo rosto da velha, de maneira leve, calma, quase não se encostando ao rosto. Olhos fechados. Boca úmida. Sentia-se entorpecida. Bêbeda. Não parecia ter controle dos próprios atos.

Por um instante abriu os olhos. A velha não estava lá. No lugar havia uma jovem que parecia ter cerca de vinte ou vinte e cinco anos. Possuía uma beleza inigualável, apresentada por uma pele morena, lisa, sem nenhum defeito ou traço de imperfeição. Lábios carnudos cerrados em uma abertura mínima. Cabelos da cor de mel, ondulados, espalhados ao redor do rosto, como se estivessem lá servindo como travesseiro.

Com um salto apressado saiu da cama. Estava surpresa, mas transparecia uma fascinação muito maior pela nova figura. Encostou-se na parede tentando encontrar o trinco da porta. Não sabia o que estava acontecendo e, mesmo que a jovem na cama lhe desse um enorme deslumbre, não queria ficar naquele quarto.

Olhava insistentemente para a moça. Esta, por sua vez, abria vagarosamente os olhos ao mesmo tempo que se desenrolava.

"Ora, não tenha medo. Chegue mais perto, afinal, foi você quem veio, não?".

Levantou-se. Por baixo da camisola semitransparente (um tanto rasgada e amarelada pelo tempo) havia um lindo corpo. Perfeito, leve, simples. Sem toca-la, a jovem na parede notava sua veludez. Agarrava-se no trinco da porta, ao mesmo tempo se impedindo de ficar e de ir. Engolia em seco. Tentava manter-se assustada, como fuga do dominador sentimento de desejo que estava tendo.

Fechou os olhos. Virou o rosto. Sua mão direita segurava o trinco, apertando-o fortemente, enquanto a esquerda arranhava a porta. De repente, um toque suave em sua face acalmou-a.

"Estás fugindo de algo?", perguntou uma leve voz em seu ouvido, como se fosse a voz de seus próprios pensamentos. Um hálito quente, porém aconchegante, a fez parar. Sentiu um fino e delicioso arrepio. Foi tomada por uma intensa sensação de prazer e relaxamento. Deixou os braços caírem. Sentiu, imediatamente, um aconchegante abraço que levou-a para a cama. Foi deitada de bruços, ainda com os olhos fechados. Sente um calor com a proximidade do outro corpo. Mãos que brincavam com seu corpo. Dedos por seus braços, pelos seios, pela barriga, pelo pescoço, pelas pernas, coxas, pés... dedos maliciosos, ousados, safados. Dedos brincalhões e prazerosos.

Uma boca encontrava-se com sua testa, a ponta de seu nariz, seu lábio superior. Lábios molhados, doces como mel. "Incrível... eles... possuem sabor... sabor...". Desejosa por mais, sua língua saltava da boca e era imediatamente fisgada pelos mesmos lábios que a motivaram. Um beijo. Longo. Irregular. Nunca antes sentido. Ela, que até o momento procurou não demonstrar o quanto aquilo era delicioso, abraçou fortemente a insólita amante. Seu abraço era um pedido, que foi atendido com outro forte beijo e com um carinhoso toque em suas bochechas.

"Acalme-se. Sei tudo o que sente e deseja. Não há mais razões para temer". A voz era de harpas, de uma calma orquestra, sempre sussurrada em seu ouvido. Sua mente repetia a frase: "Nada de medo. Nada de medo".

Estava nua. Sem que ela notasse a outra tirara sua roupa, tão segura e cuidadosa como um ladrão de obras de arte. Mas a outra não estava roubando. Pelo contrário, tudo parecia tão normal e agradável como a rotina de um bom casal de velhos: sempre a mesma, conhecida, repetida, mas suprida pela necessidade de não ficar sozinhos, suprida pelo amor que sempre houve desde o início da união.

Mãos leves cobriam seu corpo nu. Traçavam novas linhas, novo caminhos. Cada estrada formada abria uma Caixa de Pandora, onde todo os sentimentos e sentidos restritos de uma pessoa começavam a aflorar. Ou talvez, eles renasciam.

Ao sentir a proximidade do clímax, ela aperta os olhos banhados em lágrimas. O outro corpo se torna mais em único em seu ser, próximo, gostoso... E então...

Silêncio.

As duas semanas que seguiram foram calmas. O tempo mostrou-se ameno todos os dias, com exceção de um leve sereno em um domingo. Louça lavada, casa limpa, compras do mês realizadas, contas pagas, nada mais a fazer. Já era tarde, ela só queria tomar um banho e ir dormir. Havia tido um dia estressante e não queria estar desarrumada.

Coração batendo forte. Estava nervosa. Não importa quantas vezes seja, ela sempre fica nervosa. Mas começava a se acostumar.

Limpa. Perfumada. Não precisava se preocupar com o horário.
Sempre se acordava pontualmente, bastava curtir o sono.

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