Áustria, cidade de Graz, 2006.
Estamos saindo todos da fábrica, já é fim de tarde, 16:00h
para ser exato. As demissões continuam maiores do que nunca. Pudera,
nunca estivemos tão fracos de pedidos como agora. Alguns dizem que é
por causa da Índia e do extremo Leste, mas ainda acho que é uma
grande artimanha dos donos para diminuir custos cortando pessoal. Bando de conformistas,
isso é o que são, o resto dos empregados dessa empresa. É
cada um por si e que o mundo se destrua.
Vejo na saída o grandalhão Jan, ele deve ter cerca de 50 anos,
e já trabalha aqui há uns dez no mínimo. Preciso falar
com ele calmamente.
- Senhor Jan! Como está? Tudo bem? - falo já estendendo a mão
e cumprimentando-o.
- Humpf - resmunga ele. O que é Dieter? Não me venha com mais
uma rifa, já te dei um carro popular de tanto que já comprei essas
porcarias de você. - diz ele com um leve sorriso no rosto e ajeitando
os seus óculos do tipo fundo-de-garrafão.
- Não. - digo meio sem jeito. Nenhuma rifa para o momento. Ouvi dizer
que você serviu ao exército e que seu filho também está
nas forças armadas.
- Sim - responde ele friamente olhando para baixo.
- Então... Tenho um sobrinho que também está interessado
em ingressar nesse honroso meio...
- "Honroso"? Hah, não tem nada de honroso no exécito
Sr. Kaufmann... só merda e morte. E só o que tem.
- Como assim?
Nesse momento chegamos cada um ao seu carro.
- Sr. Kaufmann. Amanhã é sexta-feira, me pague uma cerveja no
bar que eu lhe conto tudo que o senhor quer saber sobre os milicos.
- Combinado.
No dia posterior, confesso que trabalhei com uma certa ansiedade, aguardando
o momento da saída. Às 19:00hs chego no bar e já está
lá Jan com sua jaqueta e camisa de regata. Pego uma cerveja e duas taças
e me junto ao meu comparsa no ritual de alcoolismo dessa noite. Estamos em uma
mesa redonda no canto do lugar, já é possível notar um
avolumar de pessoas que chegam para o happy hour. É um local onde
jovens se encontram, com certeza muitos namoros e casamentos fracassados se
iniciarão hoje. Por isso me sinto meio deslocado nesse ambiente.
- Boa noite, Jan.
- Muito boa, Dieter - respondeu ele.
- Esse meu sobrinho ainda está com certa indecisão sobre o que
quer fazer da sua vida...
- Mande-o estudar, ser advogado, médico, deixe-o fora do exército
- interrompeu-me bruscamente.
- Mas seu filho está servindo, não está? - pergunto tomando
o primeiro gole.
- Aquele bastardinho quis isso. Já foi fazer cursos nos Estados Unidos
e tudo o mais. Eu falei pra ele que eu não queria isso, e ele me ignorou.
Exatamente como fiz com meu pai há 30 anos atrás...
- Entendo. Não foi você que nunca chegou a conhecer seu pai?
- Meu pai eu conheci, não conheci meus avós. Meus pais sempre
evitaram falar sobre eles, e eu nunca me importei muito com isso.
Jan tira uma foto de um rapaz do bolso de sua jaqueta. Ele a olha por uns dois
segundos e me mostra.
- Esse foi um dos melhores amigos que já fiz. Trouxe essa foto comigo
hoje justamente para essa conversa. Porém esse pobre bastardo teve o
que não mereceu. Estávamos em treinamento na base. Com granadas.
- Oh, Jesus. - derramo um pouco de cerveja no meu colo por desatenção,
logo após limpo com o guardanapo, enquanto ele continua.
- Sim, você já pode imaginar o que aconteceu. O corpo dele explodiu
em mil pedacinhos. Mas o melhor da história foi isso: os milicos culparam
ele mesmo por sua morte. Disseram, e provaram posteriormente através
de um "laudo" que o moleque demonstrou "imperícia no manuseio
de equipamentos bélicos". A família recebeu um punhado de
marcos alemães e um "sinto muito pelo seu filho", só
isso.
Por um momento ele pára e reflete, tomando sua cerveja.
- É isso que o exército é, Sr Kaufmann. Merda e morte.
Os merdas que estão com o dedo no botão vermelho é que
mandam esses jovens pra invadir algum país "emergente" de terceiro
mundo. Enquanto os filhos deles estão pagando por prostitutas em jantinhas
particulares, os nossos estão sendo mutilados no front. É isso
que é o exército, Dieter.
Depois disso ele se levanta da cadeira e se dirige à porta, claramente
incomodado. Porém, isso é algo que não posso permitir que
aconteça.
- Jan Eberhardt, vejo que você gosta de histórias de guerra, apesar
de desgostar dos militares. Todavia, também tenho uma história
que pode interessá-lo.
- Do que você está falando?
- De sua família. Ela corre grande perigo enquanto falamos, porém
se eu te falar tudo o que sei agora, você não entenderia.
Ele apenas me olha com uma carranca enorme. Há muito tempo atrás
ele poderia me assustar, mas não agora, não mais. Ele sai porta
afora empurrando um par de pessoas no seu caminho. Sem hesitar o sigo. Ao chegar
do lado de fora, surpreendo-me com ele investindo violentamente contra mim.
- Moleque estúpido. Eu só saí do bar para poder te surrar
sem me preocupar com os seguranças.
Ele dispara um soco que visa meu rosto. Durante o trajeto de sua mão
cerrada, resolvo revelar-me. Seguro o seu punho antes que me atinja e não
o deixo escapar. Ele arregala os olhos de surpresa.
- Que merda é essa!! - diz ele.
- Eu quero muito lhe dizer, mas não aqui, não agora.
- O que você sabe sobre minha família, seu filho duma égua??
Eu largo sua mão violentamente para o lado, aliviando a pressão
que exercia sobre seus ossos.
- Vou dizer-lhe tudo que você quer saber. Mas aqui não é
o lugar correto. Vamos caminhar... - a princípio ele fica ali incrédulo
tentando entender o acontecera. Faz certo gesto sugerindo uma despedida, porém
pára um segundo depois.
- O que você sabe? Não vou a lugar algum sem você me dizer
- ele diz com os dentes cerrados.
- Você quer ter sua família morta com uma pilha de cadáveres
acompanhando-a ao inferno? - falo com muita seriedade olhando fixamente nos
olhos dele. Ele sabe que não estou mentindo. Nisso apenas ponho-me a
andar. Momentos depois ele me acompanha.
Saímos da frente do bar e começamos nossa pequena jornada. Jan
ainda está obviamente muito desconfortável com a ideia
de me acompanhar para que eu revele aquilo que sei. Ele retira um charuto do
bolso interno da sua jaqueta e o acende, decerto na esperança de acalmar
seus nervos. Hah, se ele soubesse...
- Sr. Eberhardt. O senhor gosta de futebol, não gosta?
Ele apenas continua caminhando cabisbaixo, carrancudo. Sei que gosta do esporte,
pois já vi ele discutindo furiosamente com colegas sobre o tema.
- Eu gostava muito de Rudolf Hiden, jogador da década de 30 do Grazer
AK... - digo a ele com ar de saudosismo.
Ele apenas resmunga algo ininteligível.
- Hah. Emanuel Pogatetz. Eis um bom jogador de futebol...
- Ele está na Inglaterra agora, certo? - pergunto.
- Sim, ele está de lateral esquerdo do Middlesbrough. Mas antes teve
uma passagem pela Rússia. Ele fora emprestado para o Spartak de Moscou.
Dizem que horas antes do último jogo pelo clube, ele descobrira que a
mulher dele teria traído ele duas noites antes. Quando entrou em campo
e iniciou-se a partida, ele se viu marcado firmemente pelo lateral da equipe
rival. E esse jogador insistia em dar cotoveladas em Pogatetz sem o juiz perceber.
Quer dizer, veja bem, ele já estava puto pelo fato da sua mulher ter-lhe
posto um par de chifres na cabeça, e agora tinha esse lateralzinho de
merda batendo nele sorrateiramente. É uma situação irresistível,
há de convir. No final do primeiro tempo, ele decidiu adiantar bastante
a bola no lado do campo, apenas para fazer esse lateral tomar-lhe a frente na
corrida. Não deu outra: Emanuel aplicou um carrinho por trás no
russo deixando-o com as duas pernas quebradas, gemendo no chão como uma
colegial. Foi banido por 24 semanas do futebol russo. Har, har, har. Sim senhor,
eis aí um excelente jogador de futebol.
- Hã... Sim, sem dúvida... - digo enquanto ele dá risada
de seu próprio retrospecto.
- Mais alguém que lhe chame atenção nesse esporte?
- Não. - responde secamente.
- Mas quero perguntar sobre um lugar que não tem muita tradição
no futebol, se é que tem alguma... Você já ouviu falar da
cidade chamada Steinach am Brenner?
- Sim, conheço.
Chegando ao Landhaus, um museu de armas bastante conhecido de Graz, sento-me
em uma mureta.
- Pois é aqui que começamos...
* * *
Áustria, Cidade de Steinach am Brenner, 1860
Começo minha narrativa explicando ao Jan que nessa minúscula
cidade é onde nasceu Georg Luger, filho de um cirurgião, Bartholomeus
Luger. Já aos nove anos, Georg mostrava ser um prodígio entre
seus pares, sempre tendo alguma ideia, tramoia ou anedota na ponta
da língua. No inverno de 1860 (com 11 anos de idade) ele estava sentado
em sua varanda com seus dois amigos inseparáveis, Hans e Fred.
- Georg, esse doce de abóbora que sua mãe fez é danado
de bom! - falou Hans, com um sorriso rechonchudo no rosto. Para um garoto de
12 anos sem dúvida era uma criança de porte bem avantajado. Fred
apenas concordou com a cabeça.
- Rapaz, muito boa a ideia aquela que você teve. - disse o magricela
Fred logo após abocanhar um último pedaço de doce.
- Diabos! Não fiquem falando à toa sobre isso, senão minha
mãe vai desconfiar de onde arrumei tanta abóbora assim - advertiu
Georg.
- O que você falou para ela - perguntou Fred?
- Que encontrei num saco largado perto da estrada.
- Ah, mas nosso truque foi perfeito. A sua ideia do Hans distrair o dono
da venda com um realejo enquanto entrávamos pelos fundos para levar-lhe
as abóboras foi uma beleza.
- Sim, mas agora troquemos de assunto - Georg disse olhando para dentro de casa
desconfiado se sua mãe estava a ouvir o diálogo. - Por que você
se atrasou hoje para vir aqui, Hans?
Hans estava acabando de comer seu doce. Depois de cerca de vinte segundos:
- Barbaridade! Acabei de levar uma surra do meu pai.
- Ué, por que?
- Estávamos andando com a nossa égua para buscar farinha no moinho
do norte.
- A égua que você costuma "namorar" de vez em quando?
- perguntou rindo Georg.
- Hãn, bem... sim. Mas me deixe continuar... Depois de algumas horas
de trote, meu pai resolveu parar para urinar, justo no lugar onde fica a pedra.
Os outros dois ficaram com uma expressão interrogativa pensando: "que
pedra?".
- Então, enquanto meu pai se aliviava, a égua se colocou na posição
em que eu costumava "namorar" com ela, com a anca erguida, só
me esperando. Eu costumava fazer o "serviço" em cima daquela
pedra, usando-a como apoio. Como eu poderia imaginar que a égua iria
se viciar em me receber daquele jeito? Tentei de todo o jeito tirar ela de lá
antes que me pai visse, mas ela resistiu. Quando meu pai viu aquilo, me pegou
de jeito com o cinto dele. Olha só.
Nisso ele mostrou as marcas vermelhas nas pernas e nas nádegas deixadas
pelo seu pai, enquanto que Georg e Fred praticamente rolavam-se no chão
de tanto rir.
- Amigos, já está anoitecendo e tenho que me recolher. Até
amanhã - disse Georg limpando as lágrimas fruto do riso de momentos
atrás.
Ao entrar em casa, Georg ainda conseguia ouvir seu pai discursando à
mãe, de um cômodo adjacente:
- Veja o que eu trouxe da Loja, mulher. Esse é um projeto bélico
futurístico. Veja só que linhas dinâmicas e fascinantes.
- Não vejo nada de mais nesse pedaço de papel velho, Bartholomeu.
Aliás, só porque você é o cirurgião da cidade
você não precisa se envolver com essa coisa de Maçonaria.
Não gosto disso.
- Concentre-se nos seus afazeres, mulher - disse Bartholomeu com um leve sorriso
analisando novamente o projeto em sua frente enquanto que sua esposa praguejava
qualquer coisa.
Somente esse diálogo já fora suficiente para aguçar a curiosidade
de Georg, que durante muitas noites subsequentes escapava de seu quarto
para ficar vislumbrando aquele papel pardo, já amarelado pelo tempo,
com suas linhas perfeitamente traçadas. Perfeitas demais pra aquela época.
Dez anos depois, Georg já estava servindo no exército em Viena.
Fred também havia se mudado de cidade enquanto que Hans também
se juntara às forças armadas, também em outra cidade. Georg
teve ótimas notas em natação, corrida e resistência,
porém não era muito bom de mira. Teve péssimas notas nos
testes de fogo. Lá que ele começou a ter interesse por engenharia
e armas de fogo. Em 1871, ele fora contratado pela Deutsche Waffen und Munitions
para ser representante e vender os rifles Mannlicher. Ele havia se rendido ao
capitalismo e ao patronato, queria ser um escravo do trabalho assalariado, o
pobre Luger.
Aos 44 anos, Georg já estava casado e com dois filhos.
- Vamos mulher, estamos atrasados!! - gritou Georg de dois cômodos de
distância, enquanto sua mulher se aprontava para uma celebração
local a qual o nome realmente não me recordo no momento.
- Calma, já estou pronta, senhor - sim, as mulheres tratavam seus maridos
dessa forma. "Senhor". Não havia fogueiras de sutiã
naquele tempo. Muito certo, se você algum dia me perguntar...
Chegando às festividades alguns amigos lhe diziam que Hans havia comprado
uma fazenda nos arredores de Viena e que estava de volta. Isso foi uma notícia
que, obviamente deixara Georg extasiado, querendo que a noite acabasse logo
para poder visitar seu antigo amigo.
O restante da noite, Georg contou à sua mulher das diabruras e travessuras
que fazia juntamente com Hans e Fred. Tudo isso por conta da notícia
da volta do gorducho amigo, agora como um fazendeiro. Georg se sentia muito
bem, retornando faceiro para casa naquela noite.
No outro dia, já de manhã cedo, Georg colocou-se na estrada para
visitar Hans. Foi a cavalo, como nos velhos tempos. No caminho fora admirando
as plantações que seu velho amigo adquirira e pensava de onde
Hans teria tirado tanto dinheiro. Se bem que seu pai já era um fazendeiro
bem sucedido, porém, não respondia por tamanhas posses na época.
Ao chegar à porteira se surpreendeu com a beleza da cancela, muito bem
acabada e pintada. Alguns detalhes mostravam uma tinta dourada, muito bonita
de ser vista à luz do sol, como era o caso naquele momento. A casa não
era longe da entrada, aliás, que bela casa Hans havia adquirido, sim
senhor. Dois pisos, duas varandas, um jardim à frente e tudo o mais que
uma casa de burgueses requeria para ser notada como tal.
Ao chegar mais perto da casa Georg foi recebido por um dos criados de Hans,
um senhor negro entre trinta e trinta e cinco anos.
- Senhor! - exclamou Georg. Meu nome é Georg Luger, estou aqui para prestar
visita a um velho amigo, chamado Hans Kristoff.
- O seu Kristoff já não recebe mais visita, não senhor.
- respondeu.
- Meu senhor, perdoe-me se lhe falto tato nesse momento, mas o senhor poderia
anunciar a minha presença a ele?
- Sim senhor - respondeu o criado após um momento de hesitação.
Após apenas alguns segundos, o mesmo criado retorna com a mensagem de
que Georg poderia entrar. Já na porta, Georg é recepcionado por
um jovem de cerca de 20 anos, com as roupas e cabelos muito bem cuidados, porém
de porte físico superior à média.
- Senhor, permita-me que me apresente. Sou Matheus Kristoff, filho de Hans -
cumprimentou à medida que conduzia Luger casa adentro.
- Muito prazer, filho. Meu nome é Georg Luger...
- Sim! Meu pai me falou muito sobre o senhor e sua longa amizade para com ele
- disse enquanto apertava a mão de Georg.
- Como está seu pai? Ele está aqui, não?
- Sim... Não poderia estar em outro lugar nem que ele assim o quisesse.
Ele está bastante enfermo, senhor - disse com pesar.
- Verdade? O que ele tem?
- Ninguém sabe dizer, já tentamos médicos, mentores espirituais,
tudo quanto é tipo de especialista já o analisou, mas ninguém
sabe resposta alguma.
- Lamento saber.
Após alguns segundos de silêncio apenas quebrado pelo som dos passos
dos recém-conhecidos juntamente com o da porta do quarto de Hans se abrindo,
Georg é reapresentado ao seu antigo amigo. Ele se encontra já
bastante magro, vestindo um roupão, entregue em cima da cama.
- Meu amigo Hans!! Quanto tempo não nos víamos, rapaz!! - Georg
saltou na frente, com grande euforia.
- Entre Sr. Luger, entre. Entre e sente aqui ao meu lado. Excelente ver-lhe
novamente - respondeu.
Matheus, o filho de Hans se retirou de forma discreta, pois sabia que os dois
tinham muito do que falar.
- Diga, meu velho - começou Georg. Então, quer dizer que o exército
não quis saber de você e o expulsou? - falou em tom de escracho.
- É, mais ou menos. Agora estou com essa nova ocupação
minha. Ficar deitado a maior parte do tempo, preocupado em não me mijar
nas calças de 15 em 15 minutos...
- Pois, sabe que estava me perguntando o porquê de você estar nesse
estado...
- Ninguém sabe, Georg. Ninguém sabe. Aos meus 40 anos, comecei
a sentir uma fraqueza que apenas fez aumentar através dos anos e desemboquei
aqui nessa cama.
- Mas como assim? As pessoas não adoecem desse jeito, elas morrem repentinamente
ou de gripe talvez, mas isso é inédito para mim.
- Pois a mim também, no entanto acredito que já me acostumei com
a ideia de ter de ficar entrevado até o fim dos meus dias. Não
é tão ruim quanto parece.
- É pior, certo? - perguntou Georg.
- Com certeza - respondeu Hans com um largo sorriso no rosto.
Com muito esforço, Hans colocou-se sentado na beira da cama, mas não
sem a ajuda de Georg.
- Hans. Calma, você não deve se esforçar tanto com essa
enfermidade - alertou Georg.
- Não. Eu prefiro falar com você desse jeito, me sinto menos inútil...
Depois de algumas tosses seguidas de pigarros e um momento de silêncio,
Hans começa.
- Meu amigo, Georg Luger. Nesses anos em que estive envolvido com o exército,
conheci muitas pessoas. Pessoas influentes. Tive uma ascensão meteórica
lá dentro. Eu só pensava em dinheiro e na glória do avanço
científico, fazer parte de algo realmente importante. Até me envolvi
com medicina e me formei, veja só.
- Mas isso é excelente! - disse Georg.
- Não, não é. E eu te explico por que. Naquela época
eu tinha verdadeira obsessão pelo avanço científico da
medicina. E não é novidade que a Alemanha andou investigando algumas
tropas dissidentes dentro do país e na fronteira com a França.
Pois bem, alguns soldados eram capturados. E entregues a mim. E nesse afã
em descobrir doenças, curas e ademais... bem, eu concordei em fazer algumas
coisas com esses prisioneiros...
- Como assim?
- Experimentos. Eu sempre me concentrei no campo da hipotermia. Coloquei inúmeros
prisioneiros em banheiras cheias de gelo, apenas para testar os efeitos do frio
extremo no ser humano. Obviamente que tínhamos que amputar alguns membros
gangrenados para evitar a morte prematura do pobre diabo. A maioria deles implorava
para que os guardas enfiassem uma bala em suas cabeças para acabar com
a dor. Eu nunca permiti.
Georg não esboçou nenhuma reação, apenas continuou
ouvindo horrorizado, contudo impassível.
- Aquilo era apenas um trabalho pra mim, entende? - continuou Hans. Eu não
via aqueles soldados como seres humanos, mas sim como animais, como os ratos
e sapos que costumávamos dissecar na faculdade. Tanto que fora dos laboratórios,
sempre fui notório como uma pessoa dócil. Era só meu trabalho,
entende?
- Não, na verdade não.
- Sim, eu sei que isso faz de mim um monstro, mas na época eu só
pensava em fama e ciência. Nessa ordem. Depois de dois anos nesse expediente,
não consegui mais. Comecei a imaginar meu filho com uma mão ou
perna amputada, com o sangramento toscamente estancado, morrendo de frio em
uma banheira de gelo. Tive que ir embora.
- Deus, Hans...
- Mas isso não é o pior, Georg - disse Hans com os olhos arregalados.
O pior é que não acabou, e acho que não vai acabar. Eu
vi alguns dos planos dos militares, ouvi algumas conversas de corredor. Acho
que algo vai acontecer. Algo muito grande.
Georg notou que seu amigo fora realmente afetado por esses acontecimentos e
pela sua doença. Mas ficou sem entender como essa ambição
desenfreada brotou da pessoa meiga que Hans era na infância.
Depois de alguns desconfortáveis segundos, deu um abraço em seu
amigo e colocou-se no caminho pra casa, de certa forma, decepcionado, pois queira
muito falar sobre as boas memórias que ambos têm da infância,
não ouvir histórias de horror e amputações por conta
de gangrenas. Mas tinha que entender que era o momento que seu amigo estava
passando e que devia respeitar isso.
Ao chegar novamente em casa, Georg deparou-se com sua esposa entregando-lhe
um pacote.
- Georg, um mensageiro deixou isso aos seus cuidados agora há pouco.
Abriu o pacote e encontrou um desenho esquemático de uma pistola muito
parecida com o projeto que ele próprio herdara de seu pai.
- Que pistola desengonçada - iniciou Georg. Deve ser muito incômoda
de se empunhar. Não tem metade da elegância do velho projeto que
meu pai ganhou de presente.
Em anexo ao desenho estava uma missiva da Deutsche Waffen und Munitions dizendo
que Georg deveria ir até à América apresentar essa arma
ao exército de lá, no intuito de iniciar um fornecimento da mesma.
A ideia obviamente que o desgostou, porém, sabia que não
poderia recusar-se a ir.
No dia seguinte bem cedo já estava de malas prontas e, próximo
ao meio-dia, já estava tomando o trem a caminho do porto. Horas depois,
desembarcou em seu destino, e colocou-se a procurar um lugar para passar a noite,
pois na manhã seguinte pegaria o navio para o Novo Mundo. Depois de algumas
tentativas frustradas, sentou em um estabelecimento que anos mais tarde seria
chamado de "pub" para tomar um chá antes de retomar a busca
por uma cama e um jantar.
Enquanto tomava o chá, Georg apreciava a cidade portuária chamada
Enns, muito bela, diga-se de passagem. É uma cidade pequena, porém
com lindas mulheres passeando com seus pares, em direção a um
teatro, ou apenas caminhando sob a luz da lua cheia que banhava a Áustria
naquela noite. A temperatura estava agradável, com uma leve brisa marítima
soprando bem de leve vindo do rio Danúbio. No momento em que Georg prestava
atenção em um cartaz de um espetáculo qualquer, foi interrompido
por um senhor que vestia um grosso casaco preto.
- Senhor. Espero que não esteja pensando em prestigiar esse evento. Eu
já o fiz e não é grande coisa, não - disse o estranho.
Suas feições denunciavam uma idade um tanto avançada, era
careca total e tinha um nariz proeminente. Georg, apenas respondeu com um sorriso
amistoso.
- Perdão pela minha falta de educação, senhor. Meu nome
é Ludwig Loewe - adiantou-se apertando a mão de Georg. O senhor
se importa se eu sentar-me? O fato é que caminhei o dia inteiro procurando
um estabelecimento como esse para relaxar e só agora que encontrei. E
o senhor sabe que, beber sozinho, é prenúncio de maus agouros,
não?
- Sim, por favor, fique à vontade.
- Obrigado, muita bondade de sua parte, senhor...?
- Luger, Georg Luger.
- Ah, Luger. Muito prazer. Mas me diga, o que o traz por essas bandas?
- Negócios. Tenho que fazer uma apresentação de alguns
produtos na América.
- Ah, verdade? Que produtos?
Nesse momento, um garçom interrompe.
- Gostaria de uma xícara de chá, senhor? - perguntou a Ludwig.
- Não, só uma taça de vinho, obrigado.
Georg espera que o garçom se vá e então reinicia.
- Vendo equipamentos bélicos, geralmente para os exércitos. Estou
indo aos Estados Unidos para demonstrar a Borchardt C/93, um novo projeto que
a Deutsche Waffen und Munitions - empresa para a qual eu trabalho - está
lançando.
- Entendo. Você sabia Sr. Luger, que essa cidade é a mais antiga
de toda a Áustria? Os primeiros assentamentos foram estabelecidos aqui
a cerca de 4.000 anos atrás pelos Celtas. Muitos desses Celtas eram druidas,
mas não me entenda mal, druidas não eram os seres malignos que
nossas avós nos contavam sobre quando éramos infantes. Eles na
verdade possuíam profissões diversas, mas o que os diferenciava
dos demais era a sua educação, eles tinham a graduação
que hoje chamaríamos de superior, ou universitária. Sem dúvida,
seres mais esclarecidos que o resto. A maioria deles adorava o deus da ordem
e da luz Essus. Porém, em algumas festividades particulares praticavam
o abominável ato de sacrifício de seus iguais, sim, seres humanos.
Isso sempre me deixou intrigado. Quero dizer, porque pessoas com intelecto avantajado,
que adoravam um deus da luz preocupavam-se em eliminar seus pares apenas para
decorar uma cerimônia? Isso acontecia antes de nosso tempo, ou seja, não
possuíam os mesmos valores que os nossos. Então, será que
não estavam apenas tentando dizer que, pelo fato de serem superiores
- mentalmente pelo menos - poderiam se dar ao luxo de tirar a vida de outrem
indiscriminada e impunemente? Será que não consideravam esse o
seu direito? Sem dúvida era algo natural para eles na época. É
uma bela questão a ser pensar, não?
Georg colocou-se apenas a ouvir e se impressionar com o conhecimento de Ludwig
acerca de Enns. Logo após, Ludwig disparou:
- Importa-se de eu passar os olhos no projeto?
- Ele é confidencial, mas acredito que uma olhada rápida não
causará mal algum.
Ele puxa o desenho de sua maleta e o entrega a Ludwig, que por sua vez o desdobra
e passa alguns momentos examinando a peça.
- Que pistola desengonçada - iniciou Ludwig. Deve ser muito incômoda
de se empunhar. Não tem metade da elegância do velho projeto que
seu pai ganhou de presente.
Georg fica perplexo, sem palavras por algum tempo.
- Concorda, Sr. Luger? - pergunta Ludwig com um sorriso malicioso. Logo depois
volta seus olhos ao desenho.
- Sim, você deve estar confuso agora, Sr. Luger. E isso é totalmente
compreensível para alguém na sua condição. Deixe-me
colocar qual será a sua conduta daqui por diante.
Ludwig toma um gole da taça de vinho.
- Bem, você não irá para a América, você sabe
tanto quanto eu que esse projeto é - e sempre será - um fracasso.
Aliás, deixe-me antes perguntar: você já está se
sentindo tonto?
- Como ousa?! - bradou Georg levantando-se esperando intimidar o miúdo
Ludwig com seu porte graúdo. Logo depois, sentiu o mundo escapar-lhe
debaixo de seus pés, obrigando-o a retornar e sentar-se. Sentia uma dor
lancinante de cabeça, tão forte que lhe turvava a visão.
- Está vendo essa lâmina? - tirou uma faca de pedra da manga, mostrando
a Georg. Bem, eu fiz um pequeno corte no seu braço enquanto conversávamos,
agora mesmo. Ela foi esculpida em idos de 5.000 a.c. e pertence ao Anjo da Morte,
mas acredito que ele não tenha dado falta até o momento, não
que eu me importe, claro. Ah, e não se recrimine por não ter me
visto infligir essa barbaridade sem você notar, não acredito que
haja alguém vivo que pudesse tê-lo. Além disso, esse é
um vício meu.
Com muito esforço Georg arregaçou um pouco a manga de sua camisa
revelando um pequeno corte no seu antebraço esquerdo, à medida
que seus membros amorteciam e já era incapaz de articular qualquer palavra
mais. Lentamente olhou para Ludwig e via gatos e ratos pretos escaparem por
debaixo de seu casaco, que já se mostrava como uma figura bruxelante.
- Assustado, Sr. Luger? Por favor, controle sua bexiga, não quero deixar-lhe
constrangido nesse momento nosso. Além disso, o senhor pode estar vendo
coisas agora. Talvez o senhor esteja alucinando. Talvez não.
Georg tentava desesperadamente levantar-se para agredir Ludwig, porém,
o que quer que estivesse acontecendo com ele, era muito forte. Mais do que ele.
- Como eu estava dizendo, o senhor irá para um hotel fora dos limites
da cidade e se hospedará lá por seis meses, esqueça os
Estados Unidos. O que a empresa para qual o senhor trabalha produzirá
será o projeto de seu velho pai, não esse arremedo de arma de
fogo cujo projeto o senhor carrega consigo. Não se preocupe com o dono
do hotel, nada faltará ao senhor nesse período. Ah, e quanto a
essa sensação que o senhor está sentindo agora é
o toque da morte, mas você não verá luz no fim do túnel,
não ainda. Além do que, só há trevas no caminho
de Georg Luger.
Ludwig se levantou, beijou as costas da mão esquerda de Georg e se retirou
da mesa.
- Adeus, Sr. Luger. Se o senhor for afortunado o bastante, não nos veremos
novamente.
Depois de um tempo definhando como um moribundo leproso, Georg sentiu uma pequena
fração de suas forças retornarem. Levantou-se lentamente
e começou a andar feito um zumbi em direção ao centro da
cidade, ainda muito afetado pelo corte no braço. Estranhamente as pessoas
na rua pareciam não se importar com a condição dele, ignorando
sua existência, e ele por sua vez estava muito fraco para pedir por ajuda.
Depois de cerca de meia hora caminhando, ele nota que as suas pernas não
mais o obedecem, carregando-o a esmo pela cidade, pelo menos foi isso que ele
pensou, até que vê um hotel em um recôndito muito escondido
e instintivamente sabe que é ali que deveria se hospedar. Suas pernas
o carregaram para dentro do estabelecimento. É um lugar muito mal cuidado,
praticamente em ruínas, com mofo por todo o lado, com os papéis
de paredes rasgados. Cheira a bolor.
Ao chegar ao atendente, viu que se trata de um ente cadavérico, faltavam-lhe
os lábios bem como o nariz. Seus cabelos eram ralos e sua pele já
tinha adquirido um tom acinzentado por conta do rigor mortis. Alguns hematomas
eram perceptíveis também. Com movimentos duros e desajeitados
alcançou uma chave à Georg que, apenas esticou lentamente a mão
para pegá-la.
- Quarto... 22,... senhor - informou a criatura.
Sem dúvida era uma visão incrível. Qualquer pessoa perderia
a razão ante aquilo, mas Georg não se encontrava em uma condição
"normal" naquele dia.
E o restante dos seis meses não foram diferentes. Ele passava semanas
dormindo, semanas acordado, ainda sob efeito do golpe da adaga de Ludwig, se
alimentava de comida e bebida que lhe era servida pelo ser que o atendera anteriormente.
Depois do tempo determinado por Ludwig, ainda debilitado, deixou o funesto hotel
e tomou um trem de volta à Viena.
Depois de algumas horas de viagem, simplesmente desmaiou, acordando em sua cama,
com sua mulher acordando-o.
- Georg, senhor. O que aconteceu? Você chegou cambaleando de sua viagem
e desabou na cama. Dormiu por dois dias seguidos - inquiriu sua esposa.
- Nada, estava apenas cansado da viagem.
- Como foi sua demonstração?
Georg hesitou por um momento, tentando lembrar o que havia acontecido de fato,
porém sem sucesso.
- Acho que eles não aprovaram aquela arma - despistou.
- Ah, que pena. Novamente o mensageiro da Deutsche Waffen und Munitions esteve
aqui. Desta feita, largou esse pacote sob seus cuidados.
Juntamente com o pacote encontrou o velho desenho da arma que Ludwig se referiu.
Aquele que seu pai ganhara de presente anos antes. Porém, na legenda
estava escrito "Parabellum - Pistolen 08", e, de praxe havia uma missiva
em anexo:
"Caro Sr. Luger
Segue em anexo a esta o projeto da "Parabellum - Pistolen 08", conforme
sua recomendação. Queremos estender nossos cumprimentos pela sua
ousada iniciativa de declinar em divulgar a "Borchardt C/93" e, em
lugar dessa, sugerir essa nova versão da arma. Entre nós, da Deutsche
Waffen und Munitions, nós a chamamos de "Luger", apesar de
ela possuir um nome técnico oficial. Também segue a primeira amostra
dessa série. Tivemos alguns problemas na sua produção,
mas nada que não conseguíssemos administrar.
Atenciosamente,
Deutsche Waffen und Munitions"
Obviamente que Georg estranhara a missiva, pois não tinha sugerido nada
desse sentido à empresa, contudo, como os últimos seis meses foram
por demais nebulosos, apenas temeu por o que mais teria feito em estado de semiconsciência.
Ao abrir o pacote que estava juntamente com os dois documentos, viu a primeira
Luger em sua total majestade, ali, na sua frente, o que causou a mesma impressão
de euforia que sentira quando criança, quando escapava de sua cama à
noite para ficar analisando suas linhas entre as coisas de seu pai. Mas uma
imagem veio à mente de Georg naquele momento: ele próprio alucinante
assistindo a Ludwig Loewe quando gatos e ratos negros escapavam-lhe por debaixo
de seu ameaçador casaco preto enquanto ostentava um sorriso sinistro.
A Pistola Luger estava criada.
No dia seguinte, resolveu novamente visitar Hans para ver se havia pelo menos
se recuperado um pouco psicologicamente. Achou que, pelo fato de não
ver Georg há muito tempo, sentira vontade de desabafar sobre aquilo que
lhe pesava na consciência. Georg acreditava que poderia animar-lhe dessa
vez. Chegou a cavalo novamente à moradia de seu amigo e, como de praxe
pediu ao criado que lhe anunciasse.
- O senhor pode entrar - respondeu o criado.
Estranhamente não havia ninguém na casa e foi adentrando lentamente,
hesitante como todo convidado. Trazia um pacote consigo. Ao chegar ao quarto,
bateu à porta para em seguida abri-la lentamente.
- Georg, pode entrar, quanto tempo - saudou Hans ainda entrevado em sua cama.
- Pois sim, tive que cuidar de alguns negócios, sabe como é, alguém
tem que colocar comida na mesa em minha casa. Como você está se
sentindo?
- Como você estaria se sentindo na minha condição? - falou,
porém, em um tom de extremo bom humor, sorrindo.
- Sentir-me-ia um traste, um inútil, verdadeiro fardo para minha família
- respondeu Georg, brincando. Porém, me sentiria muito melhor se tivesse
um amigo como eu, que me trouxesse isso.
Georg abriu a caixa revelando lá dentro a primeira amostra da Pistola
Luger.
- Hans, essa é a Parabellum - Pistolen 08, ou comumente chamada de "Luger".
Essa é a primeira peça construída, baseada em um projeto
que eu mesmo indiquei, sem dúvida uma vitória na minha carreira.
Eu gostaria que você a aceitasse de presente, para relembrá-lo
do pouco de bom que o exército tem.
Georg aproximou-se com a caixa aberta, lindamente decorada com veludo vermelho
onde repousava a pistola.
- Sinto muito, mas não posso aceitá-la, é um presente por
demais valioso - disse Hans com os olhos fixos na peça.
- Eu faço questão, Hans.
- Jesus, nem sei o que dizer. Muito obrigado.
Durante alguns minutos Hans ficou manejando a arma e olhando suas linhas muito
atentamente.
- Está descarregada - disse Hans.
- Sim, quando você se recuperar, trarei munição para praticarmos.
- Oh, isso seria deveras divertido, Georg. Espero que um dia possa sair dessa
cama para poder atirar novamente.
- Bem, tenho que ir andando. Minha esposa está preparando um jantar especial
para os criados essa noite e tenho que estar lá para prestigiá-la.
Se não sair agora, não chego a tempo.
- Oh sim, não quero que você se atrase. Agradeço novamente
pelo presente.
Nisso, Georg sai do quarto, se despedindo de Matheus na saída da casa,
antes de montar seu cavalo para retornar para casa. Chegando lá, o jantar
havia iniciado há pouco. Isso era um costume comum dos Luger, tratar
os criados muito bem, às vezes como se fossem da própria família.
Sua mulher havia preparado costeletas de porco, um prato muito fino e caro para
a época. Durante a noite, Georg teve o sono muito conturbado, tendo pesadelos,
acordando e dormindo em curtos intervalos de tempo. Sempre ao acordar lembrava-se
do beijo que Ludwig lhe dera nas costas da sua mão esquerda e deixando-o
à própria sorte em Enns.
Passaram-se alguns dias, com Georg sofrendo o mesmo calvário todas as
noites.
Em certa manhã, um mensageiro visitou novamente a residência dos
Luger para entregar uma carta. Dessa vez foi Georg que a recebera. Ao abrir
e ler a missiva chocou-se com a terrível notícia que continha
naquele pedaço de papel. O filho de Hans, Matheus, havia se suicidado
duas noites atrás. Ele fora encontrado enforcado no estábulo da
fazenda de seu pai. No mesmo minuto Georg colocou-se com urgência no lombo
de seu cavalo e rumou à casa de Hans. No caminho apenas chorava pela
perda de um menino irradiante e cheio de vida como era Matheus. Chorava também
pela perda de seu amigo que já havia perdido tudo. Sua profissão,
sua saúde, seus amigos, tudo fazia parte da história. Restava-lhe
apenas sua família, que tinha sido cruelmente aleijada em função
do acontecido. Ele também se perguntava como isso poderia ter acontecido
com uma pessoa como Matheus...
Chegando à casa de Hans, obviamente que a comoção poderia
ser farejada à distância, e não era preciso possuir o olfato
apurado dos caninos para tal. Era como se uma nuvem negra abraçasse nefastamente
a fazenda inteira. Levou apenas alguns momentos para que Luger alcançasse
o interior da casa, porém, em sua cabeça pareciam três horas
ou mais. Tinha somente dúvidas quanto ao estado em que estaria Hans,
o feliz e rechonchudo amigo de outrora. Estaria ele sedado por medicamentos?
Agarrado com força ao seu travesseiro, insano? Ou apenas chorando encolhido
em sua cama?
Ao entrar no quarto, a visão era bem mais impressionante. Hans estava
em pé, de costas para a porta, virado para a janela, olhando para o vazio,
tinha as suas duas mãos no peito e parecia muito calmo. Georg ficou parado
por alguns instantes tentando processar aquela nova condição que
lhe era esbofeteada no rosto naquele momento. Quando pensou em dizer "Hans?",
o sujeito de seu pensamento iniciou:
- Eu estava lhe esperando, Luger - disse Hans com uma voz muito calma.
- Hans, você está bem?
- Como você se sentiria se estivesse na minha condição?-
perguntou, novamente com a voz extremamente calma.
Nisso, Hans se virou em direção a Georg. Em sua mão direita
ele empunhava a Parabellum, ou a Pistola Luger, que pressionava contra o peito.
- Eu ainda sonho com ele, Luger. É um sonho horroroso. Perverso. Sonho
com meu filho. É uma noite chuvosa e a porta de meu quarto de abre, ouço
sons de passos se aproximando que param repentinamente. Vejo uma sombra horripilante
na porta, quando olho para cima, lá está meu filho enforcado olhando
para mim, com os olhos esbugalhados. Ele voa com asas de mariposa, ele voa pelo
quarto inteiro, de um lado para outro não emitindo um som sequer, a não
ser um estridente bater de asas. Depois de alguns segundos, ele se contorce
muito rapidamente e cai no chão, inerte - nesse momento Hans derrama
uma única e solitária lágrima.
- Eu não posso mais suportar isso, Luger. Não posso - fala colocando
a arma apontada sob seu queixo.
Georg sabia que a arma estava sem balas, porém mesmo assim aconselhou:
- Hans, solte a arme e volte para sua cama. Por favor - Georg deu um passo á
frente.
- Não - disse Hans para após puxar o gatilho e explodir a sua
própria cabeça, espalhando sangue e cérebro por toda a
janela e parede atrás de si.
Seu corpo pendeu por um segundo e desabou pesadamente no chão, fazendo
com que os miolos restantes lhe escapassem pela bocarra recém aberta
no crânio. Georg ficou imóvel, sem reação. No entanto
o que percorreu sua mente não foram coisas do tipo "Meu Deus, que
horror" ou "Como ele conseguiu as balas?", mas sim um único
e incômodo pensamento: "Funciona!".
Georg Luger fez fortuna com a comercialização da Parabellum, porém,
perdeu todo o seu dinheiro antes de sua morte, em 22 de dezembro de 1923.
* * *
- História interessante, Dieter. Muito inventiva, porém, ainda
estou curioso...
- Não tem nada de "inventiva" nela, senhor. E ela ainda não
acabou. Seu problema é sua falta de paciência para o desencadear
dos eventos, sorte sua que isso eu tenho para dar e vender - falei interrompendo-o.
- Acho que você vai gostar mais da sequência... - completei.
Após a desgraça de Hans e Georg, a primeira amostra da Luger
fora doada pela família de Hans ao exército alemão. Não
queriam tê-la por perto de modo algum.
Após descansar no depósito de armas, por cerca de dois anos, foi
utilizada por alguns soldados, patrulheiros em sua maioria, até que foi
perdida.
Fronteira entre França e Alemanha, 1915.
Depois de três meses, foi reencontrada por um jovem de nome Gregor Latton,
um cadete que patrulhava uma região de vigília durante a I Guerra
Mundial. Estava ele, seu amigo (desde antes da Guerra) chamado Lukas Mills e
um outro soldado de nome Siegbert Neville. Deveriam patrulhar essa faixa de
mata antes de reportar ao sargento na base, há cerca de três quilômetros
dali.
- Essa até que foi uma patrulha proveitosa, nenhum sinal de franceses,
e ainda achei uma Luger... - disse Gregor.
- Sorte nossa e sua - respondeu Lukas.
Siegbert, que andava mais à frente, estava muito atento nos seus arredores,
não ouviu a conversa. O restante da caminhada de volta foi permeada por
um silêncio profundo, para conservar a furtividade do bando.
Ao chegar à base, apressaram-se em procurar o sargento Viktor. Ao adentrar
a sala do sargento ainda conseguiram ouvir a "orientação"
que ele estava dando a um de seus oficiais subordinados.
- E da próxima vez que você disser que está com hemorróidas
só para ir pra casa, você as terá de fato! - bradou na cara
do soldado.
O oficial apenas encolheu-se, e se retirou extremamente envergonhado, passando
pelo bando de cabeça baixa. Após isso, Gregor adiantou-se entrando
na sala batendo continência.
- Senhor, efetuamos a patrulha no setor designado, porém nenhum sinal
dos francesinhos, senhor!
- Ah, vejo que você decorou certinho o que devemos dizer daqueles bastardos,
não é mesmo? Você levou esses dois outros virgens com você?
- Sim, senhor.
- Dispensado, soldado. Volte para seu alojamento. Recebi uma notificação
de Berlim, em dois dias teremos que partir em uma missão extraordinária.
Descansem suas carcaças inúteis e façam os preparativos
enquanto fico aqui na cabana confortável bebendo uísque.
- Sim, senhor.
A base era realmente algo muito bem planejado para a época, aliás,
não poderia se esperar menos dos alemães, correto? Havia alojamentos
para os soldados, cela para prisioneiros, refeitório, casa de armas,
todos os oficiais eram cadastrados em planilhas, os turnos eram bem definidos
e divididos, tudo seguia uma regra rígida de controle. Especialmente
a quantidade de comida e água para cada pessoa. Só que nem tudo
estava sempre limpo ou sempre tinham o que precisavam, pois afinal de contas,
era guerra.
Nos alojamentos eram permitidos alguns passatempos para os soldados, de modo
a preservar-lhes a sanidade (o mínimo, pelo menos) dentro daquele ambiente
terrível. Porém havia os soldados que não se ligavam a
isso, preferindo apenas descansar nas horas de folga. Era o caso do trio Gregor,
Lukas e Siegbert.
Em certa ocasião estavam os três deitados em suas respectivas camas,
um pouco antes do alarme sonoro soar, sinalizando que os soldados deveriam dormir.
Gregor tinha na mão uma figura que fora distribuída para os oficiais
retratando um soldado sobreposto a uma bandeira da Alemanha com os dizeres "Bis
das Ende kämpfen", estava assinado em uma letra quase indecifrável,
duas inicias que pareciam ser "A" e "H". Lukas admirava
uma foto que tinha de sua mãe. Já Siegbert montava seu fuzil com
os olhos vendados na outra cama.
- Rapaz, queria estar em casa agora - falou Lukas.
- Quem não queria? - respondeu Gregor.
- Sabe, lembro bem de minha infância quando minha mãe cuidava de
mim, de vez em quando ela escapava para o vizinho para ouvir Felix Draeseke.
Hah, anos depois eu mesmo me tornei fã dele... - relembra Lukas.
- Sim, também gosto muito da música dele. Ele morreu ano passado,
não?
- Foi. Como eu, ele morou em Dresden muito tempo, por isso minha mãe
gostava de suas composições. Eu gostava bastante de suas músicas
de ambiente. Sim, as orquestras e os solos de piano eram muito bons, mas as
suas "músicas de câmara" eram o seu melhor, sem dúvida
- disse Lukas.
- Na verdade não sei muito sobre qual tipo de música é
qual, mas eu também gostava de ouvir aos seus concertos.
- Draeske sempre foi muito decidido e precoce, sabia? Ele compôs a sua
primeira canção com apenas oito anos de idade e aos 16 já
havia decidido que seria músico. Sabe por quê? Digo-te. Não
havia ninguém dizendo a ele que ele não conseguiria, ele queria
ser músico e não tinha ninguém o convencendo do contrário.
Seus pais sempre o encorajaram a perseguir e ser o que ele desejava. Assim,
acabou sendo um dos maiores músicos da Alemanha. Hah, se tivesse pais
como os dele certamente eu estaria em outro lugar senão aqui. Meu pai
dizia que "o exército é bom", "me orgulhe sendo
um soldado", "defenda seu país" e outras besteiras e eu
acabei aqui, esquivando de balas e cheirando carne podre - humana - o dia inteiro.
- Lukas, existem coisas que estão fora de nosso alcance. Muitas vezes
fogem do nosso controle e o máximo que podemos fazer é o melhor
possível para que tudo acabe bem. No nosso caso, o melhor possível
é voltar inteiro para casa... - disse Gregor.
- Quão pomposo pode ser isso? - interrompeu Siegbert, enquanto finaliza
a montagem do fuzil e retira a venda de seus olhos. Demorei sete segundos a
mais que o normal só pela conversa de vocês. Se for para chorar
a morte de alguém, devíamos chorar por Alfred Graf von Schlieffen.
Se não fosse por suas estratégias, hoje estaríamos lutando
contra a Rússia também, e não apenas contra a França.
Atacaremos a Rússia posteriormente, certo?
- Sim - respondeu Lukas.
- Então... Ideia de Schlieffen, estou errado?
- Fique quieto - disse Gregor. Só porque não nos deixamos levar
por essa merda ao nosso redor não significa que somos menos homem do
que você. Não sacaneia, Siegbert.
- Hah, vocês dois são muito efeminados para estarem aqui, me desculpe.
Enquanto vocês falam de música, artes e como o cor-de-rosa é
uma cor instigante, fico aqui pensando sobre a tal missão especial que
temos pela frente. Vocês já sabem do que se trata?
- Primeiramente, vá se ralar Siegbert. Segundo, pelo que ouvi dizer ontem,
atacaremos uma base de rádio dos franceses ao norte daqui. Se for isso
a coisa será grande mesmo - explicou Lukas.
- Bom, estou gostando muito de xingar Siegbert, mas terei que dormir. Boa noite,
colegas - despediu-se Gregor.
- Boa noite - disse Lukas.
Siegbert apenas foi à sua cama e deitou-se.
- Que espécie de estúpido diria que tem hemorróidas para
escapar da guerra, pelamordedeus? - falou Siegbert baixinho para si mesmo.
No dia seguinte, pela manhã, os soldados estavam no lado de fora montando
guarda. Um carro de guerra alemão - não existiam jipes naquele
tempo - se aproximava vindo de dentro da mata parando próximo a Gregor
(Lukas e Siegbert estavam dentro da base). Um soldado saltou de dentro do jipe,
e, pelo fato de ser da mesma patente, bateu continência, sendo correspondido
por Gregor. Era um soldado de porte físico médio, cabelos louros
e com a voz bastante fria e firme.
- Oficial Heinrich Himmler se apresentando à base. Preciso entregar essa
carta ao sargento Viktor Holac.
- Sim, senhor. Acompanhe-me, por favor.
Gregor levou-o até a cabana de Viktor. Quando o sargento abre a porta
está ele com um copo de uísque na mão.
- Senhor, o oficial Himmler está aqui para vê-lo, senhor.
- Ah, sim. Himmler. Sim, deixe-o entrar, ele está trazendo as instruções
da nossa próxima tarefa.
- Sim, senhor.
Heinrich se adiantou e adentrou a câmara, Gregor ficou do lado de fora,
porém, não foi possível ouvir a conversa entre os dois.
Após cerca de meia hora, a porta foi aberta e Heinrich se retirou batendo
continência para Viktor.
- Bom rapaz, esse Himmler. Bom rapaz. Vamos, traste inútil, temos que
nos preparar para partir amanhã pela manhã.
- Sim, senhor - respondeu Gregor rangendo os dentes de raiva.
No dia seguinte, todo o pelotão fora deslocado para o objetivo dessa
missão, que é encontrar uma velha construção dentro
da mata, a sudeste da base. Na ida havia muita apreensão e ansiedade
no ar. O sargento não havia dado detalhes do que seria o real objetivo
na preleção.
- Vamos, bando de virgens. Temos trabalho a fazer na mata. Mas não se
acostumem, ninguém vai ficar por lá - foi só o que ele
falou na ocasião.
Todos sabiam que estavam entrando em território inimigo, toda aquela
área era considerada "instável", uma tropa francesa
poderia aparecer do nada a qualquer momento.
- Tomara que apareça algum francês para massacrarmos - falou Siegbert
baixinho.
- Calaboca - respondeu Lukas.
- Não dê atenção a ele, Lukas. Ele fala isso apenas
por falar, do contrário porque ele não vai dizer isso onde Viktor
pode ouvir? - falou Gregor em tom de escárnio.
- Ah, um dia ainda vou te massacrar, Gregor, Ah, se vou... - falou Siegbert
carrancudo.
Os outros dois apenas se limitaram a rir.
Depois de algumas horas de silêncio o pelotão chega a uma clareira
com uma enorme mansão abandonada, o lugar está em ruínas
e parecem estar assim há um bom tempo.
- Bem, bastardos. Chegamos. Quem pensou que iríamos arrasar uma torre
de rádio, enganou-se. Como vocês podem ver, somos apenas seis milicos
para explorar essa construção. Nós poderemos nos separar,
pois a presença inimiga é improvável aí dentro.
Cuidado para não se mijarem ao enxergar algum fantasma, har, har, har
- disse Viktor brincando de forma fanfarrona para iniciar a busca dentro da
casa.
- E o que temos que procurar? - alguém perguntou
- Vocês vão saber quando acharem. Agora vamos, lesmas!
Gregor fora designado para explorar o segundo andar. Ao entrar no saguão,
viu a mobília destruída, com uma grossa camada de pó. Havia
muitos retratos pintados na parede, alguns rostos estavam inexplicavelmente
desfigurados. Isso assustou o pelotão. Gregor pensava que tipo de doente
pintaria um quadro de um cadáver desfigurado. Bom, se bem que, ele mesmo
já vira coisas piores. No subir das escadas o ranger debaixo de seus
coturnos era inevitável, de fato algumas tábuas cediam ante a
seu peso, fazendo com que ele quase caísse no andar inferior. Ao chegar
ao seu andar designado, Gregor viu um corredor com vários quartos. Entrou
no primeiro vagarosamente, pois estava realmente muito escuro, apesar do sol
brilhar do lado de fora. O quarto possuía muita mobília destruída
e amontoada por todo o chão. Teias de aranha impediam sua visão
de alcançar o outro extremo do quarto. Foi avançando pé
por pé afastando as teias. Quando finalmente se desvencilhou daquele
emaranhado, viu algo aterrador. Um cadáver em avançado estado
de decomposição estava sentado em uma cadeira de pernas cruzadas
com uma garrafa e um copo nas mãos. Quando Gregor chegou perto, o cadáver
levantou lentamente a cabeça gerando um estalar assustador e olhou fixamente
para o intruso, embora lhe faltassem ambos os olhos. Não tinha mais lábios,
tampouco o nariz. O soldado congelou-se com a visão, queria correr, mas
não conseguia de mover. Lentamente o zumbi abriu sua boca e articulou
algumas palavras em tom gutural.
- Não... tente alarmar... seus comparsas... posso estar em... um estado
deplorável... mas ainda posso saltar... em seu pescoço e beber-lhe...
todo o sangue...
Depois disso, serviu um pouco do uísque que tinha na mão no seu
copo e bebeu. Todo o líquido lhe escapou pela garganta aberta e escorreu
pelo seu tórax desprovido de pele, onde era possível ver algumas
de suas costelas.
- Está servido.... guerreiro? - disse oferecendo a garrafa a Gregor,
que se limitou a gaguejar, porém nenhuma palavra fora dita.
- Você guerreiro.... orgulha-se a sua posição... não?
Estúpido... com pouca demora... estará compartilhando... da....
minha... he...he...he
O cadáver se contorce levemente e cospe uma nuvem negra e verde engolfando
Gregor, fazendo-o largar o rifle e respirar o gás vicioso. Cai ao chão
alucinando fortemente. Gregor começa a ter vislumbres aleatórios.
Vê seu próprio corpo deitado no chão de uma floresta com
o pescoço torcido para trás, vê uma construção
cercada de arame farpado onde pessoas morrem em virtude de inalação
de um gás ou mesmo por meio de fornos calcinantes, vê uma estrutura
voadora lançando uma bomba matando milhares de pessoas para depois provocar
uma chuva negra sobre seus corpos mutilados e queimados, e por último
vê uma estrutura voadora semelhante a essas se chocando contra prédios.
Ele também sente o cheiro de fogo, decomposição de corpos,
combustível, sangue. Morte.
Depois de alguns minutos desse ciclo, retomou a consciência sobre uma
poça de seu próprio vômito e sangue. Levantou-se cuspindo
ainda um pouco de ambos. Olhou para onde estava sentado o zumbi com a garrafa
de uísque e ele não estava mais ali. Saiu porta afora, ainda um
pouco zonzo. Ao deixar a mansão, viu que o pelotão já estava
todo lá fora com um baú colocado no chão.
- Era isso que procurávamos? - perguntou Gregor.
- Sim - respondeu Viktor. Vamos embora.
- Sargento, acredito que falo pelo grupo inteiro, acho que temos o direito de
saber o que há dentro do baú.
- É verdade, senhor. Nós também queremos saber - concordaram
mais dois soldados.
O sargento hesitou por um segundo.
- Com mil demônios, também estou curioso. Podem abri-lo, safados.
Um dos soldados se adiantou e abriu o baú. Lá dentro havia uma
lança muito bonita, bem decorada.
- Ah, então é isso que devemos entregar ao Kaiser - disse Viktor.
Uma lança.
- Como assim? - bradou Gregor. Então quer dizer que nos arriscamos vir
até aqui para resgatar uma droga de uma lança? Inaceitável!!
- Acalme-se, imbecil - avisou Viktor.
- Não irei me acalmar! Parece que no exército fazemos as coisas
sem pensar, engolimos qualquer coisa que nos seja ordenada! Nós nem sabemos
por que essa maldita guerra começou, pelo amor de deus!!
- Sexo - disse Viktor com um sorriso no rosto. Essa guerra começou por
causa de sexo, guri.
- Como?! - surpreendeu-se Gregor.
- Franz Ferdinand, Sophie Chotek e Gavrilo Princip. Como vocês devem saber,
Franz Ferdinand, o arque duque da Áustria foi assassinado ano passado.
Em 1895, Ferdinand casou-se com Sophie Chotek, porém antes mesmo de seu
casamento, ela costumava se encontrar com Gavrilo Princip - que suspeita-se,
seja parte da Mão Negra. Acontece que ela não parou de se encontrar
com ele após o casamento e, num furor de ciúmes, no dia 28 de
junho de 1914 Princip assassinou Ferdinand em Sarajevo. Depois disso, houve
uma série de eventos que culminaram nessa guerra. E cá estamos
nós.
- Esqueçam essa história de que a Alemanha tem planos imperialistas
de unificar a Europa economicamente sob a égide dos alemães -
continuou Viktor. Ou o fato de que a Áustria atacou a Sérvia e
a Alemanha invadiu a Bélgica e isso causou a guerra, isso é balela.
Os soldados ficaram alguns segundos sem reação, enquanto que Viktor
caminhava na direção de Gregor, furioso.
- Espero que não reste mais nenhuma dúvida, soldado Gregor - disse
Viktor de forma ameaçadora.
- Na verdade senhor, eu ainda acho uma bobagem termos que vir buscar essa porcaria
de lança.
Viktor aplicou um chute no estômago de Gregor arremessando-o longe.
- Moleque estúpido, bastardo! Como ousa questionar minhas ordens?! Ordens
do Kaiser!! - gritou Viktor.
Gregor caiu com as mãos na barriga. Sua vista ficou turva de dor e o
ódio cresceu no seu peito. Quando olhou para sua mão direita lá
estava a Luger, já destravada e pronta para uso. Colocou-se de pé
já a apontando para o sargento que titubeou.
- Gregor! Você está passando dos limites. Baixe a arma - disse
Lukas firmemente.
- Já estou cansado de sofrer abusos desse alcoólatra - falou com
a voz bastante calma.
- Baixe essa arma, soldado - avisou Viktor.
- Ele tem razão, Gregor. Chega, você foi longe demais - falou Lukas
já segurando a mão de Gregor, que por sua vez se desvencilhou
facilmente e abriu fogo contra o amigo, atingindo-o com três tiros, um
na cabeça e dois no tórax.
- Ninguém nunca mais vai me dizer o que devo ou não fazer - Gregor
falou com os dentes cerrados.
Nisso, Siegbert aponta seu rifle para Gregor, furioso.
- Solte a arma, vagabundo!! Solte agora ou... - foi interrompido por um tiro
vindo da Luger que lhe atravessou o crânio, penetrando por seu olho direito.
Viktor começa a avançar para Gregor enquanto ele ainda olha Siegbert
definhar até a morte.
- Alguém mais quer me dar ordens? - perguntou Gregor olhando fixamente
o já cadáver de Siegbert.
- Bastardo de merda!! - gritou Viktor investindo contra Gregor, que por sua
vez o alvejou no tórax.
Porém, isso não o deteve, ele continuou a avançar e alcançou
facilmente Gregor com seu braço longo. Gregor atirou de novo contra a
sua barriga e o outro tiro removeu a orelha do sargento. O sargento tirou Gregor
do chão e o aproximou o seu rosto do dele.
- Você se acha macho com essa arminha na mão, não é
mesmo?! Pois vou te dar uma lição, seu bostinha! - nisso Viktor
começou a forçar o pescoço de Gregor para o lado, enquanto
que esse desferia mais tiros no tronco de Viktor.
Essa situação se perdurou até que ecoou na mata o estalar
da espinha de Gregor. Ambos caíram no chão. Gregor morreu pouco
depois, seu último pensamento foi endereçado às alucinações
que o zumbi lhe fizera ter alguns minutos antes. Já Viktor ainda foi
levado de volta à base, porém, não conseguiu resistir aos
ferimentos e faleceu na mesma noite.
Quanto à Luger, bem, ela voltou ao exército. Depois da guerra,
fora vendida ao exército dos Estados Unidos.
* * *
- Dieter, estou ficando sem paciência, o que todas essas histórias
têm a ver comigo ou minha família? - disse-me Jan irritado.
- Jan, entenda, eu não lhe abordei na saída da empresa aleatoriamente.
Você tem uma participação no que lhe contei até agora.
- Explique-se.
- Bem, digamos que seu nome poderia ser Jan Princip.
- O que?? - Jan se sobressaltou.
- Sim, Gavrilo Princip estava realmente transando com a mulher de Franz Ferdinand,
porém ele tinha a sua própria mulher - aliás, outras -
porém, eram mulheres sem nome nobre, prostitutas em sua maioria. Uma
delas era a preferida dele, Odette Wakemann era seu nome. Esta teve um filho
de Gavrilo - olhei fixamente para Jan. Seu avô, meu caro.
- Como assim, caceta?!
- Sim, você é tataraneto de Gavrilo, afortunado. Está tudo
interligado, não percebe? Franz Ferdinand nasceu aqui, em Graz. E foi
aqui que eu encontrei você, Jan. Em seu nome está a mancha da morte
de alguns milhões de pessoas. Pelo menos o sangue do seu sangue foi responsável
pela guerra que formatou nosso mundo como o conhecemos hoje. Até que
é animador pensar por esse lado, não?
- Não fale bobagens, seu contadorzinho de merda... - disse Jan, cético.
- Jan, com sinceridade, não me importo se você acredita ou não
em mim. Eu sei da verdade e estou transmitindo-a, não ganho nem perco
nada se você acreditar ou não, o azar é inteiramente seu
- desdenhei. Bem, sem mais delongas finalizarei nossa noite com a parte final
de meu relato, espero que o senhor esteja preparado para o desfecho.
- Você está fora de seu juízo normal, seu maníaco
- falou Jan, mas parecia que na sua cabeça já começaram
a brotar dúvidas de que eu estaria falando a verdade...
Estados Unidos, cidade de Camden, NJ, 1949.
Então, caro Jan, a Luger havia chegado ao Novo Mundo, na cidade que,
em 2004 e 2005, ganhou o invejável título de "cidade mais
perigosa dos EUA", devido à sua alta taxa de criminalidade. Mas,
voltando a 1949 (quando ela ainda não tinha esses problemas todos), mais
especificamente no dia 3 de setembro, na esquina da Avenida Harrison e da 32ª,
um caminhão de pães estava estacionado, e duas crianças
brincavam na calçada. Mais a frente ainda na 32ª havia uma sapataria
onde John Pilarchik estava trabalhando, aliás, suando para recolocar
uma sola em um sapato, descendo um pouco mais a rua e dobrando a direita, na
Avenida Hayes havia a barbearia Hoover´s onde Clark Hoover, o dono, cortava
o cabelo de uma senhora de 62 anos de idade. Avançando nessa avenida
existia uma taverna, cujo o dono era um homem chamado Frank Engel. Na esquina
com Avenida Reeves, havia uma farmácia, a farmácia dos odiados
Cohen, que naquele momento atendiam um corretor de seguros James Hutton.
Ao lado dessa farmácia, morava um homem de 28 anos, alto, cabelos negros,
magro, chamado Howard Unruh. Naquela manhã de 3 de setembro ele estava
em seu porão à escrivaninha. Nela havia um retrato dele entrando
em um tanque de guerra, tirada na Normandia, seu diário, que se fosse
aberto seria possível ler registros de cada alemão que ele matara
cinco anos antes, com detalhes do estado em que os corpos de encontravam após
a morte, bem como uma minuciosa lista de pessoas - seus vizinhos - com os "pecados"
de cada um deles e uma "ação corretiva" ao lado de cada
um: "retaliação" aparecia depois de cada um dos nomes.
Em cima da escrivaninha também estavam suas armas, que ele estava limpando
naquele momento, mas por uma ele tinha flagrante predileção -
a Luger. Costumava se demorar a limpá-la, como se acariciasse a Parabellum
num ritual muito particular.
Você deve saber Jan, que o Estado não costuma ser muito caridoso
com veteranos de guerra, até pelo fato do histórico de tais pessoas.
Que serventia tem uma máquina de matar em uma sociedade fora de época
de guerra, afinal? Com Howard não era diferente, tinha 28 anos, estava
desempregado e tirava seu sustento de sua mãe, que trabalhava em uma
fábrica na cidade. Vez ou outra fazia algum serviço comunitário
para a Igreja. Ele era extremamente religioso.
- Howard, o almoço está na mesa - gritou Freda Unruh, mãe
de Howard.
- Estou indo, mãe - respondeu do porão.
Depois do almoço, juntamente com um amigo de sua mãe, ele estava
instalando um portão em sua casa, pois tinha que partilhar do portão
dos vizinhos - os Cohen - para entrar em sua casa.
- Acho muito bom você colocar um maldito portão, Unruh. Não
aguentava mais ter que fechar o nosso depois que você passava e o
deixava aberto - disse Rose Cohen da janela da farmácia.
- Sim, senhora - respondeu Unruh educadamente.
Naquela noite subiu ao seu quarto e voltou a escrever no seu diário,
dessa feita colocou que as pessoas insistiam em falar mal dele pelas suas costas,
que já ouvira, de canto de ouvido, a expressão "garoto da
mamãe" como se referindo a ele. Depois se colocou a limpar a Luger
novamente.
No dia seguinte se dirigiu à Igreja, porém, não havia trabalhos
a serem feitos. Decidiu confessar-se. Entrou na cabine e fechou a cortina.
- Padre...
- Sim, Howard?
- Eu estou com alguns pressentimentos estranhos ultimamente. Tenho tido pesadelos,
coisas assim.
- Como assim, filho?
- Aqui as coisas são muito complicadas, na guerra era só mirar
bem o canhão do tanque no nazista lazarento, apertar o gatilho e depois
anotar no caderninho. Aqui existem muito mais coisas para se pensar. Não
estou conseguindo, padre - falou e respirou fundo e continuou.
- Eu sonho com um garoto sendo enforcado por um homem careca de preto em uma
fazenda, ele o eleva no ar com apenas um braço e o enforca com um pedaço
de lençol. É terrível. Mas quando acordo não me
sinto desconfortável com isso, fico extremamente calmo, sereno.
- Calma, filho. Você teve uma fase na guerra, foi muito bravo, defendeu
a América contra o inimigo e voltou para casa. Se você sobreviveu
à guerra, pode muito bem sobreviver aqui - aconselhou o padre.
- Eu queria que tivéssemos perdido a guerra - falou baixinho com ira
nos olhos. Queria ver todas essas pessoas em campos de concentração
sentindo o cheiro da carne de seus parentes queimando.
- Unruh! Nunca mais repita essa barbaridade. Vá pra casa, reze cinco
pai nosso e acalme-se.
Howard deixou a cabine em silêncio, mas não seriam cinco preces
que o fariam mudar de ideia...
No dia 6 de setembro, quando voltava de uma sessão de cinema na Philadelphia,
viu que seu portão novo havia sido roubado. Era 3 da manhã. Furioso,
foi para a cama.
No outro dia às 8 da manhã, acordou e sentou-se na mesa para tomar
o café da manhã com sua mãe.
- O que houve, Howard? Você está estranho, filho - pergunto sua
mãe.
- Nada! Está tudo certo - falou Howard com um olhar frio sobre ela. Assustada
preferiu não insistir no assunto.
Quando o relógio bateu 8 e meia, sua mãe saiu para trabalhar.
Ele, por sua vez, subiu as escadas, colocou um terno e foi em direção
da sua pistola predileta, a Luger. Esperou até as 9 horas - horário
em que o comércio abre as portas - e saiu com a pistola e mais dois carregadores,
totalizando 33 balas.
Chegou à esquina da Avenida Harrison com a 32ª, e como era de praxe,
estava lá o caminhão de pães e as duas crianças
brincando na calçada. Calmamente abriu fogo contra o motorista, a bala
passou perto, no entanto não acertou o alvo. Muito assustado, o motorista
preocupou-se em pegar as duas crianças e colocar dentro do baú
do caminhão rapidamente. Howard não se incomodou, seguiu em frente
pela 32ª, chegando à sapataria onde John Pilarchik estava trabalhando
em um sapato infantil. Invadiu o estabelecimento e a um metro de distância,
disparou no estômago de John, para logo após atirar em sua cabeça,
foi a sua primeira vítima com a Luger. Após isso, desceu a rua,
dobrou à direita entrando na barbearia de Clark Hoover, que cortava o
cabelo de um garoto de 6 anos, enquanto a mãe, Catherine Smith, esperava
sentada em um sofá no fundo da sala. Entrou de surpresa.
- Tenho algo pra você aqui, Clarkie - disse Howard.
Clark tentou interpor-se à trajetória da bala, porém, sem
sucesso. Atingiu a cabeça do garoto, o segundo tiro atingiu Clark no
tórax. Ambos caíram no chão, o assassino deixou a loja
com Catherine gritando por ajuda. Na saída, havia alguns garotos na rua
que saíram gritando em desespero, disparou contra eles, enquanto às
suas costas Catherine saía correndo pedindo por socorro com seu filho
no colo. Ele errara os tiros contra os garotos, porém, não importava,
eram apenas alvos incidentais. Enquanto caminhava, olhava para a Luger. Para
ele era uma visão muito bonita, a arma irradiava uma aura avermelhada,
como o ódio em seu peito. Por um momento lembrou novamente do garoto
sendo enforcado na fazenda.
Desceu a Avenida Hayes em direção à taverna, porém,
estava trancada. Deu dois tiros na fechadura, abrindo-a. Vendo Howard armado,
os clientes se precipitaram em proteger-se atrás do balcão, enquanto
que Frank Engel subiu as escadas para alcançar seu revólver .38,
porém ao retornar com a arma, o atirador já não mais estava
lá, contudo, saiu sem fazer vítimas. Estava mais preocupado com
outros alvos. Ele recarregou a arma.
Chegou à farmácia e encontrou pela sua frente um conhecido seu,
James Hutton, o corretor de seguros.
- Com licença, senhor - disse Howard polidamente.
Porém, James não se moveu e acabou alvejado pela Luger. Maurice
e Rose Cohen - marido e mulher - subiram as escadas que levavam à casa,
rapidamente. Ele os seguiu, e viu Rose tentar se esconder dentro de um armário.
Ele desferiu três disparos na porta, e assim que a abriu, atirou novamente,
dessa vez contra a cabeça de Rose. A mãe de Maurice, de 63 anos,
também recebeu a sua bala fatal ao tentar acionar a polícia pelo
telefone. Enquanto isso, Maurice saiu por uma janela que acessava um pequeno
telhado na frente da casa, no entanto, Howard conseguiu alvejá-lo a ponto
de deixá-lo gravemente ferido, o que ocasionou a sua queda na calçada.
O portador da Luger desceu as escadas calmamente e acabou com a vida de um Maurice
rastejante tentando escapar pela rua. O atirador estava se vendo com poucas
balas, e retornou para a sua casa em busca de mais munição. No
caminho, já era possível ouvir as sirenes ao longe. Ao adentrar
a casa, cerca de 20 policiais cercaram-na.
Do outro lado da cidade, Freda recebeu a notícia das ações
de seu filho, o desespero tomou conta dela. Alguns colegas tentaram acalmá-la,
porém, ela deixara a fábrica rumando a esmo.
Na casa dos Unruh, Howard estava abrindo fogo contra os policiais, porém
não obteve sucesso em acertar nenhum. Naquele momento já havia
cerca de 50 policiais rodeando a casa, inclusive atiradores por sobre os telhados
vizinhos. A polícia também atirava em direção a
Unruh, no intuito de tirá-lo de casa, ou mesmo matá-lo.
A segunda tentativa foi de usar gás, atirando bombas pelas janelas da
casa. Nisso, o telefone tocou. Howard atendeu com a voz calma.
- É Howard Unruh quem fala? - perguntou a voz no telefone.
- Sim, é Howard. Com quem você gostaria de falar, você ligou
para quem?
- Unruh - respondeu. Era possível ouvir pelo telefone as vidraças
se quebrando em virtude dos tiros dos policiais.
- Quem é você? O que você quer? - Howard queria saber.
- O que ele estão fazendo a você? - inquiriu a voz.
- Não fizeram nada a mim ainda. Mas eu fiz muito a eles - falou seriamente,
mas com satisfação.
- Quantas pessoas você já matou?
- Eu não sei, eu não contei. Mas parece que foi um bom trabalho
- falou sorrindo.
- Por que você está matando essas pessoas?
- Eu... eu não sei - disse Howard olhando para a Luger. Eu não
posso... não posso responder isso agora. Eu estou muito ocupado. Terei
que falar com você mais tarde, alguns amigos estão vindo me pegar
agora.
O gás atirado pela polícia começava a se espalhar pela
casa. Unruh começou a sofrer de dores lancinantes de cabeça, e
caiu no chão.
Os policiais ficaram sem saber o que estava acontecendo, pois os tiros haviam
parado e a fumaça havia acobertado qualquer contato visual que tinham
previamente com assassino. Depois de alguns minutos, julgaram que ele estava
desacordado e começaram a se aproximar da casa.
- Estou descendo! - Howard gritou de dentro da casa.
- Onde está a arma? - perguntou aos gritos o policial mais próximo.
- Aqui em cima da minha escrivaninha, eu estou descendo agora.
Os policiais o renderam e o levaram para a prisão. No caminho, os policiais
o xingavam, quando mencionaram a palavra "psicopata", apenas respondeu:
- Não sou psicopata, tenho uma mente normal.
Naquela manhã ele matou o total de 13 pessoas e feriu outra 13. Este
foi considerado o primeiro ato de killing spree da história. Howard
Unruh ainda vive nos dias de hoje e reside no Hospital Psiquiátrico de
Trenton, e em mais de uma ocasião já disse que "teria matado
mil pessoas, se tivesse balas suficientes para tal".
* * *
- Quanto à Luger, meu caro Jan, veio aqui para Áustria - falei.
- Grande merda. Aliás, Dieter, está ficando tarde e eu tenho mais
o que fazer. Adeus - disse Jan se retirando do Landhaus.
- Seu filho, Jan - comecei. Seu filho tem a Luger nesse momento, seu imbecil.
- Do que diabos você está falando? - perguntou Jan, retornando
em minha direção.
- Você sabe que seu filho viajou para estudar na América, não?
Porém, o que eu acho que você não sabe é que ele
comprou certa pistola alemã por US$37.50 em uma loja de armas. Ele tem
a Luger, confie em mim.
Jan parou na minha frente, olhando-me nos olhos.
- Como você sabe de tudo isso? Como você pode saber de todos os
detalhes, de cada coisa que essas pessoas disseram, até mesmo sentiram?
Como pode?
Dei uma pequena risada.
- Você sabe o "problema" que a Deutsche Waffen und Munitions
teve para produzir a Luger que estamos falando a noite inteira sobre? - perguntei
retoricamente para depois continuar.
- Hah. Bem, esse problema fui eu. Eu fui a primeira vítima da Luger.
Eu trabalhava na Deutsche Waffen und Munitions. No turno da noite. Quando eu
estava lixando uma de suas rebarbas, o rebolo estourou e os estilhaços
me atravessaram facilmente. Um simplório acidente de trabalho. Eu estive
por perto da Luger todo o tempo, não tenho como evitar saber. Eu não
queria saber de tudo isso, mas não é escolha minha.
- Ah, tá bom... - disse Jan cético, debochando de mim.
Nisso abri minha camisa mostrando quatro rasgos que atravessam meu corpo no
peito e estômago. É possível ver minhas costelas, bem como
o funcionamento de alguns órgãos internos. Jan ficou boquiaberto,
sem acreditar. Depois se sentou na calçada com as mãos na cabeça,
ainda num esforço para processar todo aquele horror.
- Jan, levante-se, homem. Nós precisamos alcançar seu filho ainda
hoje, ele está a beira de cometer alguma atrocidade com aquela arma.
Ele está na base militar nos limites da cidade, correto? Será
essa noite, eu posso sentir. Temos que impedi-lo de qualquer forma. Temos que
destruir a Luger essa noite.
Lentamente Jan se levantou, balançando a cabeça concordando.
- Sim, meu filho Alan. Oh, Deus. Vamos... Vamos - falou já enchendo os
seus olhos de lágrimas.
Um barulho de palmas vagarosas interrompe nossa correria. Um senhor totalmente
careca, com casaco grosso preto está sentado em um banco há poucos
metros dali. Está acompanhado por um par de gatos pretos e um corvo se
apoiava em seu ombro. Paramos assustados com aquela visão. Era Ludwig
Loewe.
- Uma história incrível, um discurso motivador, um parceiro fiel.
Não esqueça a capa, Dieter. Sem ela você não pode
voar, estou certo? - disse Ludwig sorrindo.
- Quem é esse desgraçado? Vamos embora, Dieter, não temos
tempo a perder - disse Jan me puxando, e eu não consegui tirar os olhos
da figura nefasta em nossa frente.
- Dieter? - perguntou Jan.
- Fudeu, Jan - falei sem tirar os olhos de Ludwig.
Ludwig levantou-se e caminhou em nossa direção. Alguns ratos caíam
de dentro de seu casaco. Sua presença traz um frio incômodo, sentimos
também um eriçar dos nossos cabelos na nuca.
- Eu tive que, enforcar, matar, mutilar, influenciar e enganar incontáveis
pessoas para chegar até aqui. Você achava mesmo que eu deixaria
um idiota como você e um reles macaco como ele estragar as coisas? Você
me insulta me subestimando dessa forma - falou ameaçadoramente.
- Quem é esse bosta, Dieter? - perguntou-me Jan novamente ensaiando uma
agressão contra Ludwig, contudo antes de ele se mover eu o contenho com
meu braço esquerdo, ainda sem tirar os olhos de Ludwig.
- Ludwig, é o meu direito libertar-me dessa prisão em que estou
existindo - falei firmemente escondendo meu medo.
- Ah, então sendo assim, acredito que deveria deixá-lo seguir
seu caminho, correto? - riu ele. Você não passa de um engano, algo
que não deveria ter acontecido. Se bem que você foi um belo começo
para nós. Ela rejubilou-se em tirar-lhe a vida.
Maldito filho da puta, ele não poderia ter aparecido. Não agora.
- Primeiramente, deixe-me cuidar de seu parceiro-mirim, seu inútil -
Ludwig virou-se para Jan, que se assustou apenas com esse ato. Em quatro minutos
seu filho irromperá em uma fúria assassina assim como aquela que
acometeu seus antecessores. Ela se iniciará onde monta guarda nesse momento
e depois de dirigirá à sua moradia. Será um extermínio
lindo, acredite.
Jan, arregalou os olhos e colocou-se a correr desesperadamente em direção
à base. Ludwig se voltou a mim.
- Agora quanto a você, seu pedaço de cuspe imprestável...
- falou enquanto agarrou a minha cabeça girando-a, desacordando-me.
Depois de um tempo dormente no escuro lado da sonolência, consigo abrir
meus olhos, minhas pernas doem enormemente, bem como meu braço esquerdo.
Vejo que estou em uma caverna, próximo a um lago subterrâneo, estou
pendurado pelos braços em uma árvore negra, desprovida de folhas.
As paredes, a água, o chão, tudo tem uma coloração
verde acinzentada. Olho para baixo... Deus, não... Não pode ser
verdade... Ele me partiu ao meio, arrancou meu braço esquerdo e me pendurou
aqui. Do meu tórax só restou a espinha dorsal, desenhando uma
cauda obscena para meu peito. Meu pescoço está quebrado também.
Lugwig está no chão na minha frente. Depois de algum tempo e esforço,
consigo falar com uma voz débil.
- Ele não... conseguiu... não é mesmo?
- Não, claro que não. O seu filho o matou, assim como toda a família
e alguns de seus colegas soldados. Um primor de garoto, se você me perguntar.
Pena que foi morto a tiros pelas autoridades.
Deixo escapar uma lágrima de meus olhos, tentei evitar, mas não
consegui, pois sei que ele deleitar-se-ia com isso.
- Bem, Dieter, acho que nossa longa história acaba aqui, tenho negócios
a conduzir em outro lugar. Se por acaso algum dia você consiga descer
daí, boa sorte tentando achar as suas pernas, eu as deixei em algum lugar
dessa caverna, hehe.
Depois ele vira as costas e me deixa por minha própria conta.
Sei que a Luger está já nas mãos de outra pessoa, não
consigo deixar de enxergar as mortes, as balas perfurando a carne. Não
consigo.
Maldito dia em que aceitei aquele emprego, maldito dia. Cuspo sangue de ódio.
Mas ainda não acabou, não desistirei. Só tenho que me livrar
desses nós e achar minhas pernas. Então, recomeçarei tudo
de novo.