Ele era um fronteiriço enorme, cabeludo e de rosto sardento, descendente
direto de uma tribo dada ao roubo de gado em Liddesdale. Apesar de sua descendência,
era um cidadão tão sensato e sóbrio quanto podia se desejar,
vereador em Melrose, presbítero da Igreja e presidente da seção
local da Associação Cristã de Moços. Seu nome era
Brown - e se via impresso como "Brown and Handiside", sobre as grandes
mercadorias da rua principal. Sua esposa, Maggie Brown, era Armstrong antes de
se casar, e vinha de uma velha família de camponeses nos ermos de Teviothead.
Era de baixa estatura, moreninha e possuía olhos negros, além de
um temperamento estranhamente nervoso para uma mulher escocesa. Não se
podia encontrar maior contraste entre o homem grande e trigueiro e a pequena mulher
morena, porém ambos eram da terra, até onde podia alcançar
a memória.
Um dia - era o primeiro aniversário de seu casamento - eles saíram
juntos para ver as escavações do Forte Romano em Newstead. Não
era um lugar particularmente pitoresco. Da ribanceira norte do Tweed, exatamente
onde o rio forma uma curva, estende-se uma rampa suave de terra arável.
Através desta corriam os valos dos escavadores, expondo, aqui e ali, velhos
trabalhos de pedra, indicando os alicerces das antigas muralhas. Havia sido um
lugar enorme, pois o acampamento possuía cinquenta acres de extensão
e o forte, quinze. De qualquer modo, tudo era fácil para eles, uma vez
que o Sr. Brown conhecia o fazendeiro proprietário da terra. Sob sua direção,
passaram uma longa tarde de verão inspecionando as valas, as covas, as
muralhas e toda a estranha variedade de objetos que esperavam ser transportados
para o Museu de Antiguidade de Edimburgo. A fivela de um cinturão
de mulher havia sido desenterrada naquele mesmo dia e o fazendeiro estava discorrendo
sobre isto, quando seus olhos se fixaram no rosto da Sra. Brown.
- Sua boa senhora acha-se cansada, disse ele. Talvez seja melhor descansar um
pouco antes de continuar.
Brown olhou para a esposa. Ela estava pálida, certamente, e seus olhos
escuros, luminosos e estranhos.
- O que é Maggie? Cansada? Acho que é hora de regressarmos.
- Não, não, John, continuemos. É maravilhoso. Igual a um
país de sonho. Tudo parece estar tão chegado e perto de mim. Quanto
tempo os romanos permaneceram aqui, Sr. Cunningham?
- Longo tempo, senhora. Se a senhora visse as covas de lixo das cozinhas, compreenderia
que levaria muito tempo para enchê-las.
- E por que eles partiram?
- Bem, senhora, por todos os sinais, partiram porque tiveram de o fazer. O povo
das vizinhanças não podia suportá-los mais, por isso levantaram-se
e queimaram o forte. Pode ser a marca de fogo nas pedras.
A mulher estremeceu ligeiramente.
- Uma noite feroz... horrível, disse ela. O céu devia estar vermelho
aquela noite... e estas pedras cinzentas também.
- Sim, acho que se encontravam rubras, disse seu marido. É uma coisa estranha,
Maggie, e talvez fossem suas palavras que a ocasionasse; mas pareço ver
este incidente mais claro do que jamais vi qualquer coisa em minha vida. A luz
brilhava na água.
- Sim, a luz brilhava na água. E a fumaça agarrava-se à garganta.
E todos os selvagens estavam gritando.
O velho fazendeiro começou a rir.
- A senhora escreverá uma história acerca do velho forte, disse
ele. Eu o tenho mostrado a mais de um indivíduo, mas nunca ouvi explicação
tão clara. Algumas pessoas têm o dom.
Haviam bordejado a margem do fosso, e um poço abria sua boca à direita
deles.
- Aquele poço possui 14 pés de profundidade, disse o camponês.
Imaginem o que retiramos do fundo? Bem, era somente o esqueleto de um homem com
uma lança ao lado. Penso que a empunhava quando morreu. Ora, como pode
um homem com uma lança achar-se num buraco destes? Não estava enterrado,
porque eles queimavam seus mortos. Que conclui disso, senhora?
- Ele saltou ao fundo para livrar-se dos selvagens, disse a mulher.
- Bem, é plausível e um dos professores de Edimburgo não
poderia apresentar melhor explicação. Gostaria que estivesse aqui,
senhora, para responder às nossas dificuldades. Aqui está o altar
que encontramos semana passada. Há uma inscrição. Disseram-me
que é latim que significa que os homens deste forte agradecem a Deus por
sua segurança.
Examinaram a velha pedra gasta. Havia dois VV largos e profundamente entalhados,
no topo.
- Que significam estes dois VV, perguntou Brown.
- Ninguém sabe, respondeu o guia.
- Valeria Victrix, disse a senhora, suavemente. Seu rosto se encontrava
mais pálido que nunca, os olhos muito distantes, como quem observa pelas
passagens obscuras das abóbadas dos séculos.
- Que é isto? perguntou o marido, asperamente.
Ela estremeceu como alguém que acorda de um sono.
- Acerca de que falávamos? perguntou.
- Destes VV na pedra.
- Não há dúvida de que é somente o nome da legião
que erigiu o altar.
- Sim, mas você lhe deu um nome especial.
- Realmente? Que absurdo! Como poderia eu saber qual era o nome?
- Você disse algo... Victrix, suponho.
- Acho que estava conjeturando. Este lugar me dá o sentimento singular
de não ser eu própria, mas outra pessoa.
- Sim, é um lugar misterioso, disse seu marido, olhando ao redor com uma
expressão quase de medo em seus olhos cinzentos e agressivos. Também
sinto isto. penso que somente lhe desejaremos boa noite, Sr. Cunningham, e regressaremos
a Melrose.
Nenhum deles pôde sacudir a estranha impressão que lhes havia sido
deixada, pela visita às escavações. Era como se algum miasma
houvesse subido daquelas valas úmidas e passado ao sangue deles. Toda a
tarde permaneceram silenciosos e pensativos, mas os poucos comentários
que faziam mostravam que o mesmo objeto ocupava a mente de cada um. Brown passou
a noite sem repouso na qual teve um sonho estranho e bem concatenado, tão
vívido que ele acordou transpirando e tremendo como um cavalo amedrontado.
Tentou descrevê-lo à sua mulher quando se sentaram para o lanche,
de manhã.
- Foi a coisa mais clara, Maggie, disse ele. Nada que me aconteceu quando acordado
tem sido mais claro do que isto. sinto-me como se estas mãos estivessem
pegajosas de sangue.
- Conte-me devagar, disse ela.
- Quando começou eu estava numa encosta. Encontrava-me deitado no chão.
Este era áspero e havia moitas de urzes. Tudo ao meu redor era somente
escuridão, mas eu podia ouvir o sussurro das respirações
dos homens. Afigurava-se uma grande multidão em ambos os lados ao meu redor,
mas não podia ver ninguém. Às vezes, havia um baixo tinido
de aço, e então um número de vozes sussurrava "Silêncio!".
Eu tinha uma clava nodosa na mão e esta era guarnecida de pontas de ferro
na extremidade. Meu coração batia rapidamente, e eu sentia que pairava
um momento de grande perigo. Uma vez deixei cair minha maça, e as vozes
todas ao meu redor ordenaram na escuridão "Silêncio!".
Apoiei minha mão no chão e toquei o pé de outro homem deitado
à minha frente. Havia outros ao meu alcance de ambos os lados. Mas não
disseram nada.
Então todos começamos a nos mover. A encosta inteira parecia estar
rastejando para baixo. Existia um rio no sopé e uma ponte de madeira com
arcos altos. Além da ponte viam-se muitas luzes - tochas numa muralha.
Os homens rastejantes dirigiam-se todos em direção à ponte.
Não houve som de espécie alguma, porém uma quietude aveludada.
Então ouviu-se um grito na escuridão, o brado de um homem que era
apunhalado no coração, subitamente. Aquele único grito elevou-se
durante um momento e depois ouviu-se o rugir de mil vozes furiosas. Eu estava
correndo. Todos corriam. Uma luz vermelha brilhou e o rio tornou-se uma faixa
rubra. Podia ver meus companheiros agora. Eram mais demônios do que homens,
figuras ferozes vestidas de peles, com o cabelo e a barba caindo em torrentes.
Estavam todos furiosos de raiva, saltando enquanto corriam, as bocas abertas,
os braços em agitação, a luz vermelha batendo em seus rostos.
Corri também, e gritei maldições como os demais. Então
ouvi um grande estralejar de madeira que soube que as paliçadas tinham
caído. Percebi um silvo alto em meus ouvidos e eu me achava consciente
de que as flechas voavam ao meu redor. Caí no fundo de um valo e vi uma
mão estendida de cima. Segurei-a e fui puxado. Olhamos para baixo e vimos
homens prateados segurando suas lanças para o alto. Alguns dos nossos saltaram
sobre as pontas. Nós os seguimos e matamos os soldados antes que pudessem
desenterrar as lanças dos corpos novamente. Eles gritavam alto em uma língua
estrangeira, mas não tivemos misericórdia. Caminhamos sobre eles
como uma onda, e os espezinhamos para baixo da lama, pois eram poucos e o número
dos nossos infindável.
Encontrei-me entre edifícios e um destes estava incendiado. Vi as chamas
ressaindo através do telhado. Corri e achei-me só entre os edifícios.
Alguém cruzou correndo à minha frente. Era uma mulher. Segurei-a
pelo braço e segurando-lhe o queixo, voltei seu rosto a fim de que a luz
do fogo o iluminasse. Quem você pensa que era, Maggie?
A esposa umedeceu os lábios secos.
- Era eu, disse ela.
Ele olhou para ela, surpreso.
- É certo seu palpite, disse. Sim, era exatamente você. Não
simplesmente parecida, você compreende. Era você, você própria.
Eu vi a mesma alma nos seus olhos amedrontados. Você parecia branca e formosa,
maravilhosa à luz do fogo. Eu tinha somente um pensamento na cabeça
- levá-la para longe comigo; conservá-la toda para mim no meu lar
em algum lugar nas colinas. Você arranhou meu rosto. Levantei-a sobre o
ombro e procurei achar um caminho para fora da luz do edifício em chamas
e de retorno à escuridão.
- Então aconteceu a coisa que relembro mais que tudo. Você está
doente, Maggie. Devo parar? Meu Deus! você tem no rosto o mesmo olhar que
possuía a noite passada no meu sonho. Você gritou. Ele veio correndo
à luz do fogo. Sua cabeça estava desprotegida; seu cabelo era negro
e encaracolado; e ele tinha uma espada nua na mão, curta e larga, pouco
maior que uma adaga. Ele lançou-se contra mim, mas tropeçou e caiu.
Segurei-a com uma das mãos, e com a outra...
Maggie havia saltado, ficando de pé, com feições contraídas.
- Marcus! Gritou ela. Meu belo Marcus! Oh, seu animal! Fera! bruto! Houve um estardalhaço
de xícaras de chá, quando ela caiu para a frente, sobre a mesa,
inconsciente.
Nunca falam daquele incidente isolado e estranho em sua vida de casados. Por um
instante, a cortina do passado tinha sido afastada, e algum estranho lampejo de
uma vida esquecida tinha sido mostrado a eles. Mas o véu caiu, para nunca
mais levantar-se. Vivem em seu círculo estreito - ele na sua loja, ela
no lar - e não obstante horizontes mais novos e amplos formaram-se vagamente
em torno deles, desde aquela tarde de verão no fragmentado Forte Romano.
Que tal comprar um livro de Arthur Conan Doyle? Sherlock Holmes - Obra completa A Terra da Bruma |