A conheci casualmente num desses chats globalizantes, onde as culturas se integram
e as visões de mundo se ampliam e se mesclam... Onde pessoas procuram
mostrar seus anseios e vivências escondendo-se de si mesmas em suas fantasias
mais que reais... Ela se apresentava sob o simples pseudônimo de "Anna
di Lucca", ou como dizem os internautas, esse era o seu "nick"...
Para mim deveras interessante, pois que conhecia o aludido lugarejo... Começamos
conversando amenidades, até o momento de lhe dizer que eu era italiano
e vivia em Florença... Daí então, me deparei com uma história
tão interessante que me fez querer compartilhá-la com você
que me lê agora... Seu linguajar era fluente e doce... Envolvente mesmo...
E fiquei a imaginá-la como uma pequena ninfa a descrever a sua história
apaixonadamente, e com todo o fulgor imaginativo de uma escritora pagã...
Nesse meu devaneio estávamos num daqueles bailes de máscaras venezianos
onde todo luxo e toda luxúria se exacerbavam... E me vi nesse baile a
acompanhar, embevecido, o ditado daquela bela e graciosa dama que de frágil
e fugaz nada tinha... Tudo nela era alegria, graça e beleza... Era mesmo
um ser vibrante... Quase viril, mas de uma virilidade extremamente feminina...
Era como se pudesse vê-la... Como se pudesse tocá-la em meu pensamento...
Um encanto ou um encantamento? Uma bacante? Não sei dizer.... Mas
deixemo-la falar por si mesma... A conclusão deixo à você...
- Sim, moro em Florença...
- Ah! A história da tua cidade... Século XV... Sou muito ligada
a alguns fatos históricos que a tiveram como cenário... Procuro
saber muito sobre a arte e a cultura florentinas... Sou mesmo fascinada... Os
Médici... A conspiração dos "Pazzi"... O Duomo,
o Palazzo Vecchio... A Capela da Santa Croce... Tantas vezes sonhei com esses
lugares todos... Como se já os conhecesse de há muito... Como
se tratassem de queridas lembranças...
- Sabes o que significa "Pazzi"? "Loucos"... Na realidade
eles tiveram um fim feio... Nada bonito...
- É vero! O que não faz a ambição... A sede de
poder... Era isso que imperava naquela época... Você conhece bem
essa história?
- Sim, conheço... É a nossa História, Anna!
- Então deves conhecer bem seus personagens... Conheces o arcebispo
de Pisa? O Sr. Francesco S. e sua ligação com Sixto IV?
- Villa (=grande casa) S... Fica perto de minha casa... Sim, eu conheço-o...
- É verdade que Boticelli foi o artista designado para retratar todos
os responsáveis pela conspiração, onde apareciam dependurados
nas janelas do "Palazzo Vecchio", a fim de servirem de exemplo a futuros
conspiradores, e assim reafirmar o poder dos Médici e sua influência
sobre o Papa?
- Disso não me lembro muito bem... Dos dependurados sim, Anna... Mas
posso pesquisá-lo se você quiser...
- Ah! Você o faria para mim?! Devo dizer-lhe, meu amigo, que não
pude conter a minha alegria em conhecer alguém que está tão
perto da história que conheço tão intimamente... Da terra
que já pisei um dia... Há tanto tempo... Às vezes vejo
se delinearem na minha mente as imagens de certos jardins tão verdes,
acariciados por uma brisa suave e perfumada... Jardins que conheci tão
bem... Quanto a esse Francesco S... Tenho um palpite sobre ele... Para mim ele
era filho de Sixto IV... Ilegítimo, é claro, o que era muitíssimo
comum naquele tempo... E eu os conheci muito bem... E muito de perto...
- Você pisou na nossa terra?? Quando?!
- Há muito tempo... Quando também eu a considerava minha... Nesse
tempo, o senhor Francesco S. visitava muito amiúde uma sua pupila, num
lugar chamado "Beguinage" situado nos arredores de Lucca, cidade que
ligava Florença domínio dos Médici, à antiga Flandres...
Mais exatamente o povoado de Bruges... Nessa instituição
eram internas mocinhas rebeldes de famílias abastadas, ou ainda, as filhas
ilegítimas de prelados da Santa Madre Igreja, importantes demais ou por
outra, comprometedoras demais para serem relegadas ao descaso...
- Você quer dizer que já viveu no séc. XV??
- Você é quem está concluindo isso, caríssimo...
- É... E o que são 500 anos frente a Eternidade...
-Não é nada... Eu trago comigo um singular fenômeno...
O de lembrar, espontaneamente, o passado longínquo de minha vida imortal...
Flui tão naturalmente como o pensamento... Estas são apenas fugidias
lembranças... No entanto, carregam consigo muitas alegrias e amarguras
também...
- Eras pupila? Amante!!
- Sim... Pupila... Amante... Irmãos... Mas não se podia saber
ao certo... Não se sabia muito bem a origem de seu próprio nascimento,
daí tamanhos desastres...
- Isso (a respeito do nascimento) é exato... Era fácil "manipolare"
o cadastro de uma igreja...
- Sim! Mais ainda quando se tratava de um "sobrinho" ou "sobrinha"
do sumo pontífice ou algum de seus prelados...
- Mas, você quer dizer que viveu em Lucca no século XV?
- Sim... Na realidade nasci em Veneza, mas fui para Florença ainda pequena,
e de lá para Lucca... À expensas de meu pai... Digo o legítimo...
Mas fui educada por aquelas boas mulheres pias que se dedicavam na Beguinage
à pôr as moças de bom nome, em condições de
serem dignas senhoras da sociedade a que pertenciam... Tempos difíceis...
Mesmo porque eu era mesmo muito difícil... Ambiciosa demais... Livre
demais... Talvez herança de meu pai... Esse período me toca demasiadamente...
- Agora entendi bem porque!
- No início essas lembranças me eram tortuosas, mas aos poucos
foram tomando outra forma dentro do meu entendimento...
- É! Eram períodos tipo "mors tua, vita mea"...
- Si...
- E quando aconteceu tudo isso (o tomar forma) ?
- Há uns cinco anos, mais ou menos, quando reconheci e fui reconhecida
por alguns dos personagens dessa história... Pessoas sérias e
comprometidas com a verdade...
- Como aconteceu?? Conte para mim!!!
- Por que quer saber desses detalhes? És escritor e queres ter um enredo
para o teu próximo volume? "A Filha do Papa"... Pois sim...
Já te concedi até mesmo o título para a tua nova obra...
- Não... Sou apenas um jornalista que ama a História e histórias...
Não se agaste comigo, Anna...
- Mesmo?! Então podes escrever a respeito...
- Quem sabe, Anna... Quem sabe... Mas voltando a tua história... E como
era dizer para as outras meninas... "Meu pai faz o Papa, como trabalho".....?
- Eu não o sabia! Pensava ser filha dos amores ilícitos de minha
mãe, que era uma nobre dama da sociedade veneziana, com um gentil-homem
francês muito galante... Um sedutor aventureiro e irresponsável
por nome Pierre... Mas a peso de ouro se compravam os cornutos de antanho, meu
amigo... E se calara o homem que fora o verdadeiro marido de minha mãe...
A este ficara a fortuna, e à Pierre a má fama... E quanto a mim,
seguia para ser internada num semiconvento aos sete anos de idade... Jamais
veria minha mãe novamente... Pelo menos poderia contar com a proteção
do senhor cardeal... E, como tu podes concluir facilmente não somente
a sua proteção paternal...
- Sim... Também a proteção do "melhor amigo do cardeal"...
- Sixto também o protegia, porque isso lhe garantia alguma fidelidade...
Mas, eu fui muito apaixonada por este homem... Perdidamente apaixonada, eu diria...
Mas, tal qual a pequena Bórgia... Tinha a verve de uma víbora,
porque uma mulher sozinha para se defender, numa época tão cruel
para com as mulheres, usava de seus mais poderosos trunfos... Sua beleza e sua
inteligência... Veladamente, é claro, para não melindrar
as mentes viris que julgavam dominar o mundo... Fora Francesco quem me ensinara
a ler e a compreender as escrituras sagradas, além de política,
espionagem e literatura que eram as fontes de poder do nosso tempo... Era um
homem astuto, inteligente, ambicioso, porém extremamente excitável
à cólera... O que, paradoxalmente, apesar de toda a sua astúcia
o traía sempre....
- Anna, agora é um verdadeiro conto... Continua, cara mia! Você
é escritora, não eu! Diga a verdade!
- Sim, de certo modo... Na realidade, considero-me poetisa.. Mas esse dom vem
de outras vivências... O que, certamente, teve suas raízes nesta
época dada à educação e o amor às artes que
Francesco me ajudou a cultivar... Somente as grandes cortesãs tinham
acesso a esse tipo de educação... Eram treinadas para entediarem
seus senhores... Fui privilegiada nesse sentido.... As boas e castas mulheres
dessa época eram ignorantes e indolentes de raciocínio na sua
maioria... Algumas inocentes, outras acomodadas, outras ainda puritanas e fanáticas...
- Continua... Estou a ler-te com atenção!
- O fim dessa história é trágico como trágico foi
o seu começo, meu bom amigo... A bela Anna não teve um fim nada
digno alguns anos após a morte de seu amante/irmão. Francesco
fora morto dependurado numa das janelas do "Palazzo Vecchio", traídos
os conspiradores não se sabe muito bem por quem... Se bem que a bela
e vingativa Anna guardava lá suas razões que justificariam a sua
queda... O fato é que ela ficara sem a proteção do arcebispo
ambicioso e do próprio pai, que tratando muito bem de seus interesses,
não se pejaria em fechar os olhos para algumas arbitrariedades necessárias
e convenientes, a fim de manter a mitra papal sobre sua própria cabeça.
E assim a relegou à vingança de seus muitos inimigos... Pois sabia,
ainda que veladamente, do seu envolvimento com o tal arcebispo seu "sobrinho"...
E da natureza desse envolvimento...
- E o que aconteceu???
- Não se pôde furtar à prisão e da acusação
mais que torpe de que foi vítima... Bruxaria... Era certo que possuía
conhecimentos secretos a que nem mesmo a maioria dos grandes homens de poder
tinham acesso, com exceção de alguns afilhados do sumo pontífice
e seus prelados... E que conhecia muito bem quem se utilizava de certos rituais
macabros para obter os favores do sobrenatural... Ainda assim aquela acusação
fora injusta e espúria... Sabia demais a nossa bela Anna... Fora condenada
por um corpo de juizes eclesiásticos em corte privada, por se tratar
de uma figura mui conhecida das famílias abastadas da época...
Os rumores sobre sua origem sempre existiram... Se tratava de uma moça
singular essa pequena Anna di Lucca... O Destino reservou-lhe a fogueira...
Era uma mente excitada pelo orgulho, mas um coração iludido por
esse mesmo monstro, porém sensível e corajoso... Era doce e sabia
o valor de um sentimento nobre, mas sempre preferiu ocultá-los de si
mesma...
- Você me surpreende, Anna... Mais e mais interessante!!
- Digo-lhe, meu bom amigo que a "pequena andorinha", Francesco assim
a chamava, nunca esquecera o senhor bispo... Ainda mesmo nos tormentos das torturas
a que foi cruelmente submetida, e até em meio as chamas nos seus últimos
instantes... Em sua memória sempre aqueles olhos miúdos e brilhantes
a fitar-lhe com carinho... Desenhavam-se então em sua mente, as vezes
que se punha a correr, e a brincar nos trigais de ouro, com os cabelos desnastrados
ao vento... Um sorriso de menina, e um olhar de mulher voltado com toda a sua
paixão, tão própria de seu temperamento, àquele
homem de cenho fechado e olhos impenetráveis, que somente a sua brejeirice
fazia dele brotar um laivo de alegria num tímido sorriso... Lembrava-se
de seu vestido amarelo como o sol, os cabelos dourados como o mel silvestre,
e os olhos verdes, brilhantes quais duas soberbas esmeraldas, irradiando todo
o seu amor para aquela figura austera e adorada, que ela havia concebido como
seu pai , seu irmão e seu amante... Ela nunca o esquecera mesmo passados
tantos séculos... E o reencontrou... E o reconheceu... Mas essa... Ah,
meu amigo... Essa é uma outra história..."