A Garganta da Serpente
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Amigas de infância

(Adelaide Amorim)

Chamava-se Silvina e, quando apontava no portão da pequena vila, uma aura qualquer de susto e mistério emanava de sua figura longilínea, excepcionalmente alta para uma mulher. As meninas se entreolhavam e sem palavras recolhiam depressa os brinquedos e corriam para a porta da casa de Marília, bem em frente ao corredor de entrada.

A tarde quieta da hora do lanche estava fraturada, tudo ficava em suspenso, como se uma grande cortina de vidro se interpusesse entre os olhos e a realidade. Imóveis e atentas, elas sorriam do medo que era como uma brincadeira excitante, no silêncio de passarinhos inquietos. Os corações estalavam, e quando ela chegava a menos de cinco metros corriam para dentro e chamavam dona Bonina, falando todas ao mesmo tempo. Dona Bonina então largava a costura, o bordado ou o café que estivesse fazendo e vinha com elas para a porta, onde dona Silvina já a esperava, mexendo na bolsa de pelica preta, que elas cheiravam disfarçadamente. Tirava um bloquinho de papel de dentro do forro acetinado; um bloquinho onde havia algumas letras impressas no alto de cada folha, que ela percorria com dedos delicados, longos e muito brancos, quase transparentes. Tinha um jeito manso e seco de ser firme, sabendo com certeza tudo que devia fazer: pegava a caneta-tinteiro também preta, desenroscava a tampa de gancho dourado e punha nas linhas em branco umas palavras que eram como arcabouços de pequenas asas. Tanta elegância e frieza desafiavam as três meninas, reduzidas à condição da mais decisiva humildade e no entanto impacientes. Protegiam-se atrás da mãe de Marília, a coleguinha estrábica cuja casa dona Silvina visitava todos os meses.

Dona Bonina puxava conversa com ela, e isso era o melhor de tudo. Chegavam bem perto, quase podiam sentir o calor de seu hálito, mas o sorrisinho que a tornava mais distante as desconcertava e elas paravam, atentas. Um sorriso de Mona Lisa, segundo dona Bonina, que lhes mostrava uma reprodução da Gioconda emoldurada de madeira escura e entalhada junto ao móvel da sala de jantar que ela chamava de étagère, caprichando na pronúncia francesa. Apertavam-se no pequeno espaço entre a porta e as duas mulheres, tentando tocar de leve na roupa da estranha viúva, sem que ela percebesse. Sabiam seu estado civil desde a primeira vez em que tinha sido vista na vila. Dona Bonina gostava de ouvir seu linguajar elegante, sem rival entre suas vizinhas simplórias, e se tornava quase alegre diante da figura etérea, esquecida do cotidiano e das meias a cerzir. As meninas captavam a distância sideral entre seu mundo e o da cobradora. Sua presença era o imponderável, preenchia a salinha de entrada de pé-direito alto e insinuava um tipo de frio que no entanto não chegava ao corpo. "Quase senti cheiro de éter", explicou Zuzu, na primeira vez em que a viu. O globo leitoso da luminária suspensa do teto parecia flutuar, como se pairasse no espanto de quem sabe que espera alguma coisa extraordinária. Nada era familiar, na presença de dona Silvina, e ninguém abria a boca, exceto dona Bonina. Os olhares pediam licença ao mistério ali, ao alcance da mão, e quando ela recolocava o bloquinho na bolsa e fechava a pressão vagamente dourado com um clique seco, o meneio fascinante daquela mão de artista, segundo a mãe de Marília, era acompanhado por três narizes cautelosos. Os olhares se erguiam com uma espécie de profundo e admirado receio, uma curiosidade quase incontida. O mais intrigante era a sensação de já saberem tanto sobre ela, e de que tudo aquilo parecesse coisa familiar e antiga sem perder a estranheza e o toque de magia. Dona Silvina era a encarnação de um mistério qualquer, um fato consumado e impossível de explicar.

Às vezes ela trazia na cabeça um véu curto de filó negro, igual aos que as mulheres usavam na igreja naquele tempo. Falava baixo, num tom sem lamúrias, e que no entanto deixava perceber sofrimento. Expressava-se com muita correção, usava palavras tão exatas que pareciam se projetar e gravar-se nas superfícies mais próximas. Ouvida atentamente, sua voz parecia expressar uma dor inacessível às pessoas comuns, e era por assim dizer tão perfeita no timbre e transcendente nas modulações que suscitava certa inveja. Adivinhava-se uma exemplar magreza por baixo dos bons tecidos que, em cortes de caimento correto, exalavam um cheiro concentrado de coisa guardada e valiosa. "Ela tem um perfume escuro", definiu Zuzu certa vez, com grande propriedade. Os lábios eram finos, e tinham uma cor que ficava entre a da carne-seca antes do cozimento e o tom das rosas que dona Bonina cultivava à entrada da casa. O rosto muito branco, de pele um pouco penugenta, destacava um nariz fino, quase reto, e os olhos verde-água bem claros onde a luz se recolhia com um misto de espanto e recato. O resto era um negrume só, destacando as mãos alvas, longas, de veias azuis nítidas, que exprimiam um jogo de sisudez quase coreográfico.

Não seria justo chamá-la de macabra, mas nada em dona Silvina aludia à vida e à alegria. As meninas esperavam que ela chegasse ao portão da rua para fazer novas perguntas a dona Bonina. Há quanto tempo estava viúva, quantos anos estivera casada, como era e qual o nome e a profissão do falecido? Por que não tirava o luto, por que usava véu para andar na rua, onde morava, o que vinha cobrar? Dona Bonina informava algumas coisas, mas logo se cansava ou ficava evasiva e elas voltavam aos brinquedos até a hora de se separarem para o jantar. A figura da tarde porém se impregnava no cotidiano simples das três, voltava aos secretos recantos de seus pensamentos e às vezes inaugurava um ou outro medo que elas iriam comentar mais tarde. Podia ser um sonho ou uma sensação estranha. Zuzu já não ia mais sozinha ao banheiro, Marília pedia de vez em quando para dormir no quarto dos pais. Todas as informações de dona Bonina seriam insuficientes para dissolver aquela inexatidão.

As visitas cessaram, não se poderia precisar bem quando, como ou por quê. Um longo período sem sua presença diluiu a nitidez daquela imagem na memória das meninas. Marília, curada do estrabismo, formou-se em engenharia, casou e ganhou um prêmio inacreditável na loteria. Zuzu estudou letras e enveredou pela militância política. Foi presa nos anos setenta, anistiada nos oitenta e aprovada num concurso para professora numa universidade pública. Isa, a mais nova, entrou para um convento, desistiu da ideia no ano seguinte e casou com o dono de uma oficina mecânica.

Um dia Isa e Marília se encontraram. Isa carregava uma sacola de supermercado e estava pesando oitenta e cinco quilos cravados. Marília, a caminho do estacionamento onde deixara seu carro prateado, ofereceu-se para ajudá-la, realmente feliz com o encontro. Levou-a até o apartamento no Andaraí, entrou com ela e conheceu três dos cinco garotos de Isa. Disse que fazia questão de não perder contato com aquela família tão simpática. Foi efusiva e carinhosa, a despeito de certo embaraço diante da evidente dificuldade com que a outra levava a vida. Todos os cantos do apartamento e o prédio mal conservado, de portaria decadente, davam a entender uma pobreza um pouco alarmante. Deixou uma nota de dez para cada filho da amiga, que embaraçada não sabia como reagir, protestando debilmente. Mas queria de verdade poder melhorar a vida daquelas crianças a que já queria bem e lhe despertavam certa compaixão. Lembrava-se de Isa ainda pequena, uma menina frágil de cabelos crespos que gostava de rezar ao meio-dia e às seis da tarde. Perguntou por Zuzu e soube que poderia ligar para ela, a outra tinha o número. "Ainda vamos reunir de novo nosso trio", previu contente, acariciando os cachos da caçula.

A outra sorria também, porque a visita de Marília parecia aquecer um pouco sua casa, como se uma centelha se insinuasse por sua presença. Não tinham telefone, porque não conseguiam pagar a conta em dia. A amiga afirmou que viria de novo procurá-la, agora que sabia seu endereço. Depois que ela saiu, Isa sentiu uma onda de energia tomar seus membros e se pôs a arrumar tudo com uma alegria que há muito tempo não experimentava. Guardara o endereço e o telefone de Marília, e esse fato lhe parecia uma garantia para o futuro, não saberia dizer exatamente por quê. Não pretendia apelar para sua generosidade, de certa forma era o contrário: a outra a desafiava. Redobrava sua coragem o fato de a amiga estar tão bem, e queria ela mesma viver sua vida provando a si e ao mundo que não dependia dos outros. Não pensava em quantidades, mas no tipo de vida que poderiam levar, ela, o marido e os filhos, com aquilo de que dispunham. Limpou os móveis, lavou as crianças e pôs a mesa do jantar como se fossem receber alguém. Os filhos a olhavam como se ela não fosse a mesma, e faziam perguntas sobre a tia que acabara de sair. Isa se sentia tão bem disposta que começou a cantarolar, coisa inédita para eles. Entre panelas e pratos, ela nem gritou com o menino que virara um copo com água no sofá. O marido a encontrou penteada, usando o vestido estampado que ele lhe dera no dia do aniversário.

As três se encontraram duas semanas mais tarde, em casa de Zuzu, e cada qual fez questão de colaborar para o lanche de reencontro. Isa deixou os menores em casa com o maior, já com dezesseis anos, encarregado de servir o jantar ajudado pelas três meninas. Marília vestiu-se com simplicidade, não fossem as amigas pensar que ela se julgava melhor por ser a mais abastada, e levou uma torta de nozes, receita de sua mãe. Apesar das precauções, dava para perceber seus cabelos bem-tratados, as mãos impecáveis, o sorriso de cinema, a postura e os gestos de mulher fina. Mas a simplicidade com que conduzia a conversa e a alegria que demonstrava a aproximavam das amigas e recriavam a intimidade dos velhos tempos. Zuzu era ainda bonita, vivia com algum conforto, mas sempre fora meio displicente com a aparência e não dedicava muito tempo a se cuidar. Isa conseguira até perder um pouco de peso naquelas semanas, e a alegria geral tornava o lanche um sucesso. Contaram-se coisas muito íntimas, comoveram-se com as histórias que surgiam em volta da mesa, falaram de futilidades e falaram mal dos outros, conhecidos ou não de todas elas. Falavam com absoluta liberdade, entregues à conversa, esquecidas da vida, às vezes com certa ânsia, em narrativas cruzadas, falando ao mesmo tempo. Estavam atentas, inquietas, quase brilhantes, o batom desaparecendo dos lábios meio engordurados, e manejavam os guardanapos como num pequeno bailado de lenços. Falavam pelas mãos, pelos gestos, e os momentos de silêncio não as afastavam, mas incidiam nos pontos para onde convergiam os pensamentos que iam brotando durante o encontro. Perscrutavam-se ligeiras, servindo-se de mais um pouco de chá, avaliando superficialmente uma confissão, uma vulnerabilidade, lembrando-se das tias, de colegas de escola, do vizinho que cantava no banheiro. Riram muito de coisas que a um estranho poderiam não parecer assim tão engraçadas, mas suscitavam pequenas recordações de um tempo em que tudo pode provocar acessos incontroláveis de riso. Reviveram as emoções do dia em que Horácio, o gato angorá de Isa, fora atropelado, e tornaram a indignar-se com as surras com que a vizinha da casa dois desancava o filho, filho único ainda por cima, que acabou maluco, coitado, dando um tiro no ouvido. E como Zuzu guardasse discos de Gregório Barrios, suspiraram ao som de Una Mujer, Tú me acostumbrate, Dos Almas. Quase sentiam de novo o cheiro da cerca viva de guaco que separava a vila do pomar ao lado, quase o som do vento naqueles ramos de goiabeiras e abacateiros, a mangueira imensa, pesada de frutas, os pés de sapoti, abio, jambo, carambola. Sem falar nas laranjeiras, bananeiras e nas jacas moles que os moleques iam roubar. E na entrada da vila, aqueles pés de mamona com o caroço pintado, o pé de fícus, que jogava sementinhas secas e a gente ficava de mal porque a outra tinha estalado mais sementinhas que a gente, e estalar aquelas sementes era um regalo. As coisas daquele tempo tinham um valor tão diferente das de agora... Seu valor se media pelo prazer puro e simples que podiam proporcionar, como o estouro das marias-sem-vergonha do caminho, as brincadeiras de estátua, roda, amarelinha, pique-esconde, a batatinha-frita, queimado... Lembravam da garotinha da casa em frente, que morreu de tétano porque caiu na terra e feriu a boca, quando a campainha do portão soou.

Zuzu foi olhar quem era. E como a mesa do chá estivesse junto à janela que dava para a varanda, as outras duas se esticaram para olhar o portão, a uns dez metros de distância, no início de um caminho de lajotas. A esse olhar estremeceram, como se o coração tivesse sido fortemente sacudido por um golpe vindo de fora. Zuzu ficara de pé, sem desviar os olhos. Estava pálida e parecia indecisa, presa ao chão. Isa tinha a boca aberta e o rosto intumescido como quem engasga. Depois lentamente trocaram um olhar incrédulo, e logo uma espécie de violência vibrou no ar da sala. Zuzu fez um movimento para sair de onde estava, e Marília lhe acenou, sem deixar de olhar o portão, enquanto Isa a segurava pelo braço. "Não precisa ir, Zuzu. Não está mais lá."

Ela tornou a sentar, largando o corpo como se alguma desgraça a houvesse atingido. Restos de torta e biscoitos entristeciam nos pratos, o chá esfriava no fundo das porcelanas brancas. Ninguém dizia nada. O relógio da entrada bateu cinco horas. As três então pareceram desencantar. "Ela chegou mais tarde hoje", tentou gracejar Marília. "Credo", fez Isa, se benzendo várias vezes. "Nunca pensei que..." "Gente", murmurou Zuzu, "o que será isso?"

Os medos da infância tinham chegado para o chá. Comentaram ainda um pouco a visita inesperada, e acabaram marcando outra reunião para tratar do assunto. No íntimo, cada uma delas estava certa de que aconteceria de novo.

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