O enganador,
foi enganado.
Não tomava banho a mais de semana. Deixara também crescer a barba
cerrada por mais de dez dias, o que dava-lhe um aspecto de mendigo, muito mais
acentuado pela roupa imunda, que de propósito, usava nesses dias de preparação.
Usara-a todos estes dias, andando à pé pelas ruas de São
Paulo, juntando ao seu suor azedo, os efeitos da poluição.
Nesses últimos dias, quando andava pelas ruas, percebia divertido, o
quanto causava repulsa nas pessoas. Nem precisava da cachaça para que
o seu plano desse resultado, mas resolveu que a usaria.
Dormiu até mais tarde. Sentiu o estômago queimar, mas já
estava resolvido que não tomaria café da manhã nesse dia.
Tomou água somente.
Nem lavou o rosto. Já estava vestido com a mesma roupa, e o trabalho
que teve foi calçar os sapatos também imundos.
Pegou a garrafa de cachaça que havia guardado intacta, e mesmo no gargalo,
tomou um enorme gole. Engasgou e tossiu. Respirou pela boca, para amenizar o
queimor que a bebida dava. Percebeu que não suportaria beber muito como
havia planejado. Resolveu fazer diferente: derramou o líquido na cabeça
e na roupa.
Saiu para as ruas, sentindo ele próprio, repugnância pela sua sujeira.
As pessoas evitavam passar perto. Assumiu uma postura de mendigo, e desceu da
Praça da Sé para o Parque D. Pedro.
Antes mesmo de entrar na igreja, ouvia o alarido do povo gritando suas orações
e aleluias, comandados pelos pregadores que também gritavam pelos microfones.
Ainda do lado de fora, contemplou a fachada da igreja. Era mesmo enorme o templo.
Devia ter pesquisado, para certificar-se de que esse era o maior templo da América
Latina. Talvez o maior de todas as Américas. Talvez o maior do mundo.
Isso não importava agora. O que importava, era terminar logo sua tarefa,
e poder tomar um belo banho, fazer a barba e trocar de roupa.
Assumiu agora a postura ensaiada de bêbado, e entrou cambaleando um pouco.
Os homens estavam assentados separados das mulheres, e resolveu ficar na fileira
feminina. Então, um homem vestido pobremente, embora de paletó
e gravata, ia se aproximando por certo para tentar tirá-lo do lugar errado,
mas desistiu, quando percebeu o mau cheiro.
Paulo começou a resmungar em voz alta, para chamar mais a atenção.
Sabia que não precisava tanto, mas se divertia com o que estava fazendo,
mesmo incomodado com a sujeira e o mal cheiro que tinha.
Sentiu vontade de urinar, mas pensou que não fosse bom ir ao banheiro.
Teve uma ideia que faria com que o seu plano funcionasse melhor. Dava
para esperar mais um pouco, e resolveu prestar atenção no que
estava acontecendo no culto.
O pregador gritava a todo pulmão, com a boca encostada ao microfone.
A voz era característica de todos os pregadores da igreja. Paulo já
tinha notado em outras denominações, que o jeito de falar, de
orar, de pregar, cantar, era mais ou menos padronizado em cada denominação.
Nessa, as vozes deles eram como uma imitação do chefe deles, como
acontecia em outras denominações também:
_ Aleluia! Glória a Deus, irmãos! Eu sinto o fogo do Espírito
derramando neste lugar! O Espírito Santo está falando aqui no
meu ouvido, que hoje é o dia da bênção. Jesus vai
operar maravilhas nesse lugar.
Gritos de aleluias e glórias a Deus, ecoavam por todos os cantos.
_ Hoje, o Senhor vai curar os doentes, vai solucionar os problemas financeiros,
os problemas conjugais, ô glória Deus! O Senhor está me
dizendo que vai dar a bênção a todo o que não duvidar.
Quem é que acredita que o Senhor está aqui, levante a mão.
As mãos apareceram no ar aos milhares de pares.
_ Quem acredita que o Senhor faz milagre, diga aleluia!
Milhares de vozes se levantaram, numa confusão de sons ensurdecedores,
que duraram um tempo para serem controladas pelo dirigente.
A vontade de urinar era enorme nesse momento, mas Paulo estava decidido que
esperaria mais um pouco. Voltou a atenção ao que estava acontecendo.
O pregador tinha reassumido o controle da situação:
_ Quero ver quem é que tem fé para receber a bênção
que veio buscar. Quem tem fé que hoje Jesus vai abençoar a sua
vida, levante a mão.
Muitas mãos.
_ Agora Jesus quer que você prove que tem fé. Todo mundo diz que
tem fé. Até os incrédulos que andam fazendo arruaça
nos bares, dizem que tem fé. Até as prostitutas e os drogados
dizem que tem fé. Mas Jesus quer provar se você tem fé mesmo.
Ele quer saber agora, se você está mentindo ou não. Porque
o Espírito Santo está dizendo que hoje aquele que crê de
verdade, vai levar a maior bênção de sua vida pra casa.
E quem é que pensa que Deus mente. Se nesse momento você duvidar
que Deus tem poder par te curar, para te livrar do cigarro, da droga, do alcool,
da dependência dos remédios, é o Diabo que está soprando
em seu ouvido. A Palavra de Deus diz: "faça prova de mim".
Se você diz que crê, está na hora de provar que o Inimigo
não está te enganando.
Os gritos da multidão aumentavam com a empolgação do pregador.
A vontade de urinar de Paulo, também aumentava. Já estava sendo
tentado a ir ao banheiro, mas pensava que não seria bom. Também
achava que não estava na hora de agir. Ficou bem quieto, para suportar.
O pregador continuava:
_ O Senhor está me dizendo para fazer a prova da fé. Quem é
que quer mesmo receber um milagre agora, levante a mão. - Uma quantidade
enorme, levantou. Ele continuou: - O Senhor está falando comigo agora,
e manda perguntar a você se tem coragem de dar mais de cem reais que você
tem no bolso, para receber a bênção. Quem é que tem
coragem? É o Senhor provando sua fé!... Mais alguém, quer
colocar sua fé à prova?! Quem aposta no poder de Deus, pode vir
aqui à frente!...
Muitos vieram. Paulo queria contar, mas a vontade de urinar fazia com que ficasse
impaciente. Esforçava-se para esperar mais um pouquinho. " Mais
um pouquinho ", dizia para si mesmo.
_ Agora o Senhor quer saber quem é que pode dar cem reais pelo milagre
que veio buscar!... Ou você acha que cem reais é muito, pela bênção
que você está esperando a anos?!... Ou você acha mais barato
ficar anos indo aos médicos, à farmácia, aos advogados,
aos candomblés, à macumba?... E o sofrimento, de anos e mais anos,
com os problemas sem nenhuma solução!... Se você quer duvidar
de Deus, não precisa fazer nada, é só ficar com o seu dinheiro,
e com isso você está respondendo calado, ao apelo do Senhor!...
Outro tanto levantou a mão.
_ Venham para cá. Aleluia, irmãos!... Estou sentindo que o Senhor
já está operando. Se você tem vontade de provar sua fé,
não fique parado aí, porque é o Maligno que está
te segurando!... Você precisa lutar contra o inimigo de todos nós!...
Mais umas pessoas se levantaram e seguiram para a frente do púlpito.
Então o pregador baixou a quantia, e chamou quem tinha coragem de provar
sua fé com cinquenta reais. Quando os que eram chamados com esse
quantia, ele baixava para vinte, depois dez, cinco, e um real. Quando uma multidão
já estava na frente do púlpito, ele disse:
_ Sei que o Senhor já começou a fazer milagre. Eu sinto o Espírito
de Deus operando, aleluia, glória a Deus!... Abram uma roda bem grande,
porque eu quero ver os que receberam os milagres bem aqui nomeio da roda.
A roda foi aberta, com a ajuda de uns homens que seriam oficiais da igreja.
Muitos se dirigiam para o meio, chorando e dando glórias a Deus. O tumulto
foi enorme. Pessoas se dizendo curadas. Algumas até exibiam muletas levantadas
acima das suas cabeças. Um moço levantou a cadeira de rodas que
antes o carregava.
Paulo vacilou. Por um pouco, perdeu a coragem de terminar seu plano. Como é
que podia explicar tantas curas diante dos seus olhos? Como poderiam estar fingindo,
se podia ver claramente que não. E como pessoas tão simples poderiam
ser atores como muitas vezes essas igrejas eram acusadas?
Não suportaria ficar mais sem urinar. A bexiga doía muito. Tinha
que ir ao banheiro. Talvez esse fosse o sinal de Deus. Olhou ao seu redor. Estava
quase sozinho no lugar. Quase todos que estavam perto dele antes, tinham ido
para a frente, ou tinham fugido do mau cheiro. Levantou-se e olhou para a placa
que indicava o mictório. Seria difícil a caminhada até
lá. Começou a caminhar com dificuldade. Percebeu que não
suportaria. O barulho era muito grande... Sentiu uma tontura... Seria a fome,
ou era Deus o castigando por ter planejado tudo o que planejara?...
Quando tentou caminhar, o pregador percebeu, e falou com ele:
_ O Senhor está me mostrado que quer libertar esse homem. Deus me mostrou
esse homem em sonho na noite passada. Ele está com uma doença,
que vai ser curada nesse momento, aleluia! Vejam, irmãos, que ele quase
não pode andar. Mas o Senhor já me mostrou que vai te curar agora.
Venha até aqui buscar a sua bênção.
A oportunidade surgiu, e Paulo criou coragem. Era o centro das atenções.
Cambaleou um pouco, e assumiu de vez a postura de bêbado. Caminhou devagar,
soltando a urina que escorria quente pelas suas pernas, e escorria pelo chão.
Desapareceram as dúvidas. Agora não sentia mais que estava afrontando
Deus, e uma força enorme se apoderou dele, e tinha certeza de que completaria
seu plano. Se fosse Deus mesmo quem estivesse mostrando tudo para aquele homem,
ele saberia que era uma farsa.
Sentia uma sensação de euforia, que aumentou a sua atuação
como ator.
E representou muito bem seu papel: Enrolou a língua, mudou a voz, e gritou
a todo pulmão, apontando para o pregador:
_ Desça daí, seu filho de uma puta! Eu vou acabar com você,
seu filho duma puta! Você é um grande mentiroso, seu enganador!
- As palavras saiam de sua boca com uma força enorme, e uma sensação
de raiva, como quem fala se está diante de algo que julga extremamente
injusto. E ele tinha justamente essa sensação.
Um instante, e já estava rodeado dos oficias da igreja. Ignoraram o mau
cheiro, e o agarraram pelos braços. Paulo esperneou violentamente, e
derrubou dois dos homens ao chão.
O pregador gritava entusiasmado de cima do púlpito:
Estão vendo irmãos, o que é que o Inimigo faz com uma pessoa?!
Vejam a que estado ele pode levar um ser humano! Mas o Senhor é ou não
é maior que Satanás, irmãos? Venham com ele para cá.
Quero esse bicho aqui perto... Vamos ver quem é que tem mais poder.
Meia dúzia de homens arrastavam Paulo para perto do púlpito.
O povo gritava aleluias e glórias a Deus. Era sempre assim quando os
chamados filhos de Deus, viam o que pensavam ser a ação do diabo.
Paulo se debatia, fingindo não querer ser levado. Os braços doíam,
machucados pelos que o agarravam com força. Como ficara muito tempo prendendo
a urina, ainda não tinha terminado, e urinava de vez em quando um pouquinho.
Rosnava, como se fosse um animal feroz.
_ Quem é você? - perguntou o pregador.
Paulo só rosnou em resposta. Então o pregador acostumado à
cena concluiu:
_ Que é que está fazendo neste homem, Satanás?
Paulo vira muitas vezes como é que as pessoas endemoninhadas faziam e
falavam, e pensou a princípio imitá-las, mas resolveu não
falar mais. Não havia necessidade. Continuou somente rosnando.
_ Não quer falar, Satanás? Mas você vai ver quem é
que manda na igreja de Deus. Em nome de Jesus, ajoelha aí!... Ajoelha,
Satanás!...
Paulo continuava em pé, mas subjugado pelos homens que seguravam seus
braços torcidos para as costas.
_ Ajoelha, que eu estou mandando em nome de Jesus!...
Paulo estava resolvido não obedecer. Tinha visto muitas vezes a mesma
cena. Sabia que eles queriam mostrar que tinham autoridade, mas estava resolvido
que não colaboraria, mesmo porque era somente uma representação
que fazia, e sabia que não havia nenhum espírito maligno nele.
Nesse momento desapareceram as dúvidas, e não teve receio de Deus.
_ Ajoelha, Satanás, que eu estou mandando!...
De repente, Paulo sentiu as mãos dos homens forçá-lo, e
ele não teve jeito, a não ser cair ajoelhado. Sentiu os joelhos
doerem com o baque no chão de concreto. Ele continuava rosnando, totalmente
consciente do seu papel.
O pregador gritou eufórico com a vitória, e o povo acompanhou
glorificando a Deus.
O homem ainda tentou conversar com o Inimigo, mas como não obtinha respostas,
resolveu terminar a tarefa, expulsando o demônio. Paulo reagiu como se
estivesse acordando, e disse:
_ Que é que está acontecendo? Onde é que estou? Que roupa
imunda é essa?
_ Está liberto, - disse o pregador. Todos ao mesmo tempo, dava glórias
a Deus.
Muito tempo depois, Paulo ainda se lembrava satisfeito, de como é que
tinha entrado no "curral". Na verdade, tinha se "convertido"
muitas vezes, mas nenhuma daquelas outras "conversões", fora
tão espetacular como essa...
(Capítulo do livro Ai Das Grávidas!...)