Amiga, ela era de verdade. Onde eu estava, lá estava ela também.
Se não estava, chegava na hora certa, como acontecia todos os dias quando
eu ia sair da escola. Fazia sempre do mesmo jeito. Me acompanhava de manhã,
e quando tocava a campainha da hora da saída, ela estava lá, e
quando eu via, aparecia ao meu lado.
Nas brincadeiras, nas caçadas, nas pescarias, era a mais animada. Parecia
não se cansar nunca. E era incrível, pois se eu vestisse a roupa
de jogar futebol, ela antes mesmo de me ver na porta, já sabia, e me
esperava já pros lados do campinho de terra batida. Se eu pensava em
ir pescar, ela me esperava do lado do riacho... E se eu jogava futebol com a
turma, ela estava lá no barranco do campinho, me esperando. Obediente,
só entrava quando acabava a partida.
Hoje eu perdi um pouco o entusiasmo, porque o latido da minha cachorrinha, era
um incentivo melhor do que o da torcida quando aplaude. Aliás, não
era sempre que tinha torcida, mas a minha torcedora não faltava. E quando
ela latia, eu pegava a bola, e driblava como ninguém, me sentindo um
Pelé.
Lembro que o final do campeonato, foi uma festa. E quando eu me vesti para o
jogo, ela pulou de alegria, e rodopiava ao meu redor, e assim que eu comecei
andar a caminho, ela saiu correndo, e já foi avisar pros meus companheiros
que o maior ídolo dela estava chegando.
O nosso time era o melhor de todos. Não era só eu que via assim.
Além de mim, tinha ainda o Tanajura, o Pedro Bola, e todo mundo dizia
que nós éramos os craques do time.
A Jade, era a torcedora símbolo. Ela estava em todas e é por isso
que os caras do outro time faziam uma gozação, dizendo que o nosso,
era o timinho da cachorra. E eu ficava chateado, porque sentia a gozação
nas palavras.
Mas foi justo nesse dia, que enfiamos cinco neles. Ensinamos praqueles babacas,
o que é um timinho. Dois do Pedro, dois do Tanajura, e no finalzinho,
eu calei a boca deles com um golaço, se bem que meio sem querer. Mas
o importante, é que a bola bateu na minha cabeça, e entrou.
Precisavam ver a nossa alegria! Eu corri pra comemorar o gol, e dessa vez a
Jade não esperou no barranco, não. Ela correu, e pulou em mim
feito gente, e foi a maior comemoração do futebol brasileiro.
Aí eu aproveitei, e falei pros caras que pelo menos a minha cachorra
comemorava... "Porque a gente ganhava..." - eu falei. "E de goleada",
- ainda provoquei.
Eles apelaram feio. E daí pra frente, entravam na gente pra quebrar,
e por fim, começaram a brigar e a dar porrada...
Mas a minha super-Jade entrou em ação, e avançou mostrando
os dentes ao primeiro que me empurrou. Rasgou o calção de um outro,
e rosnou feio, mas muito feio mesmo, pra uns outros cheios de confusão,
mas eu falei com ela, e ela não mordeu ninguém. Aí eles
correram do campinho, com a desculpa de que nós colocamos cachorro neles...
E nós comemoramos o título na maior alegria.
Foi nesse dia, que o Totonho, o goleiro do nosso time, quis fazer um negócio
besta comigo:
_ Te dou meu carrinho de rolimã, em troca "dessa cachorrinha".
Eu fiquei calado, pra começo de assunto, porque não gosto que
chamem a minha Jade desse jeito. Aí o Totonho insistiu:
_ Ué, se você acha pouco, eu te dou dois carrinhos em troca dela.
_ Coitadinha da Jade. Eu acho que ela entendia muito bem o que a gente falava,
porque me olhou com aqueles olhinhos bonitos que dava dó de ver. Aí
eu até fiquei meio nervoso com o Totonho, e disse pra ele:
_ Só se você me der mil carrinhos.... Mil, não. Um milhão
de carrinhos...
_ Onde já se viu, tá maluco?!... Ela não vale nem dois...
_ Então, melhor, porque eu fico com a minha Jade. Porque ela é
a minha irmã, tá sabendo!... Eu até acho que ela é
até um pouco gente, ta sabendo?...
Foi nessa hora, que eu entendi que era verdade, porque a minha Jade, abanou
o rabo muito satisfeita com o que eu disse.
Outro dia, perto do natal, minha mãe fez um pudim de ovos. Comemos pra
valer e a Jade também comeu, porque ela comia tudo que nós comemos.
E esse seria o melhor natal da minha vida, porque o meu time foi campeão,
e eu tinha cachorrinha mais linda do mundo, e tinha a mãe mais... mais...
Melhor do mundo, porque deixava eu ter uma cachorra. Eu nem ligava pra esse
negócio de árvore de natal, presente, e outras coisas que os meus
amigos falavam. Eles tinham isso, mas só eu tinha a minha cachorrinha
que valia muito mais que muitas árvores, muitos presentes, e milhões
de carrinhos de rolimã.
Mas lembram do pudim? Pois é, no outro dia, eu fiquei muito triste, porque
a Jade não veio me receber na porta de manhã. Ela estava sempre
na porta, na hora de ir pra a escola. Chamei seu nome, e ela não veio.
Rodeei a casa, e ela estava lá deitada, assim meio cansada. Falei com
ela, e ela me olhou com um jeito muito triste, mas nem levantou a cabeça.
Coloquei ela em pé, mas ela caiu. Eu chorei, e coloquei de novo, mas
ela caiu, e eu chorei mais, porque esqueci que a minha mãe falou que
homem não chora.
Minha mãe disse que foi o pudim. Aí eu falei que queria levar
a minha Jade pro médico de cachorro, mas a minha mãe disse que
era muito caro, e que não tinha dinheiro. Aí eu falei pra minha
mãe, como é que ela foi no médico no outro dia!... Ela
ficou calada.
Aí no dia seguinte, eu pedi um dinheiro emprestado pro Azeitona, pro
Janjão, e pro Tanajura, e peguei mais umas moedas que eu tinha escondido
pra comprar figurinha da seleção, e corri lá em casa pra
buscar a Jade pra levar pro médico. Quando eu cheguei em casa, ela estava
muito magrinha, e umas moscas ficavam em cima dela, e eu tirei a minha camisa,
e abanei a minha cachorrinha, pras moscas não pousar nela. Aí
a Jade me olhou com aquele olho de Jade mesmo, e eu fiquei sabendo que ela gostou.
Então eu abracei a minha irmã, e falei que ia levar ela no doutor.
Ela não falou nada, mas me olhou com aqueles olhos assim... muito fraquinha.
E eu saí com ela, e corri para saber onde é que tinha um médico
de cachorro. Mas quando eu cheguei, o doutor não estava. Uma placa dizia
que só abria depois do natal.
Jade quase não respirava mais. E eu vi que ela tinha sede, e enchi a
mão da água da torneira da praça, e ela bebeu um pouquinho
na minha mão.
Voltei pra casa chorando com a minha irmãzinha, e antes de minha mãe
chegar, eu vi o tempo exato que parou de respirar, com aqueles olhinhos me olhando...
Eu não sabia o que fazer. Tinha uma dor muito grande rasgando aqui no
meu peito. Não, não era dor, era um vazio. É isso mesmo,
eu não tinha nada por dentro. Eu não estava vivo. Os olhos me
olhavam e eu é que estava morto...
Saí correndo pelas ruas. A música daquele natal era triste como
um hino de morte. Corri. Chorei. E corri, e chorei... Homem não chora
uma porra!... Uma desgraça!... Então eu não sou homem bosta
nenhuma... Sou um cachorro, que cachorro é melhor que gente de bosta...
Então eu pensei em voltar. Enxuguei o meu rosto, e caminhei. Firme. Um
homem. Pensei uma solução para a minha dor, o meu vazio. Pensei
de morrer também. E fui pra junto da minha irmã, e disse:
_ Eu vim morrer com você!...
Deitei do lado dela, e não vi mais nada.
Mais tarde, minha mãe me acordou:
_ Ô meu filho!... Perdão meu amor, eu me atrasei porque a patroa
precisou de mim até um pouco mais tarde. Você já comeu alguma
coisa? Coitadinho, dormindo nesse chão!...
_ Olha a Jade, mãe!... - eu disse.
Só então que minha mãe percebeu que a cachorrinha estava
morta, e começou a chorar. E chorou muito, mas hoje eu acho que tinha
outros motivos além da morte da cachorra. Mas isso é só
um pensamento de criança...
Jamais esqueço aquele natal...
[Os erros de linguagem são propositais]