- Papai, a comida está quase pronta!...
- Que é que tem pro almoço, filha?...
- Estou fazendo arroz que você gosta, carne enroladinha, que você
gosta, e verduras que você gosta...
- E pra você, não está fazendo nada?...
- Eu gosto do que você gosta!... Gosto do que a minha mãe gosta também!...
Minha mãe gosta disso, pai?...
- Gosta filha!... Sua mãe gosta de tudo que nós gostamos...
- Ela vai voltar logo, pai?
- (...)
- Está ouvido, pai?
- Estou sim filhinha, mas não sei quando sua mãe vai voltar... Talvez
demore um pouco...
- Vou colocar no seu prato, e é pra comer tudo, como um menino muito bonito
que você é...
Esse é o diálogo que tenho com minha filha. Ela é uma graça...
Linda como a mãe. A comida que está fazendo é uma dessas
brincadeiras que as meninas gostam, de cozinhar bolinhos de terra como se fosse
comida. Eu tenho que confessar que já brinquei muito disso quando era criança.
Não estranhem, porque há meninos que prefere as brincadeiras de
meninas e vice-versa. Eu sempre gostei de brincar de casinha, de comidinha e porque
não, de boneca... E hoje ainda brinco com a minha filhinha, e sinto prazer
nisso, e por muitas vezes tenho vontade de ser como ela...
Na verdade, eu não sou seu pai e ela não sabe ainda. É uma
história complicada pra contar pra uma criança de sua idade. Quem
ela se refere como a mãe, é que na verdade é o pai... Um
dia eu tenho que ter coragem pra contar pra ela o que realmente aconteceu com
a mãe dela. Com o pai também. Deixe contar pra você:
A mãe da minha filha se chamava Lúcia. O Pai, Sérgio. E eu
sou o Pedro.
Nós três éramos muito amigos quando adolescentes no tempo
de escola. Tínhamos consciência de que éramos diferentes dos
outros garotos da nossa idade, e por isso formamos um clube restrito que eu secretamente
chamava de "clubinho rosa". E embora não quiséssemos assumir
as nossas diferenças, não tínhamos como negar pra nós
mesmos. A Lúcia e o Sérgio se "namoravam" como uma satisfação
dada à família e à sociedade que cobravam deles e de todo
mundo, uma normalidade que não tínhamos.
Eu nunca namorei uma menina. Sempre amei o Sérgio. E embora não
falássemos disso na época eu tinha certeza que ele também
me amava. A Lúcia também sabia disso, numa espécie de entendimento
que temos sem que precise de palavras pra dizer.
Os dois, a Lúcia e o Sérgio, fizeram tudo pra despertar neles próprios
um sentimento que se pudesse chamar de normal. Fizeram tudo mesmo. Tanto que com
a experiência, foi que surgiu a gravidez dessa que hoje chamo de filha,
e que amo como se fosse e tenho a alegria de ouvir da boca dela a palavra papai.
Talvez por causa desse amor é que escondo dela até hoje o que já
deveria ter contado...
A Lúcia teve a menina, depois dos dois terem se casado, (também
para dar satisfações). Mas a nossa amiga ficou estranha desde que
a filha nasceu e quando a menina estava ainda com poucos meses de vida, a moça
suicidou-se.
Passei a morar no apartamento com o Sérgio, e pouco tempo depois nós
estávamos dormindo juntos, como se fossemos um casal.
Um dia, soubemos de um comentário a nosso respeito. Sérgio ficou
muito abatido, e eu sugeri que mudássemos de cidade e o fizemos assim que
terminamos a faculdade. Conseguimos trabalhar no mesmo lugar e compramos juntos,
essa casa que hoje ainda moro com a menina.
Conseguimos a nossa independência financeira em pouco tempo. Mas Sérgio
morreu também. Todos pensam que foi acidente, mas eu sei que ele se matou...
Ele não bebia e o forte cheiro de bebida no carro, foi um golpe para dar
satisfações também. Eu o examinei e não havia nenhum
vestígio de álcool em seu corpo. Mas eu afirmo que sim.
Quando falo da mãe com a menina, é dele que me refiro. Falo do amor
que eu sinto por "ela", e a menina fica encantada de que eu amasse tanto
assim a sua mãe... Mas me falta a coragem pra dizer que a viajem que a
mãe dela fez, foi pra sempre.