Eis o que o sacristão da igreja de Santa Eulália, em Neuville-d'Aumont,
me contou debaixo da latada do Cavalo-Branco, numa bela noite de verão,
bebendo uma garrafa de um bom vinho envelhecido, à saúde de um morto
muito abastado, que ele havia enterrado honrosamente naquela mesma manhã,
sob um tecido cheio de belas lágrimas de prata.
"Meu finado e pobre pai (quem fala é o sacristão) foi, em vida,
coveiro. Era de humor agradável, e isso sem dúvida decorria de sua
profissão, porque se tem reparado que as pessoas que trabalham nos cemitérios
possuem espírito jovial. A morte não os atemoriza absolutamente;
jamais se preocupam com ela. Eu, que lhe estou falando, senhor, penetro num cemitério,
à noite, tão serenamente quanto no caramanchão do Cavalo
Branco. E se, por acaso, encontro um espectro, não me inquieto absolutamente
com isso, porque reflito que ele pode perfeitamente ir cuidar de seus negócios,
da mesma forma que eu dos meus. Conheço os hábitos dos mortos e
seu caráter. Sei a tal respeito coisas que os próprios sacerdotes
ignoram. E o senhor ficaria surpreso se lhe contasse tudo que tenho visto. Mas,
nem todas as verdades são próprias para serem contadas, e meu pai,
que, todavia, gostava de narrar histórias, não revelou a vigésima
parte do que sabia. Em compensação, repetia muitas vezes as mesmas
narrativas e, ao que eu saiba, relatou bem umas cem vezes a aventura de Catarina
Fontaine.
"Catarina Fontaine era uma velha solteirona, que ele se lembrava de ter visto
em criança. Não me surpreenderia se ainda houvesse na região,
até uns três velhos que ainda se recordem de ter ouvido falar a seu
respeito, porque ela era muito conhecida e considerada, embora pobre. Morava numa
esquina da Rua das Freiras, na torrezinha que o senhor ainda pode ver e que depende
de um velho palacete arruinado, que dá para o jardim das Ursulinas. Há,
nessa torrezinha, figuras e inscrições meio apagadas. 0 falecido
pároco de Santa Eulália, Levasseur, dizia aí estar escrito,
em latim, que 'o amor é mais forte que a morte', o que se refere,
acrescentava, ao amor divino.
"Catarina Fontaine vivia sozinha nessa pequena habitação. Fazia
rendas. 0 senhor sabe que as rendas de nossa região eram antigamente, muito
afamadas. Não se conheciam parentes ou amigos seus. Dizia-se que amara,
aos dezoito. anos, o jovem Cavalheiro d'Aumont, com quem noivara secretamente.
Mas as pessoas de bem não queriam acreditar absolutamente nisso e diziam
tratar-se de uma história que fora imaginada, porque Catarina Fontaine
lembrava mais uma dama, que uma operária, conservava sob seus cabelos brancos,
os vestígios de uma grande beleza, possuía um ar triste e se lhe
podia ver, na mão, um desses anéis em que o ourives colocara duas
mãozinhas unidas e que era costume outrora os noivos trocarem. 0 senhor
saberá, daqui a pouco, o que isso significa.
"Catarina Fontaine vivia santamente. Frequentava as igrejas e, todas
as manhãs, qualquer que fosse o tempo, ia ouvir a missa de seis horas,
em Santa Eulália.
"Ora, uma noite de dezembro, quando ela estava deitada em seu pequeno quarto,
foi despertada pelo toque dos sinos; certa de estarem eles anunciando a primeira
missa, a piedosa senhora vestiu-se e desceu à rua, onde a noite era tão
fechada que se não viam absolutamente as casas; claridade alguma era perceptível,
no céu negro. E reinava tamanho silêncio nessas trevas - que nem
penso um cão ladrava ao longe - que a pessoa se sentia completamente separada
do mundo dos vivos. Mas Catarina Fontaine, que conhecia cada uma das pedras onde
pisava e que podia ir à igreja de olhos fechados, alcançou, sem
dificuldade, a esquina da Rua das Freiras com a Rua da Paróquia, no ponto
onde se ergue a casa de madeira que exibe uma árvore de Jessé, esculpida
numa volumosa trave. Tendo alcançado esse local, ela viu que as portas
da igreja estavam abertas e que deixavam sair uma grande claridade de círios.
Continuou a caminhar e, tendo entrado, encontrou-se numa reunião, que enchia
a igreja. Ela, porém, não reconhecia nenhum dos presentes, e estava
surpresa ao ver aquelas pessoas trajadas de veludo e de brocado, plumas no chapéu
e trazendo espada, à maneira dos tempos de antanho. Havia senhoras que
seguravam longas bolsas de castão de ouro e damas com toucados de rendas,
presos com um pente em diadema. Cavalheiros davam a mão a essas senhoras,
que escondiam atrás do leque um rosto pintado, do qual só era visível
um sinal no canto dos olhos! E todos iam colocar-se em seu lugar, sem o menor
ruído, e não se ouvia, enquanto andavam, nem o som dos passos no
lajedo, nem o roçagar dos tecidos.
"As naves laterais enchiam-se de multidão de jovens cortesãos,
de casaco pardo, calções de fustão e meias azuis, que seguravam
pela cintura moças lindíssimas, rosadas, que conservavam os olhos
baixos. E, junto às pias de água benta, camponesas de saia vermelha
e corpinho de atar, sentavam-se no chão com a tranquilidade dos animais
domésticos, enquanto uns mocetões, de pé atrás delas,
alavam os olhos, rodando o chapéu nos dedos. E todas aquelas fisionomias
silenciosas pareciam imobilizadas para sempre, no mesmo pensamento, suave e triste.
Ajoelhada em seu lugar costumeiro, Catarina Fontaine viu o sacerdote caminhar
para o altar, precedido por dois acólitos. Não reconheceu nem o
sacerdote, nem os ajudantes. Começou a missa. Era uma silenciosa missa,
na qual não se ouvia absolutamente o som dos lábios que se agitavam,
nem o rumor da sineta agitada inutilmente. Catarina Fontaine sentia-se sob o olhar
e sob a influência de seu misterioso vizinho e, tendo olhado, sem quase
volver a cabeça reconheceu o jovem Cavalheiro d'Aumont-Cléry, que
a havia amado e que morrera fazia quarenta e cinco anos. Reconheceu-o por um sinalzinho
que ele possuía sob a orelha esquerda e, principalmente, pelo sombreado
dos longos cílios negros em seu rosto. Vestia o traje de caça, com
botões dourados, que ele usara no dia em que tendo-a encontrado no bosque
de São Bernardo, roubara-lhe um beijo. Conservava a sua mocidade e seu
bom aspecto. Seu sorriso ainda mostrava uma dentadura de jovem lobo. Catarina
disse-lhe, baixinho:
- Senhor, vós que fostes meu amigo e a quem dei outrora o que uma jovem
possui de mais precioso, Deus vos tenha em sua graça! Possa ele me inspirar,
finalmente, o pesar pelo pecado que cometi convosco: porque é verdade que,
de cabelos brancos e próxima da morte, ainda não me arrependo de
vos ter amado. Mas, finado amigo, meu belo senhor, dizei-me, quem são essas
pessoas trajadas à maneira antiga, que estão assistindo aqui a esta
silenciosa missa.
"O Cavalheiro d'Aumont-Cléry respondeu com uma voz mais débil
que um sopro e, não obstante, mais clara que o cristal:
- Catarina, esses homens e essas mulheres são almas do purgatório,
que ofenderam a Deus, pecando, a nosso exemplo, pelo amor das criaturas, mas que
nem por isso estão desligadas de Deus, porque seu pecado foi, a exemplo
do nosso, sem maldade. Enquanto separadas daqueles que amavam sobre a terra, elas
se purificam no fogo do purgatório, padecem as dores da ausência,
e para elas esse sofrimento é o mais cruel. São tão infelizes
que um anjo do céu se apiedou de seu martírio de amor. Com o consentimento
de Deus, reúne, todos os anos, durante uma hora da noite, o amigo à
amiga em sua igreja paroquial, onde lhes é permitido assistir à
missa das sombras, segurando-se pela mão. Esta é a verdade. Se me
foi permitido ver-te aqui antes de tua morte, Catarina, tal coisa não se
realizou sem a permissão de Deus.
"E Catarina Fontaine lhe respondeu:
- Bem desejaria morrer para voltar a ser formosa como nos dias, meu finado senhor,
em que te dava de beber na floresta.
"Enquanto falavam assim, baixinho, um cônego muito idoso recolhia as
esmolas e apresentava uma grande salva de cobre aos presentes, que ali deixavam
cair sucessivamente moedas antigas, desde muito tempo fora de circulação:
escudos de seis libras, florins, ducados, nobres com a rosa, e as moedas caíam
em silêncio.
"Quando a salva de cobre lhe foi apresentada, o Cavalheiro depositou um luís,
que não fez mais ruído que as outras moedas de ouro ou de prata.
"Depois, o velho cônego parou em frente de Catarina Fontaine, que procurou
em seu bolso, sem nele encontrar, um real. Então, não desejando
recusar sua dádiva, tirou do dedo o anel que o Cavalheiro lhe dera na véspera
de sua morte, e atirou-o na concha de cobre. 0 anel de ouro, ao cair, ressoou
como um pesado badalo de sino e, ao ruído atroador que ele fez, o Cavalheiro,
o cônego, o oficiante, os agitaram, as damas, os Cavalheiros, toda a assistência
desapareceu; os círios se apagaram e Catarina Fontaine ficou sozinha nas
trevas".
Tendo concluído assim sua narrativa, o sacristão bebeu um grande
copo de vinho, ficou um instante a meditar e depois prosseguiu, nestes termos:
"Contei-lhe esta história exatamente como a ouvi muitas vezes de meu
pai e creio que é verdadeira, porque corresponde a tudo o que tenho observado
das maneiras e dos costumes peculiares dos defuntos.
"Convivi com os mortos, desde minha infância, e sei que eles costumam
voltar a seus amores.
"É por isso que os mortos avarentos vagam, à noite, nas proximidades
dos tesouros que eles esconderam durante a vida. Montam boa guarda à volta
de seu ouro; mas os cuidados que eles tomam, longe de lhes servirem, prejudicam-nos,
e não é raro descobrir-se dinheiro enterrado na terra, pesquisando-se
o lugar frequentado por um fantasma. Da mesma forma, os finados maridos vêm
atormentar, à noite, suas mulheres, casadas em segundas núpcias,
e eu poderia indicar muitos que vigiaram melhor suas esposas depois de mortos
do que o haviam feito em vida...
"Esses são dignos de censura, porque, em boa justiça, os defuntos
não deveriam ser ciumentos. Mas lhe estou contando o que tenho observado.
Por isso é que se deve ter cuidado quando se desposa uma viúva.
Aliás, a história que lhe relatei tem sua comprovação
no seguinte fato:
"Na manhã seguinte a essa noite extraordinária, Catarina Fontaine
foi encontrada morta em seu quarto. E o padre de Santa Eulália encontrou,
na salva de cobre que servia para o peditório, um anel de ouro, com duas
mãos entrelaçadas. Aliás, não sou homem que conte
histórias para fazer rir. E se pedíssemos outra garrafa de vinho?..."
Que tal comprar um livro de Anatole France?![]() Monsieur Bergeret em Paris ![]() A Rebelião dos Anjos |