A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O Exterminador de Almas - CAPÍTULO 1

(André Ferreira Machado)

Évora, Portugal, 1.799


Aquela poderia ser apenas mais uma cidade portuguesa, mas não era. Évora retinha um punhado de fama por sua igreja: a famosa igreja de Évora, cujas paredes eram feitas de crânios e outros ossos humanos - mas principalmente crânios, a maioria sem o maxilar inferior, só uns dois o possuíam.

Naquele tempo, sim, a igreja estava pronta, e missas lá eram celebradas, mas aquela era uma tarde vazia. Não haveria celebrações naquele dia: os padres estavam em um retiro na capital Lisboa, mas os sacristãos e outros auxiliares estavam lá, para cuidar daquela estranha relíquia histórica e, eventualmente, atender os fiéis que lá chegavam. Mas eis que nenhum deles viu o que aconteceu naquele momento.

Entre as paredes de ossos, sentada num banco na primeira fila, uma senhora portuguesa, toda de preto, com um véu cobrindo-lhe a face. Ela segurava um terço em suas mãos e rezava, silenciosamente, as suas preces. Por um tempo, ela foi a única cabeça viva naquele templo, mas em certo momento, um homem chegou silenciosamente.

Ele era branco, alto, com cabelos lisos e castanhos até a altura de seus ombros. Vestia-se todo de preto e ostentava, pendurado no pescoço, uma corrente, com uma caveira de prata nela pendurada. O homem dirigiu-se lentamente até o local onde a mulher estava. Os crânios das paredes pareciam condená-lo com um olhar morto e vazio. Silenciosamente, sentou-se ao lado direito dela, que dava para o corredor, e lá permaneceu em silêncio por um longo período.

A mulher continuou suas orações, ignorando completamente a presença daquele estranho. Rezou Ave-Marias, Padre-Nossos, mas parou na Salve-Rainha, começou a chorar. Retirou um lenço do bolso esquerdo e secou as lágrimas debaixo do véu.

Nisto, o homem pergunta:

- A senhora... perdeu alguém?

- Meu marido...

- Muito tempo?

Ela olha para cima, suspira e balbucia:

- Anteontem.

- A sua dor deve ser muito grande... - a mulher perde-se nas lágrimas - sua saudade também. - o choro da senhora transforma-se em gritos. - Talvez eu possa aliviar a sua angústia...

- Como? - mal consegue pronunciar a pergunta.

O desconhecido estende-lhe a mão direita, colocando-a horizontalmente em frente ao peito da viúva.

- Toque-me.

- O quê?

- Toca-me. Apenas um toque e todo vosso sofrimento acabará definitivamente. Toca-me e põe um fim à tua dor. Toca-me, apenas.

A mulher fica olhando para aquela mão, lisa, por alguns minutos. Na verdade, ela não entendeu o que o homem disse, mas a saudade e a tristeza eram tantas que ela seria capaz de fazer qualquer coisa.

Ela lentamente aproxima sua mão direita da mão do homem misterioso. Os dedos, encobertos por luvas de crochê, tocam aquela palma, escorregam, mas antes que ela completasse movimento, o homem desvia sua mão, encaixando-a na mão da viúva e apertando-a fortemente. O calor da mão transforma-se num frio terrível. A mulher tenta soltar sua mão, mas não consegue, o homem a aperta cada vez mais, a angústia e a tensão chegam ao seu ápice, ela tenta gritar, mas eis que não consegue...

- So... so...

- Calma... já está terminando...

Ela abre a boca, não consegue respirar, ela inspira pela boca e, de repente, o corpo pára, sua pele seca e, da mulher, restam apenas os ossos, um esqueleto, e um crânio, como tantos crânios na catedral de Évora. O homem continua apertando a mão da senhora, que agora são ossos, sem manifestar reação alguma. De repente, os ossos se quebram e a mulher torna-se pó, um pó que desaparece no solo.

O homem continua a olhar para o altar por alguns instantes. A seguir, levanta-se mas, ao virar para trás, vê que um outro homem está olhando para ele, a sete palmos de distância, com curtos cabelos castanhos, também todo de preto, mas com um sobretudo que ia até os calcanhares.

Esse outro homem empurra sua mão direita contra o peito do primeiro, que voa no ar e cai em cima do altar. O primeiro homem levanta-se e corre em direção ao seu adversário, passa a socá-lo, mas o homem de cabelos negros defende-se de todos os seus golpes com os punhos, como se soubesse exatamente o próximo local onde ele atacará. Dessa vez, o segundo homem dá um pontapé contra o peito do que tem a caveira pendurada, que cai sobre um banco. Deitado, ele percebe a existência de um longo castiçal sem vela encostado na parede. Ele estende a mão esquerda em direção ao objeto, que vem em sua direção.

O segundo homem afasta-se caminhando para trás. O assassino da senhora vem, girando o castiçal. O homem com o sobretudo saca uma espada das costas e corre em direção ao outro. Os dois começam uma feroz batalha., que dura vários minutos. O homem de sobretudo fere o rosto do outro, mas o ferimento logo se cicatriza. Ele ergue os braços e flutua no ar. O outro faz a mesma coisa. Os dois giram 360 graus e, num descuido, este consegue arrancar o colar do pescoço do inimigo com a espada.

O lutador de sobretudo preto cai no chão. O outro se lança sobre ele mas, antes que o atingisse, o segundo homem atravessa-lhe a espada no peito. O primeiro começa a tremer. O que está em baixo sorri e, agora, o homem misterioso transforma-se num esqueleto e, a seguir, em pó, em pó que se perde no ar.

O sobrevivente, o de sobretudo preto, levanta-se, joga a espada no chão e caminha para frente. Olha para baixo: o amuleto está caído, Ele ajoelha-se e, cuidadosamente, pega aquela joia. Ele a coloca na palma da sua mão. A caveira começa a brilhar e a irradiar raios de luz. A pele do homem começa a sofrer interferências, como se fossem ondas, ele morde os lábios, a luz aumenta, ofuscando tudo e ele dá o grito mais forte que consegue dar.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br