Rio de Janeiro, 1.814
Eric acordou, revirou-se na cama e deitou-se de lado. Com apenas um olho aberto,
olhou o grande relógio de ponteiros, que marcava oito e quinze. Eric
voltou a deitar de costas, inclinou sua cabeça para a esquerda e soltou
um grande bocejo. Ele queria continuar deitado, continuar dormindo, mas não
podia, não naquela nublada manhã de Domingo.
Sua mãe abriu a porta do quarto lentamente e o chamou com sua doce voz:
- Eric... Oito e quinze...
- Ta, eu já sei... - quase não conseguia pronunciar aquelas palavras
de tanto sono.
- Levanta, meu filho! Vamos nos atrasar para a missa.
- Eu já estou indo...
A mãe retirou-se calmamente. Eric agarrou-se no travesseiro e fechou
os olhos. Que sensação maravilhosa! Quisera ficar ali para sempre,
quisera nunca crescer.
Mas a obrigação sempre falou mais alto naquela família.
Eric olhou novamente para o relógio: eram oito e dezessete. Tomou todas
as forças que possuía e levantou-se. Espreguiçou-se ao
lado da cama, de pé, com apenas aquele camisolão branco que usava
para dormir. Abriu a porta do quarto: sua mãe estava tomando café;
seu pai estava sentado na sala, discutindo alguns negócios. Com quem
seria? Eric logo identificou a voz de Serafim Barcelos. Não gostava muito
dele, nem sua mãe. Foi à frente da porta do banheiro, tentou ouvir
o que seu pai falava, mas o sono ainda o impedia de distinguir qualquer coisa.
Abriu a porta, entrou, fechou-a novamente. Fez suas necessidades, abriu a torneira
de bronze. Por uns instantes, ficou olhando para aquela água que jorrava.
Lentamente, inseriu suas mãos debaixo daquele fluxo. A água estava
fria, muito fria. Tomou coragem, novamente, e levou as mãos ao rosto.
Se havia algum resto de sono, ali, a água deve tê-lo espantado.
Saiu do banheiro e voltou ao quarto. Fechou a porta. Logo percebeu que a escrava
já colocara suas roupas dominicais sobre a cama: roupas de baixo, uma
calça marrom, uma camisa branca, com gola, e uma gravata borboleta. O
garoto logo adivinhou que a escolha de tais trajes deve ter sido obra de sua
mãe.
Fechou a cortina e trocou de roupa. Tinha os cabelos loiros, da cor da palha,
cacheados, mas nem tanto (alguém que não o conhecesse poderia
pensar que ele estivesse despenteado, mas era assim mesmo) e os olhos verdes
da cor das águas. Eric olhou-se no espelho: estava um autêntico
cavalheiro.
Foi correndo para a cozinha, mas sua mãe repreendeu:
- Eric, não corra.
- Sim, mamãe. - concordou com um certo tom de submissão ao sentar-se.
Sua mãe estava dentro de um daqueles grandes e charmosos vestidos de
sua época. Rosa, com detalhes brancos, uma saia enorme. Sempre eram necessários
três ou quatro escravos para arrumar a senhora em seus trajes e para ajeitar
os seus longos cabelos cacheados ruivos.
- Eric, sua gravata está meio frouxa, eu posso perceber. Rosa, arrume
a gravata de meu filho.
- Sim, sinhá.
Rosa era mais que uma escrava: era praticamente um membro da família.
Aliás, esse era um ponto forte naquela residência: nunca, em tempo
algum, ouviu-se qualquer reclamação de maus tratos de escravos.
Os pais de Eric, Norma e Vladimir, nunca apoiaram o uso de violência.
Lá, troncos e outros instrumentos de tortura tinham sido banidos há
muito tempo. Os sócios e colegas do Sr. Vladimir viam tais atitudes com
maus olhos, mas ele sempre afirmava que sabe o que fazia. Bem verdade que nunca,
também, tiveram-se relatos de fugas na residência dos Braesnovenn
- sim, esse era o sobrenome daquela família. Naquela casa, os escravos
eram tratados como homens livres e até esse termo - escravo - era evitado
ao máximo por todos.
Mas Rosa ajeitou a gravata de Eric, que lhe agradeceu e sentou-se. Estendeu
a mão e pegou uma fatia daquele delicioso pão caseiro, passou
aquela geleia de morangos que o estava seduzindo, enquanto Rosa colocava
o leite e o café na xícara.
Eric colocou três colheres de açúcar - era o seu gosto -
e tomou aquela bebida em silêncio. Após um longo gole, deu uma
grande mordida naquela fatia de pão. Enquanto saboreava, sua mãe
foi informando-lhe:
- Hoje, após a missa, eu irei falar com o Padre Ambrósio. Vou
pedir a ele que o coloque como coroinha da igreja.
- Mãe, eu não quero.
- Eric, você já está passando da idade de ser coroinha.
Eu ia fazer isso no passado, mas o gênio do seu pai, aliado ao seu próprio
gênio, não permitiu isso.
- Mãe, eu já disse que não quero.
- Eric, qual seria a razão dessa sua teofobia?
- Nenhuma.
- Então, Eric, faça o que eu mando. É o melhor para você.
Eu ainda sonho com o dia em que você vai ser padre e... - falava com um
certo entusiasmo.
- Mãe... - cortou - já parou para perguntar o que eu realmente
quero ser? Há uma pequena diferença entre o que eu quero ser e
o que a senhora quer que e seja.
- Meu filho, você tem apenas 14 anos... não está maduro
o suficiente para tomar decisões por si só.
- Não acha que essa é uma opinião que eu deva ter?
- Não discuta, mocinho! Tome o seu café, ou vamos nos atrasar.
Odeio chegar atrasada na igreja... ficam todos olhando, - ela saca o seu leque
e começa a se abanar - com aquele olhar... condenatório... toda
aquela gente nos olhando como se fôssemos... criminosos...
- Vês? Esta é a opinião que a sociedade tem de nós.
Mas, a opinião deles não reflete necessariamente a nossa realidade.
- Com certeza querido.
De repente, eles ouvem berros na sala ao lado e uma mesa ser derrubada.
- Mas eles tão se matando?
- Deixe seu pai e o Dr. Barcelos para lá, querido... estão tratando
de negócios.
- Parece que estão lutando, isso sim. Não gosto desse homem.
- Eu também não mas, fazer o quê.
- Milagre ele ter conseguido se formar doutor...
- Ainda bem que doutor advogado... já pensou se fosse de gente?
- Prefiro não pensar nisto.
Eric continua tomando seu café, prepara e come mais um pão. De
repente, seu pai surge, na porta da cozinha, com as mãos na testa. Eric
logo se assusta:
- Pai, o senhor está ferido?
- Não, filho... estou apenas com dor de cabeça... de tanto ouvir
aquele chato falar...
O homem senta-se na cadeira, pega um pão, passa a geleia e dá
umas poucas dentadas nele.
- Qual foi o motivo da discussão, agora? - Eric pergunta curioso, como
sempre foi.
Seu pai suspira e começa a falar:
- Ele quer dinheiro emprestado. Os altos impostos do Governo estão quase
falindo com a sapataria dele. Eu disse que não poderia ajudá-lo
e ele já meteu a boca em todo mundo, disse que ia matar a todos nós
e nos fazer arder no fogo do Inferno.
- Cruzes! - espanta-se Norma.
- Estamos falidos, papai?
- Não, Eric. Só estamos passando por um momento difícil
como tantos outros. Temos uma dívida grande, uma dívida com a
metrópole, mas já passamos por cousas piores. - Vladimir suspira
- E não é de hoje que o Dr. Barcelos vem me importunando, foi
desde que mudamos para o Rio. Eu lhe disse, Norma, que deveríamos continuar
em São Paulo, mas você insistiu em vir para cá!
- É claro... Assim, ficamos mais perto de Mamãe.
- Quer dizer... da sua mãe, porque a minha continua lá, no outro
estado. Só visitamos a coitadinha praticamente uma vez por ano.
- Querido...
- Porque desde que eu me casei, é o que você quer. Onde já
se viu, o homem, o chefe de família, ser submisso a sua esposa?
Quando eles começavam esse tipo de discussão, Eric fechava seus
ouvidos para ambos. Ele concentrou-se em terminar o seu desjejum. Aquela briguinha
só não ia ser longa por causa da bendita missa, a qual Dona Norma
jamais faltara. Bem verdade que, naquele tempo, a mulher tinha um papel submisso
em relação ao homem; naquela época, as mulheres sempre
ficavam dentro de casa, só saíam nos finais de semana, para irem
à igreja, conforme ia ser agora. Não se deve deixar de citar o
fato de que, com a chegada de D. João ao Brasil, muitos destes hábitos
da elite já estavam mudando. Por quê? Porque mesmo pertencendo
à elite, os poderosos ficaram isolados da cultura europeia, acabando
por praticar atos até mesmo chulos para a posição social
que ocupavam. Eric terminou a xícara rapidamente, ficando alheio à
conversa em sua volta, até que seu pai finalmente explicou-lhe, involuntariamente,
a origem de tanto ódio por parte de Serafim Barcelos:
- Porque todo o ódio daquele canalha é sua culpa!
- Ah, agora é culpa minha!
- É claro. Quando chegamos aqui, ele já acertou a compra desta
casa e você me fez cobrir a oferta. Aquele louco nunca aceitou isso e,
desde então, jurou vingança.
- Negócios são negócios, querido, é você quem
diz. Eric, já terminou seu café?
- Sim, mamãe.
- Então vamos, não queremos nos atrasar.
Vladimir intervém:
- Você quer dizer que não quer se atrasar, não é?
Porque eu não vou nessa missa!
- Querido!!! - ela põe o leque em frente aos lábios - Não
diga tamanha blasfêmia! Vamos, sim e vamos todos! Eric precisa receber
bons exemplos, principalmente de você. Não vai passar de hoje,
eu vou falar com Pe. Ambrósio e acertar o curso de coroinha dele.
- Meu amor, eu acho que é o nosso filho que deve decidir o futuro dele.
Eric concorda:
- Eu disse isso à ela.
Norma interrompe:
- Eric, vá lá pra fora me esperar. Eu já estou indo.
- Mas, mãe...
- Sem "mas".
- Sim, mamãe.
Eric retira-se da mesa. Instantes depois, Vladimir dá a cartada final:
- Realmente, querida: você deve começar a dar bons exemplos para
o Eric.
Norma ignora o comentário, continuando a se abanar com o leque.