A Garganta da Serpente
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O EXTERMINADOR DE ALMAS - CAPÍTULO 3

(André Ferreira Machado)

Saindo de casa, Eric andou até o pequeno portão. Dois escravos estavam preparando a carruagem, colocando-a do lado de fora através do portão maior. A carruagem era preta, com detalhes dourados, e sépia por dentro. Ele ficou observando o cotidiano: pessoas indo e pessoas vindo, caminhando para os seus devidos lugares.

De repente, uma pessoa a qual ele muito admirava passou em frente aos seus olhos: era Sofia, filha de um comerciante espanhol do final da rua. Sua admiração por ela era correspondida. Sofia parou em frente ao portão e deu um sorrisinho para o garoto. Com certeza, ela também iria à missa, pois estava com sua melhor roupa. Eric aproveitou para brincar:

- Bom dia, senhorita!

- Bom dia, cavalheiro! - disse segurando as pontas de sua saia e abaixando-se.

A menina chegou um pouco mais perto do portão, mas a voz de Dona Norma chamou o filho. Eric olhou para a esquerda: sua mãe já estava entrando na carruagem. O garoto olhou para Sofia, deu-lhe um sorriso, sem mostrar-lhe os dentes, e foi correndo para o veículo. Ao chegar, o escravo fecha a porta, sobe em seu devido lugar e aperta as rédeas dos cavalos, os quais começam a andar.

- Eric, já falei um Milão de vezes para você não correr.

- Desculpe, mamãe.

- Vai que um dia você cai e se machuca. - ela saca o leque novamente e começa a se abanar - eu não quero nem ver.

Há um breve silêncio dentro daquele veículo. Eric, como sempre, é o primeiro a tomar a palavra:

- O papai realmente não veio?

- Ele virá à missa, sim. Mas você sabe que ele se recusa terminantemente a andar na mesma carruagem que eu, principalmente quando você está comigo.

- Não sei por quê.

- Eu também não. - diz se abanando e arregalando os olhos.

- Mãe, a senhora está brava comigo?

- Por você correr?

- Por eu não querer entrar no clero.

- Eric, escute: eu sei o que é melhor para você. No começo, você vai querer sair da igreja e, depois, fugir do seminário mas, com o tempo, vai acabar gostando!

- Quer dizer acostumando... - fala olhando para a esquerda, com o braço escorado no banco.

- Se você não quer ser padre, o que você quer ser?

- Comerciante. - diz olhando bem sério para ela.

- Comerciante... - Norma deixa de olhar para a direita e encara o filho, espantada. - Comerciante?

- É... Na verdade, eu quero fazer a mesma coisa que o papai já faz, vender açúcar, mas eu quero criar uma marca própria e implantar condições especiais de pagamento... eu quero levar o açúcar para outras províncias e países, coisa que o papai não faz.

- E com que dinheiro você vai fazer isso?

- Isso são apenas detalhes...

- Eric, o governo cobra impostos muito altos, essa sua ideia nunca vai dar certo.

- Obrigado por me estimular...

Norma ia responder, quando a carruagem parou repentinamente. Ela põe a cabeça para fora e pergunta ao cocheiro:

- José? O que houve?

- É D. João VI, sinhá. Ele está passando lá na frente.

Eric se espanta e também põe o rosto na mesma janela que a mãe:

- D. João? Onde? Deixa eu ver! Eu quero ver!

- Lá na frente! - Zé aponta para o horizonte, sorrido.

Eric vê uma carruagem muito enfeitada passando ao longe, rodeada de guardas reais. Várias outras pessoas ao seu redor também pararam para observar a cena. Nisso, uma ideia lhe passa pela cabeça: e se ele pudesse falar com D. João? Ele poderia ir correndo lá e pedir para que ele perdoasse as dívidas de sua família. Então, eles estariam salvos!!!

- José, vá em frente até a carruagem do rei!

- O que é isso, Eric? - espanta-se sua mãe, que o coloca para dentro.

- Mãe, pede pro Zé ir, ele não está indo!

- Para que você quer ir lá, Eric?

- Para pedir o perdão de nossas dívidas.

- Como?

- É, olha só: eu vou lá, falo com o rei e peço para ele perdoar o que estamos devendo para Portugal. Com um monte de gente ao redor dele, Vossa Majestade não poderá recusar tal pedido.

Norma ri.

- Eric, com tanta gente lá, os guardas reais não vão deixar você sequer chegar perto da rua onde a carruagem está passando.

- Mas mãe, isso é fácil, eu vou sem que ninguém perceba, quando notarem, eu já vou estar lá, fazendo o pedido e, aí, ele não vai poder recusar nada!

- Eric, pra você tudo é fácil...

A carruagem voltou a se mover, mas o rei já havia passado. Eric cruzou os braços, ficando emburrado. Ele sabia que sua mãe tinha um pouco de razão mas, se ele não tentasse, como ele ia saber se daria errado ou não? Ele deveria ter, ao menos uma chance!

Mas não adiantou. "Que bela oportunidade vocês estão perdendo!", não parava de pensar. Olhou fixamente para a janela. As pessoas pareciam estar paradas, ante o andar da carruagem. Ficou olhando todas aquelas pessoas comuns passarem e viverem suas vidas comuns. Ele não queria ser comum, não queria ser apenas mais alguém na multidão. Ele queria ser lembrado por todos, queria que o seu nome fosse conhecido no mundo inteiro.

- Eu ainda vou ser rico... - murmurou - mais rico que todo mundo...

- Espero que um dia você seja.

- Acho difícil, sendo padre.

De repente, como se o tempo parasse, algo lhe chamou a atenção. Ele aproximou ainda mais o rosto do vidro e enxergou algo incrível: um homem, com um sobretudo preto, olhando fixamente para ele, acompanhando o movimento da carruagem. Por que isso deveria chamar a atenção? As roupas, não eram de sua época. Havia, sim, trajes parecidos, mas não iguais àqueles. Aquelas roupas pareciam ser de um futuro, como explicar isso? Ele não sabia, mas aquilo arrepiou todos os seus pêlos. O homem continuou olhando para Eric até desaparecer na multidão, mas ao mesmo tempo em que seu corpo ficava cada vez mais longe, seus olhos ficavam cada vez mais próximos, como se estivessem hipnotizando, não, como se estivessem fazendo-lhe um convite. "Vem... venha!" Essas palavras não saíam da mente do garoto, ele não sabia como elas tinham entrado, mas elas não queriam sair. A voz era doce e sonífera, como uma cobra que domina sua presa até a hora do bote. Eric era a presa, ele não queria resistir ao convite, ele queria ir com aquele desconhecido para onde quer que fosse.

Mas ele acabou desaparecendo na multidão. Lentamente, sua voz deu lugar à fala de sua mãe. O que ela estava dizendo? Eric não estava prestando atenção. Não queria prestar atenção. O tempo voltou a correr normalmente, quando ele pergunta à senhora, sem encará-la, em tom visivelmente ameaçador:

- O que você está escondendo de mim?

- O quê? - Norma assusta-se.

Eric ajeita-se no banco e volta a perguntar:

- Desde que nasci, percebi que tem uma coisa que vocês não falam pra mim. O que é? Eu quero saber.

- É... bom...

- Eu sou adotado?

Norma arregala os olhos.

- De onde tirou essa ideia?

- Não sei. Vocês me pegaram aonde?

- Eric, você não é adotado. É nosso filho legítimo.

- Se não é isso, o que é então.

Silêncio. Após alguns instantes, Norma toma coragem e diz:

- Eric, você é nosso filho único... mas não deveria ser...

- Quer dizer que eu tenho um irmão? - um sorriso forma-se em seus lábios.

- Tinha. Ele morreu ao nascer. Foi meu primeiro filho... eu perdi. Depois, eu e o seu pai tentamos de novo, após vários anos, e aí tivemos você.

- Mas, é só isso?

- É só para você. Eu sinto dor toda a vez que me lembro desse fato.

- Por que nunca me contaram?

- Porque você não precisava saber.

O resto do caminho, Eric ficou em silêncio. Pensando. De onde veio aquela pergunta? De onde viera a vontade de perguntar aquela coisa? Às vezes, Eric tinha medo de si mesmo, não conhecia a si próprio.

A carruagem parou em frente à igreja. Eram dez para as nove, a movimentação já estava grande. Os dois desceram do veículo, que foi estacionado em outro local por José. Vladimir estava esperando na porta.

- Vamos? - perguntou a sua esposa, estendendo a mão, para que eles entrassem de mãos dadas.

- Vamos. - Respondeu ela, passando reto, ignorando a mão de seu marido.

Os bancos da frente estavam todos ocupados, bem como os lugares reservados. A família sentou-se na terceira fileira da direita. Padre Ambrósio entrou logo em seguida. Todos ficaram de pé. Eric observou todos aqueles coroinhas ao redor do padre: ele não queria ser mais um daqueles, não queria ser comum. Não muito obrigado.

Norma logo tratou de colocar o véu sobre a cabeça. Enquanto todos estavam em pé, cantando, ou fingindo cantar o canto de entrada, Eric sentou-se a abaixou a cabeça. Sua mãe olhou para ele com um ar de reprovação. Eric suspirou fundo: a missa ia começar.

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