A Garganta da Serpente
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O EXTERMINADOR DE ALMAS - CAPÍTULO 4

(André Ferreira Machado)

- In nomine patis, et fillis, et espirict santis...

- Amém - todos responderam.

O padre Ambrósio estava de frente para os fiéis para dar a bênção inicial. Após isto, ele ficou de costas: somente viraria de novo para dar a Eucaristia. A partir daí, ele começaria a ler os ritos, todos em latim. A maioria dos presentes achava aquilo bonito e sábio, embora nada entendesse.

Eric teve aulas de catecismo no colégio. Sua mãe achava que ele sabia toda a missa de cor, mas a verdade é que ele não prestava muita atenção nessa disciplina. Sua mãe não sabia disso, ele se esforçava para demonstrar algo que ele não aprendeu, mas que deveria ter aprendido.

Envolto às ladainhas do padre Ambrósio, o qual as lia como se fosse um canto, para ele uma canção de ninar, pois continuou a olhar para baixo e acabou por fechar os olhos. Lentamente foi perdendo os sentidos, e a voz do padre ficou cada vez mais distante, à medida que suas pálpebras tornavam-se cada vez mais pesadas.

Em meio às trevas do descanso proibido, veio-lhe, à mente, uma imagem: ele corria por um corredor... um leve canto gregoriano o guiava em sua caminhada - talvez o canto da missa. A cena era em primeira pessoa, o corredor era comprido, parecia não ter fim, as paredes eram cinzas e sem quadros, portas ou janelas. No teto, luzes vindas de objetos inexplicáveis e, à frente, uma pequena porta. Uma porta de madeira, pintada de marrom, a qual tornava-se cada vez maior, a qual ficava cada vez mais próxima.

O garoto correu até esta porta e pôs sua mão direita nela, não na maçaneta, mas em seu corpo. Ele respirava forte, seu coração batia acelerado. Lentamente, ele correu a mão até o trinque. Girou-o. Hesitou por um instante mas, por fim, empurrou-o, abrindo a porta para trás. Deu dois passos, quase pulando, e entrou na sala, que estava pintada de bege. À sua frente, com uma grande janela ao fundo, três homens, vestidos de preto, como gângsteres, cada um segurando uma metralhadora. O Sol estava contra eles e ofuscava a visão do jovem. Os três começam a atirar contra Eric, as balas atravessam o corpo, mas o menino não sentia dor e seguiu em frente. Ele saca uma pistola semiautomática de trás e atira. Dá uns três tiros. O homem da direita é ferido e cai, mas o do meio dá um tiro, o qual Eric vê a bala vir de encontro à sua testa.

Nisto, o garoto acorda assustado. Abre os olhos em menos de um segundo e respira fundo. O que teria sido aquilo? Um aviso? Um sinal? Ou apenas um pesadelo? Por que ele sonharia com uma cena tão ruim em um lugar tão sagrado quanto aquele?

Sagrado. Eric levantou os olhos lentamente. Pôde ouvir outro canto - não era o primeiro. Quanto tempo havia se passado? Será que a missa já estava no fim? Eric sentia-se como quem acorda de repente. Seus lábios estavam unidos pela gosma que se forma quando se dorme. Olhou para a esquerda: sua mãe estava de pé, segurando o folheto, cantando. Percebeu que era o único sentado e levantou-se. Ajeitou o cabelo e... quem ele vê? Lá na frente, antes da primeira fila, no sentido contrário a todos os fiéis, chamando-o com os olhos: o homem de sobretudo preto. Eric olhou bem, para ter certeza que não era uma ilusão. Decidido, espremeu-se contra o banco da frente e caminhou para a direita.

- Eric, o que você está fazendo? - pergunta sua mãe, quase cochichando.

- Eu preciso ver uma coisa... - responde em voz normal.

- Eric, volte aqui!!! - grita com o tom de voz mais baixo que consegue.

Eric ignora a ordem e sai da fileira. Havia, também, muitas outras pessoas nos corredores: gente de todas as idades, de todas as raças. Eric olhou novamente para frente: o homem continuava lá, encarando-o. Passou a andar, pedindo "com licença" e "desculpe" a todos por quem esbarrava, mas as pessoas estavam entretidas no canto, parecendo ignorar completamente sua presença ou sua jornada. Eric olhou para a direita: agora, o homem estava sentado no banco da frente, junto às beatas, observando-o com um olhar provocante, Eric olha para baixo, para entrar no meio da fileira anterior, continua olhando para baixo, até que ergue sua cabeça: sim, ele estava em frente ao homem de preto.

O garoto toca as costas do estranho, que estava cantando: ele vira-se para Eric, que logo se decepciona: não era o homem que tinha visto: era um senhor, com rugas no rosto e um grande bigode grisalho.

- Desculpe... - pede meio sem jeito.

Eric olha para trás: sua mãe, de seu lugar, está discretamente abanando, chamando-o de volta, inclinando sua mão para dentro. Eric olha mais para a direita: o homem, agora, está em frente à porta do templo. Como isso pode ter acontecido? Em um momento, ele estava em um local e, agora, está justamente no lado oposto donde estava pela primeira vez!

O menino retorna para o corredor, voltando a passar por todas aquelas pessoas que não param de cantar. Ele passa em frente à fileira onde está sua mãe, que quase o puxa para dentro, mas ele segue seu caminho. Fixa o olhar no homem, que continua encarando-o. "Não vou olhar para baixo... não vou perdê-lo de vista!", repetia para si mesmo. Estava quase lá, quando várias pessoas se puseram a caminhar na frente dele. "Não! Assim eu vou perdê-lo!" Olhava para cima, olhava para o lado, agora vultos ele via. Passou pelas pessoas, empurrando-as. "Ei!", gritavam algumas. Eric não ouviu. Finalmente, o sobretudo preto estava à sua frente. Finalmente ele ia desvendar aquele mistério.

Porém, no momento em que ele ia finalmente tocar naquele homem misterioso, uma velha passa pela frente, obrigando-o a recuar e a olhar para baixo. Depois que a velha passa, ele segue reto, olhando para baixo, até que sua cabeça bate num corpo.

Não era o corpo daquele homem: ele percebeu que este estava usando calças cor vinho e sapatos pretos. Oh, não! Ele conhecia aqueles trajes! Lentamente, ergueu sua face: o homem trajava, também, um paletó da cor da calça e uma camisa branca, com um babeiro de renda.

- Buuu! - disse o homem.

Ele era branco, tinha os olhos saltados para fora, um fino bigode e uma barba, que ultrapassava o queixo. Ele sorriu, mas sua dentadura, aliada àquele dente de ouro, era o que metia mais medo naquele garoto.

- Dr. Barcelos...

- Se perdeu da mamãe, garoto.

- Deixe-me em paz.

Eric perdeu completamente o interesse em procurar o desconhecido. Virou-se e começou a andar para a fileira onde sua mãe estava, mas o Dr. Barcelos puxou-o para trás, prendendo seu corpo junto ao seu.

- Aonde vai com tanta pressa?

- Larga!!!

Dr. Barcelos aponta uma fina pistola para o rosto de Eric.

- Eu acho que não.

Eric olha para a direita, tentando enxergar o cano: aquele metal frio nas suas bochechas, um arrepio toma conta de todo o seu corpo e de toda a sua alma. Eric arregala os olhos e, num instinto, grita:

- Não!!!!

O grito ecoa por toda a igreja e é repetido várias vezes, devido à sua forma acústica. O canto gregoriano pára. Os fiéis, lenta e sequencialmente, olham para trás e vão, deste modo de assustando.

- Meu filho! - grita Dona Norma.

- Eric!!! - Exclama Vladimir.

O garoto tenta libertar-se inutilmente. À sua frente, o imenso corredor e o Padre Ambrósio, que se vira para ver a cena.

- A bênção, seu padre! - diz o Dr. Barcelos, num tom descaradamente sarcástico.

O padre, então, pergunta com o seu sotaque característico:

- Meu filho, o que você está fazendo?

- Justiça, seu padre...

Serafim começa a andar para frente. Três homens, discretamente, entram no recinto.

- Meu filho, - continua o padre - esta é a casa de Deus... Não cometa este sacrilégio!

- Sacrilégio, Padre? - ele continua andando pelo corredor, os fiéis olham espantados; algumas mulheres se benzem - Sacrilégio é o que o senhor faz com o dinheiro do dízimo na sexta-feira à noite, naquela casa de reputação duvidosa!!! - grita.

Todos os fiéis exclamam: "Oh!!!" e olham para o padre com um olhar condenatório. O vigário fica sem saber o que falar, o que fazer, todos olham para ele, sem perceber que dois homens que entraram fecham as portas do templo. Serafim aperta Eric contra seu peito cada vez mais, colocando seu braço esquerdo contra seu pescoço. Os dois passam em frente à fileira onde Norma e Vladimir estão.

- Eric... - Norma chama sussurrando.

Eric não responde, mas olha para sua mãe, como se pedisse que o salvasse. O padre se defende:

- Isto é uma blasfêmia.

Serafim toma a palavra:

- Diga-me, padre: o senhor deseja se encontrar com Deus?

- Ora, mas é claro...

- Seja feita vossa vontade...

Serafim Barcelos aponta sua arma para o reverendo, puxa o gatilho, levando-a para cima. As balas perfuram todo o abdome do padre, tingindo-o de vermelho verticalmente. Diante de tal cena, os fiéis começam a gritar, desesperados, são gritos de horror! Na esperança de salvar suas próprias vidas, eles vão para trás, derrubam bancos que caem sobre outros fiéis, atropelam-se uns aos outros, tentam chegar às portas, mas elas estão fechadas. Os homens que as fecharam, nelas encostados, atiram para cima, aumentando o pavor e os gritos. Os fiéis tentam fugir, tentam ir para todos os lados. Vários, que tentam sair de qualquer jeito, recebem vários tiros e tombam sobre os outros. Serafim contempla o tumulto, da metade da igreja que ficou vazia. Segurando Eric cada vez mais forte, ele diz:

- Contemple... o Juízo Final...

Os gritos aumentam. Os homens mandam que as pessoas sentem no chão. Eric tenta libertar-se. Onde estaria aquele homem? Para Eric, ele era o único que poderia salvá-los... ele não queria que essa esperança fosse besta, fosse em vão.

As pessoas sentam-se no chão, apavoradas. Algumas beatas tentam rezar o terço, mas seu nervosismo as impede até mesmo de segurar as cotas e pronunciar alguma palavra. Os homens trazem Vladimir e Norma para frente dos outros, obrigando-os a ajoelharem-se perante o doutor, o qual olha para Eric e diz:

- Vamos nos divertir um pouquinho, garoto?

O doutor arrasta Eric até o local onde Padre Ambrósio está caído, deixando-o de frente para este. O Padre ainda está vivo, respirando com dificuldade pela boca. Seus olhos estão arregalados, olhando para Eric, pedindo salvação. Segurando o garoto, Barcelos olha para trás: os fiéis estão sentados no chão, a maioria em silêncio, mas unanimemente assustados e em dúvida. O doutor, então, diz a Eric:

- Lamba o sangue do padre.

Suspiros de espanto ecoam da multidão.

- Não! - responde Eric, com um alto tom de voz.

- Faça o que estou mandando!!!

O doutor grita e empurra a cabeça do garoto contra aquele abdome vermelho. O padre assusta-se e tenta gritar. Barcelos aponta sua pistola para a cabeça de Eric:

- Lamba o sangue do padre ou morre!!!

Eric passou sua língua sobre aquela mancha. O sangue veio amargo, com um gosto de morte e pecado, mas ao engoli-lo, ele se tornou doce como o mel. Estaria Eric gostando daquilo? Ele não queria, mas lambia cada vez mais, num ritmo frenético, mais, mais, agora ele estava chupando o sangue... ele queria provar mais daquele líquido!!! Tudo! Ele queria tudo!

Barcelos puxa a cabeça do garoto para trás, pelos cabelos. Gira com ele, ficando em frente à multidão, que olhou espantada para o rosto do garoto, com os lábios, o nariz e o queixo tingidos de escarlate.

- Quer saber, pivete? Acho que você gostou. Vamos ver o papai agora?

Vladimir estava à esquerda de sua esposa. Eric procurava, desesperado, encontrar o homem de sobretudo preto com os olhos, mas nada. Barcelos aponta sua arma para Vladimir mas, antes de qualquer coisa, o patriarca começa a vociferar desesperado:

- Sua criatura desprezível, pecador e corruptor de mentes inocentes! Pagarás por vossos crimes eternamente, ardendo nas chamas do Inferno e...

- Cala a boca!

Serafim atura contra o peito de Vladimir. A bala perfura o coração do pobre homem, que cai de lado, para a esquerda.

- Vladimir! - Norma atira-se sobre ele.

- Pai!!! - Eric tenta correr, mas o braço de Barcelos o prende. O doutor empurra o cano da pistola contra o ouvido de Eric.

- Minha dama, - continua o enlouquecido - vou fazê-la esquecer deste sofrimento. Homens, estuprem esta galinha!!!!

- Não! - ela grita.

Os homens a puxam para trás, abrem suas pernas e um joga-se sobre ela.

- Manhêêêêêêê!!!!!!!!!!!!!!!!!!

- Eric!!!!

Barcelos olha para cima. O povo está assustado mais do que nunca.

- E agora, porei um fim a esta raça maldita...

Barcelos puxa o gatilho. Eric ouve um barulho ensurdecedor, e sente dor, tanta dor, dor como nunca antes havia sentido.

Barcelos solta o corpo do garoto, que tomba lentamente para a esquerda. O olhar de Eric torna-se parado e sem brilho. O garoto vê sua mãe gritando, mas apenas os lábios se mexem: ele não ouve som algum.
O corpo cai. A cabeça bate contra o chão. A imagem de sua mãe gritando vai, lentamente, dando lugar a uma escuridão suprema. A dor intensa vai se amenizando. Em pouco tempo, Eric perde todos os sentidos.

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