- In nomine patis, et fillis, et espirict santis...
- Amém - todos responderam.
O padre Ambrósio estava de frente para os fiéis para dar a bênção
inicial. Após isto, ele ficou de costas: somente viraria de novo para
dar a Eucaristia. A partir daí, ele começaria a ler os ritos,
todos em latim. A maioria dos presentes achava aquilo bonito e sábio,
embora nada entendesse.
Eric teve aulas de catecismo no colégio. Sua mãe achava que ele
sabia toda a missa de cor, mas a verdade é que ele não prestava
muita atenção nessa disciplina. Sua mãe não sabia
disso, ele se esforçava para demonstrar algo que ele não aprendeu,
mas que deveria ter aprendido.
Envolto às ladainhas do padre Ambrósio, o qual as lia como se
fosse um canto, para ele uma canção de ninar, pois continuou a
olhar para baixo e acabou por fechar os olhos. Lentamente foi perdendo os sentidos,
e a voz do padre ficou cada vez mais distante, à medida que suas pálpebras
tornavam-se cada vez mais pesadas.
Em meio às trevas do descanso proibido, veio-lhe, à mente, uma
imagem: ele corria por um corredor... um leve canto gregoriano o guiava em sua
caminhada - talvez o canto da missa. A cena era em primeira pessoa, o corredor
era comprido, parecia não ter fim, as paredes eram cinzas e sem quadros,
portas ou janelas. No teto, luzes vindas de objetos inexplicáveis e,
à frente, uma pequena porta. Uma porta de madeira, pintada de marrom,
a qual tornava-se cada vez maior, a qual ficava cada vez mais próxima.
O garoto correu até esta porta e pôs sua mão direita nela,
não na maçaneta, mas em seu corpo. Ele respirava forte, seu coração
batia acelerado. Lentamente, ele correu a mão até o trinque. Girou-o.
Hesitou por um instante mas, por fim, empurrou-o, abrindo a porta para trás.
Deu dois passos, quase pulando, e entrou na sala, que estava pintada de bege.
À sua frente, com uma grande janela ao fundo, três homens, vestidos
de preto, como gângsteres, cada um segurando uma metralhadora. O Sol estava
contra eles e ofuscava a visão do jovem. Os três começam
a atirar contra Eric, as balas atravessam o corpo, mas o menino não sentia
dor e seguiu em frente. Ele saca uma pistola semiautomática de trás
e atira. Dá uns três tiros. O homem da direita é ferido
e cai, mas o do meio dá um tiro, o qual Eric vê a bala vir de encontro
à sua testa.
Nisto, o garoto acorda assustado. Abre os olhos em menos de um segundo e respira
fundo. O que teria sido aquilo? Um aviso? Um sinal? Ou apenas um pesadelo? Por
que ele sonharia com uma cena tão ruim em um lugar tão sagrado
quanto aquele?
Sagrado. Eric levantou os olhos lentamente. Pôde ouvir outro canto - não
era o primeiro. Quanto tempo havia se passado? Será que a missa já
estava no fim? Eric sentia-se como quem acorda de repente. Seus lábios
estavam unidos pela gosma que se forma quando se dorme. Olhou para a esquerda:
sua mãe estava de pé, segurando o folheto, cantando. Percebeu
que era o único sentado e levantou-se. Ajeitou o cabelo e... quem ele
vê? Lá na frente, antes da primeira fila, no sentido contrário
a todos os fiéis, chamando-o com os olhos: o homem de sobretudo preto.
Eric olhou bem, para ter certeza que não era uma ilusão. Decidido,
espremeu-se contra o banco da frente e caminhou para a direita.
- Eric, o que você está fazendo? - pergunta sua mãe, quase
cochichando.
- Eu preciso ver uma coisa... - responde em voz normal.
- Eric, volte aqui!!! - grita com o tom de voz mais baixo que consegue.
Eric ignora a ordem e sai da fileira. Havia, também, muitas outras pessoas
nos corredores: gente de todas as idades, de todas as raças. Eric olhou
novamente para frente: o homem continuava lá, encarando-o. Passou a andar,
pedindo "com licença" e "desculpe" a todos por quem
esbarrava, mas as pessoas estavam entretidas no canto, parecendo ignorar completamente
sua presença ou sua jornada. Eric olhou para a direita: agora, o homem
estava sentado no banco da frente, junto às beatas, observando-o com
um olhar provocante, Eric olha para baixo, para entrar no meio da fileira anterior,
continua olhando para baixo, até que ergue sua cabeça: sim, ele
estava em frente ao homem de preto.
O garoto toca as costas do estranho, que estava cantando: ele vira-se para Eric,
que logo se decepciona: não era o homem que tinha visto: era um senhor,
com rugas no rosto e um grande bigode grisalho.
- Desculpe... - pede meio sem jeito.
Eric olha para trás: sua mãe, de seu lugar, está discretamente
abanando, chamando-o de volta, inclinando sua mão para dentro. Eric olha
mais para a direita: o homem, agora, está em frente à porta do
templo. Como isso pode ter acontecido? Em um momento, ele estava em um local
e, agora, está justamente no lado oposto donde estava pela primeira vez!
O menino retorna para o corredor, voltando a passar por todas aquelas pessoas
que não param de cantar. Ele passa em frente à fileira onde está
sua mãe, que quase o puxa para dentro, mas ele segue seu caminho. Fixa
o olhar no homem, que continua encarando-o. "Não vou olhar para
baixo... não vou perdê-lo de vista!", repetia para si mesmo.
Estava quase lá, quando várias pessoas se puseram a caminhar na
frente dele. "Não! Assim eu vou perdê-lo!" Olhava para
cima, olhava para o lado, agora vultos ele via. Passou pelas pessoas, empurrando-as.
"Ei!", gritavam algumas. Eric não ouviu. Finalmente, o sobretudo
preto estava à sua frente. Finalmente ele ia desvendar aquele mistério.
Porém, no momento em que ele ia finalmente tocar naquele homem misterioso,
uma velha passa pela frente, obrigando-o a recuar e a olhar para baixo. Depois
que a velha passa, ele segue reto, olhando para baixo, até que sua cabeça
bate num corpo.
Não era o corpo daquele homem: ele percebeu que este estava usando calças
cor vinho e sapatos pretos. Oh, não! Ele conhecia aqueles trajes! Lentamente,
ergueu sua face: o homem trajava, também, um paletó da cor da
calça e uma camisa branca, com um babeiro de renda.
- Buuu! - disse o homem.
Ele era branco, tinha os olhos saltados para fora, um fino bigode e uma barba,
que ultrapassava o queixo. Ele sorriu, mas sua dentadura, aliada àquele
dente de ouro, era o que metia mais medo naquele garoto.
- Dr. Barcelos...
- Se perdeu da mamãe, garoto.
- Deixe-me em paz.
Eric perdeu completamente o interesse em procurar o desconhecido. Virou-se e
começou a andar para a fileira onde sua mãe estava, mas o Dr.
Barcelos puxou-o para trás, prendendo seu corpo junto ao seu.
- Aonde vai com tanta pressa?
- Larga!!!
Dr. Barcelos aponta uma fina pistola para o rosto de Eric.
- Eu acho que não.
Eric olha para a direita, tentando enxergar o cano: aquele metal frio nas suas
bochechas, um arrepio toma conta de todo o seu corpo e de toda a sua alma. Eric
arregala os olhos e, num instinto, grita:
- Não!!!!
O grito ecoa por toda a igreja e é repetido várias vezes, devido
à sua forma acústica. O canto gregoriano pára. Os fiéis,
lenta e sequencialmente, olham para trás e vão, deste modo
de assustando.
- Meu filho! - grita Dona Norma.
- Eric!!! - Exclama Vladimir.
O garoto tenta libertar-se inutilmente. À sua frente, o imenso corredor
e o Padre Ambrósio, que se vira para ver a cena.
- A bênção, seu padre! - diz o Dr. Barcelos, num tom descaradamente
sarcástico.
O padre, então, pergunta com o seu sotaque característico:
- Meu filho, o que você está fazendo?
- Justiça, seu padre...
Serafim começa a andar para frente. Três homens, discretamente,
entram no recinto.
- Meu filho, - continua o padre - esta é a casa de Deus... Não
cometa este sacrilégio!
- Sacrilégio, Padre? - ele continua andando pelo corredor, os fiéis
olham espantados; algumas mulheres se benzem - Sacrilégio é o
que o senhor faz com o dinheiro do dízimo na sexta-feira à noite,
naquela casa de reputação duvidosa!!! - grita.
Todos os fiéis exclamam: "Oh!!!" e olham para o padre com um
olhar condenatório. O vigário fica sem saber o que falar, o que
fazer, todos olham para ele, sem perceber que dois homens que entraram fecham
as portas do templo. Serafim aperta Eric contra seu peito cada vez mais, colocando
seu braço esquerdo contra seu pescoço. Os dois passam em frente
à fileira onde Norma e Vladimir estão.
- Eric... - Norma chama sussurrando.
Eric não responde, mas olha para sua mãe, como se pedisse que
o salvasse. O padre se defende:
- Isto é uma blasfêmia.
Serafim toma a palavra:
- Diga-me, padre: o senhor deseja se encontrar com Deus?
- Ora, mas é claro...
- Seja feita vossa vontade...
Serafim Barcelos aponta sua arma para o reverendo, puxa o gatilho, levando-a
para cima. As balas perfuram todo o abdome do padre, tingindo-o de vermelho
verticalmente. Diante de tal cena, os fiéis começam a gritar,
desesperados, são gritos de horror! Na esperança de salvar suas
próprias vidas, eles vão para trás, derrubam bancos que
caem sobre outros fiéis, atropelam-se uns aos outros, tentam chegar às
portas, mas elas estão fechadas. Os homens que as fecharam, nelas encostados,
atiram para cima, aumentando o pavor e os gritos. Os fiéis tentam fugir,
tentam ir para todos os lados. Vários, que tentam sair de qualquer jeito,
recebem vários tiros e tombam sobre os outros. Serafim contempla o tumulto,
da metade da igreja que ficou vazia. Segurando Eric cada vez mais forte, ele
diz:
- Contemple... o Juízo Final...
Os gritos aumentam. Os homens mandam que as pessoas sentem no chão. Eric
tenta libertar-se. Onde estaria aquele homem? Para Eric, ele era o único
que poderia salvá-los... ele não queria que essa esperança
fosse besta, fosse em vão.
As pessoas sentam-se no chão, apavoradas. Algumas beatas tentam rezar
o terço, mas seu nervosismo as impede até mesmo de segurar as
cotas e pronunciar alguma palavra. Os homens trazem Vladimir e Norma para frente
dos outros, obrigando-os a ajoelharem-se perante o doutor, o qual olha para
Eric e diz:
- Vamos nos divertir um pouquinho, garoto?
O doutor arrasta Eric até o local onde Padre Ambrósio está
caído, deixando-o de frente para este. O Padre ainda está vivo,
respirando com dificuldade pela boca. Seus olhos estão arregalados, olhando
para Eric, pedindo salvação. Segurando o garoto, Barcelos olha
para trás: os fiéis estão sentados no chão, a maioria
em silêncio, mas unanimemente assustados e em dúvida. O doutor,
então, diz a Eric:
- Lamba o sangue do padre.
Suspiros de espanto ecoam da multidão.
- Não! - responde Eric, com um alto tom de voz.
- Faça o que estou mandando!!!
O doutor grita e empurra a cabeça do garoto contra aquele abdome vermelho.
O padre assusta-se e tenta gritar. Barcelos aponta sua pistola para a cabeça
de Eric:
- Lamba o sangue do padre ou morre!!!
Eric passou sua língua sobre aquela mancha. O sangue veio amargo, com
um gosto de morte e pecado, mas ao engoli-lo, ele se tornou doce como o mel.
Estaria Eric gostando daquilo? Ele não queria, mas lambia cada vez mais,
num ritmo frenético, mais, mais, agora ele estava chupando o sangue...
ele queria provar mais daquele líquido!!! Tudo! Ele queria tudo!
Barcelos puxa a cabeça do garoto para trás, pelos cabelos. Gira
com ele, ficando em frente à multidão, que olhou espantada para
o rosto do garoto, com os lábios, o nariz e o queixo tingidos de escarlate.
- Quer saber, pivete? Acho que você gostou. Vamos ver o papai agora?
Vladimir estava à esquerda de sua esposa. Eric procurava, desesperado,
encontrar o homem de sobretudo preto com os olhos, mas nada. Barcelos aponta
sua arma para Vladimir mas, antes de qualquer coisa, o patriarca começa
a vociferar desesperado:
- Sua criatura desprezível, pecador e corruptor de mentes inocentes!
Pagarás por vossos crimes eternamente, ardendo nas chamas do Inferno
e...
- Cala a boca!
Serafim atura contra o peito de Vladimir. A bala perfura o coração
do pobre homem, que cai de lado, para a esquerda.
- Vladimir! - Norma atira-se sobre ele.
- Pai!!! - Eric tenta correr, mas o braço de Barcelos o prende. O doutor
empurra o cano da pistola contra o ouvido de Eric.
- Minha dama, - continua o enlouquecido - vou fazê-la esquecer deste sofrimento.
Homens, estuprem esta galinha!!!!
- Não! - ela grita.
Os homens a puxam para trás, abrem suas pernas e um joga-se sobre ela.
- Manhêêêêêêê!!!!!!!!!!!!!!!!!!
- Eric!!!!
Barcelos olha para cima. O povo está assustado mais do que nunca.
- E agora, porei um fim a esta raça maldita...
Barcelos puxa o gatilho. Eric ouve um barulho ensurdecedor, e sente dor, tanta
dor, dor como nunca antes havia sentido.
Barcelos solta o corpo do garoto, que tomba lentamente para a esquerda. O olhar
de Eric torna-se parado e sem brilho. O garoto vê sua mãe gritando,
mas apenas os lábios se mexem: ele não ouve som algum.
O corpo cai. A cabeça bate contra o chão. A imagem de sua mãe
gritando vai, lentamente, dando lugar a uma escuridão suprema. A dor
intensa vai se amenizando. Em pouco tempo, Eric perde todos os sentidos.