A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O EXTERMINADOR DE ALMAS - CAPÍTULO 6

(André Ferreira Machado)

Um intenso calafrio tomou conta de todo o corpo de Eric. O menino olhava para aquela lápide incrédulo, com os olhos vidrados naquelas inscrições. Não poderia ser verdade! Não faz o menor sentido! Não podia acreditar no que seus olhos estavam vendo!

Qual seria a sua reação se visse não apenas o nome de seus familiares numa lápide mas, também, o seu próprio nome? Estava ali, bem ali: Eric Braesnovenn * 30/04/1800 + 11/09/1814. Algo assustador: na sua frente, sua data de nascimento e, pior, a data em que você morreu. Ali, na lata. Você não existe depois daquele dia. Ali está anunciado o seu fim. O dia em que você terminou. Deixou de existir. A sensação seria, no mínimo, assustadora. Foi o que Eric sentiu.

Eric caminhou para a direita, desceu um degrau e foi para o lado do túmulo. Ao lado das inscrições havia fotos em fúnebres armações de bronze. Eric passou os dedos no vidro da armação ao lado do nome de seu pai. Lentamente, o pó deu lugar à imagem em preto e branco daquele rosto que ele conhecia muito bem. Com o olhar fixo, levou a mão para a foto de baixo, ao lado de seu nome. Passou a mão no vidro, que estava meio trincado. Limpou-o bem com os dedos. Uma súbita sensação de mal-estar tomou o seu estômago. Ele encostou seu corpo nu na sepultura e aproximou seu rosto um pouco mais daquela foto. Era ele. A foto estava meio desbotada, mas era ele. Pior: era a foto que ele havia tirado no final do ano anterior para colocar no livro do ano do colégio ou, ao menos, era uma outra foto baseada naquela.

A respiração tornou-se rápida e intensa. Eric conseguiu ouvir seus batimentos cardíacos. Mas como? Enfim, sua pior teoria confirmara-se: aquele tempo em que ele estivera numa escuridão total, na qual não podia falar, se mexer, sentir as coisas, ver, ouvir, cheirar ou provar o doce gosto do mel da Vida era, sim, o tempo em que ele estivera morto. Enfim, pensou ele, o grande mistério da humanidade estava desfeito mas, e agora?

Colocou a mão no retrato de sua mãe. Ia começar a limpá-lo quando ouviu uma voz:

- E aí?

Eric ergueu a cabeça: era o homem de sobretudo preto o qual chamara sua atenção no caminho da missa e naquela igreja. Ele continuou:

- Como se sente? Com medo, confuso, perdido, assustado? ...

- Acho que com tudo isso - assustou-se por descobrir que, finalmente, conseguia falar,

- Não faz mal. Todos acordam deste jeito.

O homem caminhou para frente de onde Eric estava. Abaixou-se e pegou um objeto no chão. Eric ficou olhando. O homem, finalmente, disse, mostrando o objeto para o garoto e caminhando em sua direção:

- Reconhece isso? A bala que estava em sua cabeça. Eles não tiveram nem o trabalho de tirar...

Eric colocou a mão no ouvido que havia sido atingido: a orelha estava intacta. Ficou observando os dedos: não estavam sujos de sangue. Estendeu as mãos. O homem lançou nelas a bala, soltando-a no ar, sem tocar na pele do garoto. Eric pegou aquele pequeno objeto, colocou-o bem em frente aos seus olhos, girou-a: estava enferrujada, o que o fez pensar que já havia passado um bom tempo desde aquele dia até o momento presente.

- Eu morri? - perguntou sem parar de olhar e girar a bala.

- Morreu. E eu ajudei a te trazer de volta à vida.

Eric ergueu sua cabeça e olhou para o rosto daquele desconhecido:

- Você é Deus?

- Não. Meu nome é Gabriel.

- É um anjo?

- Sim...

- Mas é um anjo das trevas...

- Não...

- Está de preto...

- As aparências enganam.

O menino continuou olhando aquele objeto. Subitamente, a imagem do momento em que o Dr. Barcelos atirou nele veio-lhe à mente, juntamente de uma terrível e forte dor no local do disparo. Uma dor, agora, virtual, que o fez fechar os olhos.

- O que está acontecendo comigo? Por que eu? O que significa tudo isso?

Gabriel olhou para a esquerda: um casal de idosos estava caminhando alguns túmulos à frente. Voltou a encarar o garoto.

- Fecha os olhos. - Eric obedeceu - Isso, agora abre...

Ao abrir os olhos, Eric percebeu que não estava mais nu mas, sim, com um traje preto: uma bota que ia até o tornozelo, uma calça de couro com dois bolsos e uma camiseta.

- Como você...

- Olha lá... - disse apontando com o rosto. Eric olhou para a direção - Eu não podia deixar você pelado no cemitério em plena luz do dia...

- Por que preto?

- É condizente com sua nova realidade.

- Que nova realidade?

- Você não é mais um humano. É um exterminador de almas.

Aquela frase caiu como uma bomba nos ouvidos de Eric. Ele não sabia o que era um exterminador de almas, mas desconfiava que, boa coisa, não devia ser...

- O que... significa isso?

- Você é imortal, agora. Entende o que é isso? Nunca mais vai morrer. Também nunca mais vai se machucar e... envelhecer. Vai ficar jovem para sempre.

- Mas por que eu? - disse elevando um pouco a voz e guardando a bala enferrujada no bolso da calça.

- Bem... - disse Gabriel coçando o queixo - eu tive uma razão especial para escolher a você e não outro... - enquanto Gabriel delirava na explicação, Eric afastava-se em direção ao túmulo de trás - Você morreu no dia 11 de setembro de 1.814. 187anos após a sua morte, haverá um atentado terrorista que irá mudar a história do planeta. Veja bem: são 187 anos. 1 + 8 + 7 dá 16 e 1 + 6 dão 7...

- Ta... e daí?

- E daí que 7 é o número da perfeição... Deus criou o mundo em sete dias... Você vai ser perfeito para o que eu preciso...

- Quer saber? Eu não engoli essa história... é forçado demais...

- Eu também acho... existem outras razões, as quais não posso revelar agora, mas eu posso lhe adiantar que...

Eric parou de prestar atenção no que Gabriel estava dizendo: aquilo não fazia o menor sentido para ele. Olhou para o túmulo à sua frente. Na pedra, estava escrito:

RAPHAELA ANDRADE
*08/03/1860 + 02/04/1906

Espantado, perguntou para Gabriel:

- O que significa isso?

- Isso o quê?

- Aqui diz que essa mulher morreu em 1906! - Gabriel encarou Eric em silêncio - Que dia é hoje?

Eric sai correndo, assustado. Gabriel grita olhando para ele:

- Eric, tem uma coisa que eu não te contei... - conclui em voz baixa - Espere... a soma dos algarismos de 1906 é 7...

O garoto corre cada vez mais. Logo percebe que o cemitério possui mais túmulos do que da última vez que o tinha visitado. Ele olha, rapidamente, para as lápides e não se conforma nem entende o que vê: óbitos datados em 1900, 1910, 1912, nascimentos em 1850... vidas inteiras que se passaram depois de sua "morte". Eric fica cada vez mais assustado. Ele sente que Gabriel está correndo atrás dele, pois ouve os passos e os gritos.

- Eric, espera! Você precisa saber de uma coisa!!!

Eric não queria ouvir o que aquele homem, anjo ou seja lá o que fosse tinha para dizer. Ele queria sair daquele lugar. Chega à porta de entrada do cemitério. Um homem com cabelos e uma vasta barba grisalha está lá.

- Hei, garoto! Aonde você vai.

Eric esbarra no velho, quando ouve o grito de Gabriel:

- Não!

Vira-se para trás. O homem, agora, era um esqueleto, que estava se transformando em pó. O menino fica atônito, boquiaberto, assustado (mais do que já estava). Com o olhar fixo no lugar onde o homem estava, Eric caminha para trás, quando ouve um barulho ensurdecedor. Vira seu rosto para a direita: um Ford Bigode está vindo a toda velocidade em sua direção, buzinando em alto volume. Eric olha para Gabriel, que grita:

- Corre!!!!

Eric vira-se e corre para trás. O Ford passa a poucos metros dele. O menino continua olhando aquele estranho objeto. O motorista põe a cabeça para fora e grita:

- Quer morrer, garoto??!!

Ainda boquiaberto, Eric aponta para o veículo e olha para Gabriel, perguntando:

- O que era aquilo?

Gabriel explica, erguendo suas mãos à altura do peito:

- Um automóvel... um carro! Um veículo, uma máquina para fazer as pessoas se locomoverem mais rápido.

Eric olha para o lado de Gabriel.

- E isso no topo dessa vara?

Gabriel olha para o lado.

- Isso é um poste... aquilo é uma lâmpada que serve para iluminar essa via de noite...

- Como botam fogo nisso?

- Não há fogo... isso acende sozinho... energia elétrica...

Eric gira o seu corpo e constata que aquela rua está diferente desde a última vez que a viu.

- O que está acontecendo? Que lugar é esse?

Bem ao longe, o menino percebe um jornal abandonado sobre um banco. Sem pensar duas vezes, corre em direção ao banco para lê-lo. Gabriel o adverte:

- Esse jornal é de ontem... alguém esqueceu aí...

Eric pega o jornal e começa a tremer. Seus olhos não creem naquilo que enxergam:

- A data do jornal... 10 de Setembro de 1914... "Eleições para presidente serão em Novembro"... Presidente do quê?

- Da República. O Brasil é um país independente há muito tempo.

O menino sente uma súbita falta de ar.

- Como é?

- O filho de D. João VI, D. Pedro I, proclamou a independência em 1822... depois, o seu filho, D. Pedro II, assumiu e, em 15 de Novembro de 1.889, o marechal Deodoro da Fonseca proclamou a República - Eric negava tudo com a cabeça - Esse país foi uma colônia, tornou-se um império e, agora, é uma democracia. Muita coisa aconteceu nesses 100 anos...

- Isso não está acontecendo... é mentira!!!

- É verdade.

- Esse não é o meu mundo!

- O mundo mudou.

- Por que fez isso comigo? - perguntou em um alto tom de voz, apontando o jornal - Por que todo esse tempo? Por que eu?

- Calma... - diz Gabriel, aproximando-se.

- Isso não é real... é um sonho, ou um pesadelo... devo estar inconsciente no hospital...

- Eu posso provar que isso é real. Você não diria que está sonhando em um sonho...

Aquilo fazia sentido. Eric joga o jornal no chão.

- Me deixa em paz! Sai daqui! Eu não quero isso!!!

Eric vira-se e começa a correr. Gabriel interrompe a corrida com uma pergunta:

- Eric, você vai pra onde?

Na calçada da esquina, em frente à rua, o garoto pára. Um calafrio toma conta de seu estômago; Ele vira seu rosto lentamente para Gabriel, que explica:

- Já se passaram 100 anos. Todas as pessoas que um dia conheceram você... estão mortas. - Eric continua olhando - Você está sozinho agora. Você não tem ninguém.

Aquilo foi demais. Eric vira-se e corre a toda velocidade em direção a Gabriel. Lança-se sobre ele, derrubando-o no chão e apertando o seu pescoço com as duas mãos.

- Cachorro! Por que fez isso comigo? Você não é um anjo, é um demônio! Por que eu?

Em toda a sua raiva, e com todos os xingamentos proferidos, Eric mal nota que a pele de Gabriel começa a ondular, como a água de uma piscina. Os cabelos do anjo ficam grisalhos e o rosto ganha rugas. Quando estava preste a xingar a mãe dele, Eric percebe o que está acontecendo. Gabriel respira forte, fundo e com dificuldades. Eric encara aquele rosto envelhecido. Lentamente, retira suas mãos do pescoço de Gabriel e, aos poucos, aquele rosto enrugado volta a ser jovem como antes. Assustado, Eric levanta-se. Gabriel explica:

- Esse é o seu maior poder. Todo ser vivo que tocar morrerá. A pele de suas vítimas secará, restando apenas os ossos e, os ossos, estes transformar-se-ão em pó. Neste processo, absorverás a energia da destruição da alma dos mortais que tocares. Acho que, agora, entendes o por quê do nome exterminador de almas. Como eu não sou humano, não tenho carne nem ossos, o máximo que podes fazer a mim é absorver minha energia, fazendo-me envelhecer fisicamente.

- Isso é assustador... eu não quero isso!

- Você não tem que querer - Gabriel levanta-se - você já é assim...

- Eu não pedi para ser desse jeito...

- A sua vida é repleta de escolhas que você não faz.

- Do que adianta viver, se minha vida depende da morte de outras pessoas?

- É a cadeia alimentar. O ciclo da vida e da morte. Em breve, você vai gostar de ver pessoas com sofrimento, dor, angústia, pânico...

- Eu nunca vou gostar de ver essas coisas...

- Vai antes que perceba que está gostando...

- Se você está do lado do bem. Por que fez essa coisa tão terrível comigo?

- Eu estou envolvido em uma coisa maior. Uma coisa que, mais cedo ou mais tarde, vai estourar e mudará o destino de toda a humanidade.

- O quê?

- Eu não posso dizer... Não ainda... Mas eu vou precisar da sua ajuda quando esse dia chegar. O dia de sua... "missão final", um pré-armagedom... precisarei de alguém forte e poderoso o suficiente para enfrentar e ajudar-nos a vencer uma grande força que tomará conta desse nosso mundo.

Eric dá uma gargalhada...

- Perdeu o seu tempo! Pegou o cara errado! Eu não sou forte e poderoso...

- Não estou dizendo que você é. Estou dizendo que você será. Com o treinamento adequado, você se tornará tão poderoso que os mortos e os vivos se curvarão diante de ti. E eu sei que você não vai falhar nessa missão, porque sei que você é especial.

- E você vai me ensinar a matar pessoas?

- Infelizmente, eu, em toda minha pureza e inocência, não posso lhe ensinar o que você precisa aprender. Mas não se preocupe: vou apresentá-lo a um outro exterminador de almas, para o qual dei a missão de treiná-lo. Ele morreu com 12 anos, logo, mesmo sendo mais velho que você... está na sua faixa etária.

- Ta, aí ele me ensina a matar os inocentes, eu viro o seu capanga, o seu fantoche... e o que eu ganho em troca? - perguntou cruzando os braços.

- Se você me ajudar na missão final, o que não significa necessariamente vencer, e se em toda a sua existência você não transformar nenhum humano em exterminador de almas, eu vou te levar para o Paraíso quando tudo isso acabar e, lá, você reencontrará sua família e seus amigos. - Eric olha para o lado, pensando onde se meteu - Evidentemente, você não é obrigado a aceitar essa proposta mas, lembre-se que, se decidir seguir seu próprio caminho, estará completamente só em um mundo que mudou desde a última vez que você o viu sem falar que, como exterminador de almas, se por ventura, um dia, você for destruído, você arderá eternamente no fogo do Inferno.

Eric olha com os olhos cerrados para Gabriel.

- Trocando por miúdos, eu não tenho escolha a não ser fazer o que você quer.

- Exatamente.

- Isso é o que eu chamo de livre arbítrio.

- Agora, por favor, siga-me. Eu vou levá-lo até a casa onde o outro exterminador está.

- Qual o nome dele?

- O nome? Christian... Christian Lake. Você vai gostar dele.

- Como quiser, Gabriel... Anjo Gabriel... isso tem 11 letras...

Gabriel sorri:

- Acreditaria se eu dissesse que eu nunca tinha reparado?

- Meu amigo, depois de tudo isso eu acredito em qualquer coisa...

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br