A Garganta da Serpente
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O EXTERMINADOR DE ALMAS - CAPÍTULO 7

(André Ferreira Machado)

Eric e Gabriel passaram a caminhar pelas calçadas. Dobraram esquinas, atravessaram ruas, andaram por muito tempo. E enquanto caminhavam, Gabriel contou a seguinte história para Eric:

- Tudo começou no século XVI. Naquele tempo, os países eram divididos em feudos, grandes propriedades rurais, cada qual governada pelo seu Senhor Feudal. Toda a produção era para consumo imediato. Não existia comércio. Os reis existiam, mas tinham domínio apenas em seu próprio feudo.

- Então eram reis só de título?

- Isso. Mas eles não gostavam nem um pouco de não poderem mandar em seus súditos e, lentamente, com o apoio da burguesia, criou-se um novo sistema de governo: o absolutismo.

- Absolutismo?

- Antes, o rei era rei só de título mas, agora, com, o absolutismo, ele concentrava em suas mãos todo o poder. Houve revoltas e revoluções, mas este sistema prevaleceu.

- E o que isso tem a ver com os exterminadores de alma?

- Já vai entender. O rei tinha tanto poder que podia fazer qualquer coisa. Na Inglaterra, o rei Henrique VIII, através deste poder, rompeu com a Igreja Católica e criou a sua própria religião.

- Por quê?

- Porque o rei era casado, mas apaixonou-se por outra mulher. O Papa, então, não aceitou divorciar o rei de sua atual esposa. Se a Igreja não poderia atender a vontade do rei, ele achou melhor romper com a Igreja, mas não pense que foi um rompimento pacífico: católicos que não aceitaram a religião real foram perseguidos, torturados e mortos.Diante de tal situação, um grupo de católicos ultrarradicais e fanáticos, autodenominado Lux Dei, luz de Deus em latim, planejou assassinar o rei e restaurar a autoridade papal.

- Meio ousado esse plano deles... Deu certo?

- Não, mas eles estiveram bem próximos de alcançar o seu objetivo. Com o tempo, membros da Lux Dei infiltram-se nos castelos e, uma noite, o atentado acontece: vários soldados são mortos por quatro membros, dois homens e duas damas, cômodos são incendiados, o rei não tinha como escapar: o seu destino estava selado. Confinado em seu quarto, sua única alternativa é esperar que o inevitável lhe aconteça.

- Então eles conseguiram entrar no castelo onde o rei estava?

- Claro. Infiltraram-se, fizeram-no pensar que eram servos leais à Majestade e que pertenciam à religião de Henrique VIII, mas eram traidores. Além do mais, Lux Dei tem 6 letras...

- Continue a história... - Eric pediu com um ar de monotonia, ao ouvir a explicação numérica.

- Bem, quando os dois homens e as duas damas estavam prestes a matar o rei, dois soldados os atacam e os lançam pela janela...

- Dois contra quatro? Atirar pela janela? Isso é meio forçado...

- Não é não... eu estive lá... pode parecer absurdo, mas faz todo o sentido...

Eric arregala os olhos:

- Você esteve lá?

- Ih, cara, eu existo desde antes do início do mundo...

- Uau! Tá e... aí? Eles conseguiram sobreviver e fugiram para retornar futuramente, para concretizar sua vingança?

- Não, eles morreram...

- Ah...

- Eles morreram e foram para o Inferno. Ao padecerem nas chamas da escuridão, eles rompem a aliança com Deus, jurando que voltarão para vingar-se daqueles que o mataram e impor sua autoridade e soberania sobre os quatro cantos da Terra.

Gabriel explicou esta parte como um monólogo teatral. Ao perceber que os pedestres estavam olhando desconfiados para ele, provavelmente pensando que era louco, endireitou o sobretudo e continuou explicando em voz baixa:

- Neste momento, o Senhor das Trevas deu a cada um deles uma joia igual a esta que você está usando. Ao colocarem a joia, chamada de espectro, eles retornam ao nosso mundo como Exterminadores de Alma.

- E aí eles matam o rei?

- Olha, curiosamente eles não fizeram isso. Pelo contrário, espalharam um rastro de violência, sangue, morte e crueldade pelos lugares onde passaram. Mais tarde, eles descobrem como transformar humanos em exterminadores e, em menos de um ano, eles ultrapassam um milhão. Espalham-se pelos quatro cantos da Terra, transformando quem eles veem pela frente, matando vários inocentes das formas mais cruéis e humilhantes inimagináveis...

- E agora, eu faço parte desse grupinho...

- Tem suas vantagens. O terror tornou-se lenda, muitos tornam-se céticos, e muitos céticos padecem nas mãos daquilo que eles juravam não existir. O caos e as trevas dominaram os corações dos homens, os quais afirmaram que o Juízo Final estava próximo.

- Então, o mundo deveria estar um verdadeiro caos...

- Caos é pouco para descrever aquela situação...

- Mas, porque ninguém me falou disso, se era algo tão importante?

Gabriel olha para Eric, com um sorrisinho cínico:

- Se nós deixássemos vocês saberem de tudo que acontece, seu mundo não seria desse jeito...

- E por que vocês ocultam tudo isso da gente?

- Por que acha que somos nós?

- Desculpe... eu não quis dizer isso...

- Eu entendi. Acredite: sabemos o que é melhor para vocês. Mas, continuando, a Europa, o Velho continente, estava um verdadeiro lixo com tudo isso. O triunfo das trevas era inevitável. Para enfrentar a situação, Deus criou a arma perfeita contra os exterminadores de alma: os caçadores.

- Caçadores?

- Anjos guerreiros que assumiram a forma humana e que dispõem de um completo arsenal contra vocês. Um ano e meio depois da criação de tais monstros (os exterminadores), uma grande guerra entre Exterminadores de Almas e Caçadores trava-se em todo o mundo conhecido. Oitenta por cento dos Exterminadores são eliminados. Os primeiros Exterminadores, aqueles que queriam matar o rei, ficaram conhecidos como "Os Quatro". Eles são destruídos definitivamente. O Senhor ordena que os Caçadores retornem aos Céus, mas antes eles revelam aos humanos que, se for retirado o espectro de um exterminador, ele retorna ao estado humano, no qual poderá ser morto. Os homens, então, passam a enfrentar sem medo tais criaturas.

- Ah, muito obrigado por dizer como me matar. Então eu não sou tão imortal assim...

- É só você tomar cuidado...

- Ah, claro...

- Ainda existem caçadores por aí. Tome cuidado com eles: eles não vão ouvi-lo nem se você disser que fui eu quem tornou você assim... Mas, o que é mais importante, é que muitos exterminadores sobreviventes esconderam-se e, por esconderem-se e não terem coragem de enfrentar seu inimigo, o Senhor das Trevas os castigou, fazendo-os sofrer mutações. Assim, muitos se tornaram vampiros, lobisomens, e essas coisas?

- O quê? Isso é sério?

- Seriíssimo. Você, Eric, é "o monstro que gerou todos os monstros, o pai de todas as criaturas maléficas que habitam sobre a Terra".

- Ah... bem bonitinha esta descrição...

- Acredite: não fui eu que a criei. Agora, são 9 e 11. Chegamos: é bem ali.

- O quê? Ele mora nisso?

A casa era bem simples. Com um andar, sem reboco, as janelas de metal, algumas enferrujadas, quase todas com algum vidro quebrado. A porta de madeira, com um grande buraco na parte de baixo; o portão de ferro inclinado, como se vítima de uma tempestade e o pátio repleto de grama alta, pelo visto sem ser feita há meses.

- Essa casa vai ser demolida em breve.

- Demolida?

- Ele se esconde aí.

- Como assim "se esconde?"

- Um ser imortal não pode se mostrar para todo mundo. Vamos.

Gabriel abriu o portão, que quase caiu. Eric entrou. Os dois andaram até a porta por uma estradinha de pedra, com uma alta grama entre estas. Eric ficou olhando aquele pátio: parecia uma casa que, literalmente, havia parado no tempo.

Eric e Gabriel subiram numa laje. Gabriel solicitou que ele ficasse à sua esquerda.

- Mais pra lá... isso! Agora, você está a 7 metros de mim...

Eric soltou um olhar serrado para cima. Gabriel bateu na porta sete vezes, bem rápido. Após um longo período de tempo, a porta abriu. Eric espantou-se ao descobrir que aquela casa tinha, na porta, uma corrente de segurança pelo lado de dentro. Imóvel naquele local, tentava ver quem havia atendido, mas o fato de Gabriel estar na frente tornou esse desejo simplesmente impossível.

- Oi... - disse uma voz meio rouca, do outro lado da porta.

- Você demorou a atender...

- Eu tava dormindo...

- Dormindo com quem? - o tom de Gabriel pareceu ameaçador.

- É...

- Menino ou menina?

- Sozinho, ta legal?

- Certo... - Gabriel abaixou-se. Eric tentou ver alguma coisa, mas seus olhos não entendiam aquela imagem - Ele está aqui... eu o trouxe.

- É? E como foi?

- Não foi dos mais calmos mas, está ali...

- Você envelheceu bastante?

- Muito... - Os dois sorriem cinicamente. - Deixa a gente entrar?

- Claro...

A porta se fecha. Gabriel chama Eric para perto de si com a mão. Eric caminha em direção ao anjo, mantendo sempre uma certa distância deste. A porta abre-se de novo. O que Eric vê não o deixa mais tranquilo: um garoto, com uma camiseta cinza, uma calça preta, aparentemente de couro. O ponto mais intrigante: ele tinha a pele bem clara e os cabelos brancos. Os olhos eram azuis mas a pupila, quase invisível.

- Christian, esse é Eric.

- Oi... - saudou o menino pálido.

- Oi... - respondeu Eric assustado.

- Bem, - completou Gabriel - preciso ir agora. Se precisarem de mim, eu encontro vocês.

Eric ficou olhando para aquela criatura, pensando: "o que será isso? Por que ele é desse jeito?" Perdeu-se nos pensamentos, quase adormecendo e fugindo da realidade. De repente, não sentiu mais a presença de Gabriel. Olhou para o lado: não o viu. Girou o seu corpo. Nem sinal. A voz de Christian desviou sua atenção:

- Ele já foi. Agora, é só você e eu.

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